Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

IX

A nova ordem de cousas perturbou profundamente o ânimo de Estela. O procedimento de Jorge, por ocasião da moléstia do marido, não lhe pareceu esconder nenhuma intenção particular; mas durante a convalescença, e sobretudo depois dela, afigurou-se-lhe que a ideia do moço era insinuar-se na família. Para quê? Estela supunha que o amor de Jorge, ao fim de tão longo período, estaria acabado de todo, como produto da primeira estação. Não lhe negou um pouco de gratidão, quando viu os obséquios que prestara ao marido enfermo, com tanta solicitude, discrição e dignidade. Agora, porém, ao ver a frequência e a convivência, supôs alguma cousa mais do que a simples afeição tradicional. Que encanto podia oferecer a casa de uma família retirada e obscura a um homem criado em mais aparente plana social? Seu meio era outro; tendências de espírito ou ambições de futuro o deviam levar a outra esfera. Esta consideração lhe pareceu decisiva. Concluiu que a paixão, vencida ou comprimida, soltava outra vez o brado da revolta; e se assim era, Jorge devia estar pior que em 1866, porque então os sentimentos rompiam com violência e sinceridade, ao passo que agora o seu principal aspecto era a dissimulação. O amor, se amor havia, trazia já os olhos abertos e dispunha da razão; de estouvado, tornava-se cauteloso e sutil.

"Que ideia faz ele de mim?", perguntou Estela a si mesma.

Quando esta palavra lhe soou no espírito, Estela sentiu-se diminuída e humilhada aos olhos de Jorge. Cumpria pôr termo a uma vida de reticências e dubiedade. Estela cogitou no meio de fazer cessar a intimidade dos dous homens; quando menos, a frequência de Jorge naquela casa. Pensou em pedi-lo diretamente a Jorge; mas rejeitou desde logo a ideia, aliás incompatível com sua índole; depois, pensou em dizer tudo ao marido.

Uma noite, na primeira semana de novembro, Estela assentou definitivamente revelar ao marido a única página de seu passado. Estava sozinha, no jardim, e vira desmaiar o crepúsculo da tarde - uma tarde cinzenta e amortecida. De quando em quando o espírito volvia ao passado, e toda ela estremecia com uma sensação estranha, misteriosa e insuportável. A noite caiu de todo, e a alma de Estela mergulharia também na vaga e pérfida escuridão do futuro, se a rude voz do escravo não a viesse acordar.

- Nhanhã está apanhando sereno - disse Raimundo.

Estela ergueu-se e foi dali ao gabinete do marido. Luís Garcia trabalhava, à claridade de um lampião, que toda convergia para ele e os papéis que tinha diante de si, graças ao efeito de um abat-jour. O resto do aposento ficava na meia obscuridade.

- Que é? - perguntou Luís Garcia sem levantar a cabeça.

Estela parou do outro lado da secretária; Luís Garcia ergueu então a cabeça e olhou para ela, sem lhe poder ver o transtorno das feições.

- Que é? - repetiu.

Vendo-o entregue ao trabalho, por amor dela e da filha, Estela hesitou; pareceu-lhe crueldade dar-lhe, em troca da proteção e do afeto, um desengano e uma aflição. Hesitou um instante, e passou da hesitação à renúncia. Conteve-se e saiu. Escolheu o silêncio.

Mas o silêncio só por si não melhorava nada; tarde ou cedo o marido viria a ler em seu rosto o constrangimento, em relação a Jorge, constrangimento inexplicável, que ele podia interpretar contra ela. Foi então que a serpente lhe ensinou a dissimulação. A necessidade deu-lhe a intuição maquiavélica; isto é, a ocasião não consentia um rosto franco, sinceramente hostil, mas um ar ameno, uma cordialidade de superfície, friamente cortês, mas cortês. Desse modo, salvava-se a paz doméstica, e era o essencial. Ao mesmo tempo mostraria a destemidez de seu coração, capaz de afrontar todo o artifício do outro.

Com o tempo, verificou Estela que o procedimento de Jorge, se alguma intenção escondia, não a deixava sequer suspeitar; não lhe parecia já dissimulação, mas abstenção. Ele próprio a evitava; fugia às conversas longas, sobretudo às conversas solitárias. Era respeitoso e frio.

Com efeito, Jorge não havia cedido a nenhum plano preconcebido; ia à feição do tempo; metia-se por um atalho, sem saber se iria dar à estrada reta ou a um abismo. Nenhuma preocupação lhe ensombrava a fronte risonha e plácida. Dir-se-ia que, após longa e trabalhosa jornada, vingara o cume das delícias humanas.

A verdade é que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de sentimento para constituir-se ideia fixa. Nascido de uma primeira explosão de juventude, curtiu alguns anos de ausência. A ausência disciplinou os primeiros ardores, quebrou os ímpetos, afrouxou o alento; o amor atou aos ombros as asas de um misticismo quieto. Não parou nessa evolução. Do coração em que pousava tomou impulso e alou-se ao cérebro, onde assumiu a fixidez das resoluções definitivas. Não era já uma paixão, mas uma convicção, isto é, outra cousa. Pensava muitas vezes na consequência de herdar em breve prazo a esposa de Luís Garcia, resolução que lhe parecia necessária; era uma que ele dizia a si mesmo. E esse casamento tinha dous resultados: era uma reparação e uma desforra; reparação do mal que ele fizera, desforra do tratamento que ela lhe deu. Ambos tinham que reprochar um ao outro. O casamento absolvia-os. Talvez na balança comum não fossem iguais as dívidas, mas Jorge tinha certo fundo de equidade, e entendia que, se padecera muito e longo, não excedeu o padecimento à injúria que, a seus olhos, fora grave.

Os ralhos da consciência eram agora menos frequentes e menos ríspidos: é o efeito natural dessa ordem de situações violentas. Os mais rígidos podem chegar assim às complacências inexplicáveis, e o que é hoje nobre repugnância é amanhã hesitação pueril. Jorge não ficou estranho a essa lei do costume. De si para si julgava-se inocente, porque era impassível, esquecendo a letra do decálogo que não defende somente a ação, mas a própria intenção.

Duas circunstâncias perturbaram, entretanto, o espírito de Jorge, antes do fim daquele ano.

A primeira foi a assiduidade de Procópio Dias, que lhe pareceu pouco explicável. Procópio Dias era recebido com agasalho mais cordial do que ele. Em relação a Jorge, o procedimento de Estela era cauteloso e apenas afável; o de Iaiá era de algum modo medroso ou hostil; uma e outra pareciam alegrar-se quando Procópio Dias assomava à porta. Era uma expressão diferente. Este acompanhava-as às vezes nos passeios, ou conversava-as largo tempo, fazendo-as rir com uma espontaneidade que não tinham a falar com Jorge. Obedecia aos desejos da madrasta e aos caprichos da enteada, quaisquer que fossem, com tamanha tolerância e bom humor, que fazia despeitar o outro, sem o saber. Jorge atentou nos ditos e ações do intruso, e com o tempo veio a tranquilizar-se.

"É um celibatário necessitado da companhia de mulheres", disse consigo.

Procópio Dias não parecia outra cousa; a atmosfera feminina era para ele uma necessidade; o ruge-ruge das saias, a melhor música a seus ouvidos. Graças à idade, Iaiá era mais familiar do que Estela; às vezes chegava a "judiar" com ele, excesso que o pai ou a madrasta reprimia, e reprimia sem necessidade. Procópio Dias não manifestava nem sentia o menor despeito; achava-lhe graça e chegava a fazer coro com ela.

A segunda circunstância que projetou alguma sombra no espírito de Jorge foi justamente a hostilidade de Iaiá Garcia.

"Que diabo fiz eu a esta menina?", perguntava Jorge a si mesmo.

Durante a moléstia e a convalescença do pai, Iaiá tratara Jorge com muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois, começou a diminuir essa aparência, até que cessou de todo e se converteu noutra cousa, que visivelmente era repugnância, com uma pontazinha de hostilidade. Luís Garcia viu logo a diferença, tanto mais fácil de notar quanto que Estela, se não era já tão expansiva como nos primeiros dias, tratava ainda assim o filho de Valéria com uma afabilidade que salvava as aparências; a única exceção era a filha. Não deixou de a advertir; ponderou-lhe que Jorge era filho de uma pessoa a quem eles deviam estima, e de quem ela mesma houvera uma recordação póstuma; que essa circunstância devia atenuar a antipatia, se Jorge lhe era antipático. Iaiá ouvia e calava-se; emendava-se num dia, para reincidir toda a semana.

- És uma estranhona - disse uma vez o pai depois de lhe repetir a advertência.

Podia ser estranhice. A vida que Iaiá tivera durante largo tempo dera-lhe o amor exclusivo da solidão e da família. Mas no caso presente parecia ser alguma cousa mais do que isso. O rosto com que recebia Jorge não era o mesmo com que via outras pessoas. Jorge às vezes chegava quando ela estava ao piano; Iaiá interrompia-se habilmente, fazia gotejar dos dedos umas três ou quatro notas soltas e divergentes e erguia-se. Se ele ia conversar com ela e a madrasta, Iaiá tomava a parte mínima do diálogo e esquivava-se cautelosamente. Não sorria nunca se ele dizia uma cousa graciosa ou fazia cumprimento; não animava nunca a adoção de qualquer projeto que viesse dele; não lia os romances que ele lhe emprestava. Se era convidada a dizer o que pensava de um ou outro desses livros, fazia descair os cantos da boca com um gesto de indiferença. Não falava nunca de Jorge; aparecia-lhe o menos que podia. Este procedimento constante, não afrontoso, porque ela o disfarçava, impressionou o espírito do moço, que não lhe pôde descobrir a causa verdadeira, ou pelo menos verossímil.

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava o pai sobre todas as cousas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuía nada do seu quinhão de filha.

Iaiá viu, entretanto, a mudança que houve nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abrira uma exceção em favor de Jorge; sem mostrar maneiras ruidosas, aliás incompatíveis com ele, era menos reservado, de mais fácil e continuado acesso. Não foi porém esse primeiro reparo que produziu em Iaiá a notada mudança; foi outro. Luís Garcia deu a Jorge algumas demonstrações de confiança pessoal, e no dia em que a filha viu a primeira, recordou-se da carta que escrevera ao moço na noite em que a moléstia do pai se agravara, e da confidência dos dois, cujo assunto nunca lhe chegara aos ouvidos. Neste instante sentiu borbulhar no coração uma primeira gota de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe alguma cousa. Não cogitou se haveria assunto que dous homens devessem tratar exclusivamente entre si; supôs-se despojada de uma parte da confiança do pai, e porque amava o pai sobre todas as cousas, seu amor tinha os ciúmes, as cóleras, os arrebatamentos do outro amor, e consequentemente os mesmos ódios e lástimas.

Conhecia o pai toda a intensidade da afeição filial da moça, e não era menor a do seu amor; mas ele dizia consigo filosoficamente, e não sem pesar, que a natureza se encarregaria de lhe ensinar outro sentimento menos grave, mas não menos intenso e imperioso. Quando ele assim refletia, contemplava a filha com um olhar já úmido das primeiras saudades.

Iaiá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era leve, ágil, súbita - com um pouco de destimidez -; às vezes áspera, mas dotada de um espírito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse falar também dos olhos, que, se eram límpidos como os de Eva antes do pecado, se eram de rola, como os da Sulamites, tinham como os desta alguma cousa escondida dentro, que não era decerto a mesma cousa. Quando ela olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da consciência alheia. Mas eram raras essas ocasiões. A expressão usual era outra, meiga ou indiferente, e mais de infância que de juventude. Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os lábios eram finos e enérgicos. Em resumo, as feições dos onze anos estavam ali desenvolvidas e mais acentuadas.

Uma tarde Luís Garcia recebeu ordem de ir imediatamente à casa do ministro. Saiu, deixando a mulher e a filha, ansiosas pelo resultado. Jorge apareceu pouco depois. A demora de Luís Garcia foi longa, e Jorge ter-se-ia retirado, se não fora a chegada do Sr. Antunes, que deu um sopro de vida à conversa que expirava. Nove horas, dez horas, onze horas bateram sem que Luís Garcia voltasse. Iaiá estava impaciente; receava alguma doença súbita do pai, um desastre qualquer. Eram onze horas e um quarto quando este entrou ofegante, porque viera depressa, tendo encontrado Raimundo, que, ouvindo as ânsias da moça, saíra a encontrá-lo e a dizer-lhas.

Iaiá atirou-se-lhe aos braços.

- Medrosa! - disse Luís Garcia abrangendo-lhe a cabeça com as mãos.

Sentou-se um instante para repousar; com a mão esquerda comprimia o coração. Logo depois ergueu-se, chamou Jorge e foi até uma das janelas. Conversaram em voz baixa dez minutos. Disse-lhe que talvez fosse obrigado a sair no fim daquela semana; tratava-se de uma necessidade de serviço; salvo uma hipótese, a viagem era inevitável.

Iaiá não tirava os olhos de um e de outro; despediu-se de Jorge dando-lhe as pontas dos dedos. Foi no dia seguinte que Estela lhe disse que talvez fossem obrigadas a sair por algum tempo. Ouvindo a notícia, Iaiá compreendeu a confidência da véspera, e ficou consternada. Ela era a última que a recebia, e o primeiro fora um estranho, um intruso - esteve quase a dizer um inimigo. Nenhuma palavra do pai; nenhuma comunicação direta.

- A última!

Esse ressentimento exagerado era o próprio efeito da organização da moça, e, outrossim, de sua educação quase solitária. Para afastá-la de Jorge não foi preciso mais; o despeito apoderou-se inteiramente dela. Se até ali pouco lhe havia falado, esse pouco diminuiu ainda com o tempo; fez-se quase nada.

E essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a esbarrar-se, no caminho de seus destinos.

X

Ora, quatro ou cinco dias depois, Luís Garcia, que, na previsão de viagem, começara a arranjar alguns papéis esparsos e antigos, dispôs-se a concluir esse trabalho, não obstante haver sido dispensada a comissão. Era dia de ano-bom - uma bela manhã, fresca, límpida, azul. Tinham ido à missa na capela do convento; almoçaram em família, com a presença do Sr. Antunes, que inaugurara uma sobrecasaca, e trazia nessa manhã um aspecto, não somente venerador, mas até venerável.

Iaiá acordara extremamente alegre e buliçosa. O Sr. Antunes levara-lhe um ramalhete de cravos, dizendo que era para que ela recebesse outros ramalhetes durante todo o ano, e a menina, depois de o receber e agradecer com uma mesura, foi pô-lo num vaso, sobre o parapeito da janela da alcova. O Sr. Antunes despediu-se dela, meia hora depois de almoçado.

- Já vai?

- Vou jogar uma partida de bilhar com o Jorge - disse familiarmente o pai de Estela -. Viremos cedo.

- Ele vem jantar?

- Quero ver se o trago!

- Mas... papai não está prevenido - objetou Iaiá.

- Está; foi ele próprio que me autorizou a trazê-lo. Verdade é que fui eu que o pedi. Devemos muito àquele moço, e ao defunto pai e à mãe, a Sra. D. Valéria, que Deus tenha. Até logo.

Iaiá ficou só, e um instante pensativa; mas logo depois ergueu os ombros, pegou de um trabalho de agulha, inventado para matar o tempo, e caminhou para o gabinete do pai, onde o foi achar com Estela.

- Virgem Nossa Senhora! - disse a moça parando à porta.

Ao pé da secretária estava uma vasta cesta, transbordando de papéis; sobre a secretária, papéis; papéis na mão de Luís Garcia; outros na mão de Estela; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis anos. Luís Garcia tinha o costume de guardar tudo, cartas, exemplares de jornais em que havia alguma cousa de interesse, apontamentos, simples cópias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já alguns anos que não fazia a costumada operação. Começara quando supunha ter de deixar o Rio; agora tratava de concluir. Estela tinha entrado pouco antes da enteada; sentara-se em uma cadeira rasa, e entretinha-se a receber ou apanhar algum pedaço de jornal velho, e a ler algum trecho em que os olhos acertavam de cair.

- Que é? - disse Luís Garcia logo que a filha soltara a exclamação.

- Papai vai ficar afogado em papel - disse a moça.

Luís Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na mão, e que, sem dúvida, lhe trazia alguma recordação amarga, porque ele sorria tristemente. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um gesto de desdém, rasgou-a e deitou os pedaços à cesta.

Iaiá foi sentar-se do outro lado, a poucos passos do pai.

Na secretária, ao pé deste, havia um maço de cousas que serviam, um maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inúteis. Não é isso mesmo a imagem do passado? Luís Garcia desdobrava às vezes um jornal, avaramente guardado havia anos; duas cruzes ou alguns traços indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a atenção. Relia-o agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que comunicara algum interesse ao escrito desaparecera de todo; o escrito era um esqueleto. Também as cartas eram assim. Raras escapavam à destruição; as mais delas eram dilaceradas, umas em dous pedaços - as ínfimas -, outras em trinta, as que podiam ter alguma gravidade. Estela, que o ajudava, pegou casualmente em uma carta, cuja letra do sobrescrito lhe não pareceu estranha.

- Eu conheço esta letra - disse ela.

- Deixa ver.

Estela deu-lhe a carta.

- É do Dr. Jorge - disse o marido.

Abriu-a e, depois de ler algumas linhas, sorriu. Leu-a depois até o fim. Quando acabou, dobrou-a e ficou a olhar para a mulher; tornou a desdobrá-la maquinalmente.

- Vou restituí-la - disse ele depois de curta pausa -; talvez se envergonhe de haver escrito estas cousas...

E dirigiu os olhos à carta, com uma insistência de aguçar o mais embotado apetite. Depois, volveu a cabeça um pouco para trás, onde ficava a filha, a distância, de olhos baixos; abafou a voz e disse a Estela:

- Nunca soubeste do verdadeiro motivo que o levou à guerra?

Estela ficou ainda mais pálida do que era; o sangue todo refluiu-lhe ao coração, donde lhe não saiu uma só palavra; foi com um gesto negativo que ela respondeu. E se não podia empalidecer mais, podia corar e corou de vergonha. Luís Garcia não viu nem a primeira, nem a segunda impressão de suas palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos um dos cantos da carta. Naturalmente relembrava os sucessos daqueles cinco anos, as confidências da mãe e do filho.

- Quem diria que depois de tamanho sacrifício... O que são rapazes! O que são paixões! Ele gostava de uma moça; não sei quem era, mas suponho... A mãe fez quanto pôde para domá-lo; quando desesperou, lembrou-se de o mandar para o Sul; ele aceitou. Fui confidente de um e de outro. Tempos depois de embarcar... espera ... a data há de estar aqui... 67... Ainda em 67 durava a tal paixão; afinal parece que só esperava o fim da guerra para acabar também. Morreu-lhe a paixão, e ele engorda. Nunca suspeitaste nada?

- Não - murmurou Estela.

Luis Garcia deu a carta à mulher, que a recebeu trêmula e fria.

- Lê, que é interessante - disse ele.

Estela olhou para o papel e para o marido, vacilante, sem saber o que faria e o que pensasse.

- Lê; é curioso - disse este, que voltara aos demais papéis, abrindo uns, separando outros, tranquilo e indiferente.

Estela, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para ele, como a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se porventura havia alguma, e esse gesto era tão travado de receio e hesitação, era sobretudo tão dissimulado, que ela própria o sentiu e arrependeu-se. Cravou depois os olhos no papel, sem ler, sem fitar nenhuma linha, uma palavra única. Não via as letras; via, ao longe, dous pombos que voavam e a candura de seus lábios embaciada por uns lábios de homem; nada mais. A mão tremia; ela firmou-a sobre a borda da secretária; mas o tremor, ainda que pouco perceptível, não cessou.

- Leste? - perguntou Luís Garcia dobrando um jornal que acabava de passar pelos olhos.

Estela fez um gesto para que esperasse um instante. Não reparava que havia decorrido tempo suficiente para haver lido a carta duas vezes. Fez um esforço; voltou a página; duas ou três frases lhe feriram os olhos:

"Meu amor não sabe o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo; é uma fé religiosa que pode viver inteira em muitos corações." - "O essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo." - "A paixão veio comigo, e se não cresceu é porque não podia crescer; mas transformou-se. De criança que era, fez-se homem de juízo."

Chegou ao fim da carta ou pareceu ter chegado; dobrou-a, e não se atreveu a dizer nada; depois tornou a abri-la.

- Que poesia, hein? - disse Luís Garcia sorrindo.

E o sorriso era tão natural, tão despreocupado, tão honesto, que Estela ficou tranquila. Tinha em grande conta a dignidade e a sinceridade do marido; não podia supor-lhe tanta hipocrisia nem tamanha indiferença. Sorriu também, mas um sorriso de aquiescência, sem convicção nem espontaneidade. Luís Garcia inclinou-se para ela; falou-lhe com a mesma voz abafada de pouco antes, referiu-lhe o amor que Valéria tinha ao filho e a estratégia usada para o fim de o arredar do Rio de Janeiro.

- Naquele tempo - disse ele - não sei se cheguei a arrepender-me de a ter apoiado; hoje não. O filho ficou são e salvo de seus amores, com um posto e honras de sobra.

- É verdade - murmurou Estela, que o escutara com a atenção dispersa e impaciente.

Logo depois ergueu-se e foi à janela. Ali sacudiu a cabeça com um gesto enérgico. Talvez lutavam nela forças contrárias; ou era o seu passado que emergia da sombra do tempo, com todas as cores vivas ou escuras, com as delícias ocultas e nunca reveladas, e ao mesmo tempo com as amarguras de resistências. Era isso; era o coração que mordia impaciente o freio da necessidade e do orgulho, e vinha pedir ainda uma vez o seu quinhão de vida, e pedia-o em nome daquela carta, expressão remota de um amor desenganado e impassível. Estela sufocava esses ímpetos, mas eles vinham. Após alguns minutos, deixou a janela, tornou à cadeira onde estava. Luís Garcia lia então um retalho de jornal. Não chegou a levantar os olhos.

Defronte, Iaiá tinha os olhos cravados na madrasta. Ouvira a princípio o nome de Jorge e não lhe prestara muita atenção; mas uma ou duas palavras soltas do pai haviam-lhe despertado a curiosidade. Iaiá ergueu a cabeça, inclinou-a depois, ouviu a confidência do pai, não obstante ser feita em voz baixa, e enfim não retirou mais os olhos de Estela. Viu-a receber a carta, com a mão trêmula; viu-a empalidecer ainda mais; viu-lhe a confusão e o enleio. Por que o enleio e a confusão? Um amor extinto de Jorge, uma paixão que o levara à guerra, que tinha ela, que tinham eles três com isso?

Iaiá olhou a princípio com curiosidade, depois com espanto, até que os olhos luziram de sagacidade e penetração. O estilete que eles escondiam desdobrou a ponta aguda e fina, e estendeu-a até ir ao fundo da consciência de Estela. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e penetrava no cérebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem ligação. Iaiá adivinhou o passado de Estela; mas adivinhou demais. Galgou a realidade até cair no possível. Supôs um vínculo anterior ao casamento, roto contra a vontade de ambos, talvez persistente, mau grado aos tempos e às cousas. Tudo isso viu uma simples inocência de dezessete anos. Seu pensamento cristalino e virginal, nunca embaciado pela experiência, ignorava até as primeiras cismas de donzela. Não tinha ideia do mal; não conhecia as vicissitudes do coração. Jardim fechado, como a esposa do Cântico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A criança acabara; principiava a mulher.

A impressão foi tão profunda, que apesar da força de resistência que havia em sua organização, Iaiá não pôde ter-se ali mais tempo. Saiu e refugiou-se na alcova. Certo, aquele amor intruso, se o havia, era para afligir e prostrar um coração de filha, amassado de ternura, para o qual a forma superior e exclusiva do sentimento era a paixão que a prendia a seu pai, como um vínculo indestrutível. Depois vinha o afeto que votava à madrasta, sua mãe eletiva, afeto não menos sincero e real, e que já agora podia diminuir, quem sabe até se morrer todo?

Sentada na beira da cama, com os pés juntos, as mãos fechadas entre os joelhos, os olhos cravados no espelho que lhe ficava defronte, Iaiá trabalhava mentalmente na sua descoberta. Confrontava o que acabava de ver com os fatos anteriores, de todos os dias, isto é, a frieza, a indiferença, a estrita polidez dos dous, e mal podia combinar uma e outra cousa; mas ao mesmo tempo advertia que nem sempre estava presente quando Jorge ali ia, ou fugia-lhe muita vez, e podia ser que a indiferença não passasse de uma máscara. Demais, a comoção da madrasta era significativa. Estendeu o espírito pelo tempo atrás, até o dia da primeira visita de Jorge, e lembrou-se que ele estremecera ouvindo a voz de Estela, circunstância que lhe pareceu então indiferente. Agora via que não.

Uma hora inteira gastou nesse cogitar solitário, a sós com a suspeita e o remorso. Também remorso, porque de quando em quando, aterrada com a vista do caminho andado, a alma recuava e estremecia; tinha horror de si mesma. Mas a figura pálida da madrasta surgia ao pé dela, com a expressão que lhe vira pouco antes, e a consciência fazia as pazes com a malícia.

Vede a consequência. Estela não era culpada; um incidente do passado é que projetava tamanha sombra na vida presente; mas bastou o espetáculo da comoção para turbar o espírito da enteada e lançar lá dentro os primeiros germens da ciência do mal. Que seria se fosse culpada? Talvez o mais lastimoso efeito dos desvios domésticos é essa corrupção dos corações ingênuos, impassíveis testemunhas do que ignoram um dia, do que suspeitam, percebem e sabem na seguinte manhã: primeira violação da virgindade.

Iaiá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receosa ao mesmo tempo de ir ter com Estela. Duas vezes chegou à porta e recuou. Uma das vezes, voltando para dentro, deu com os olhos no retrato do pai que pendia junto à cabeceira - uma simples fotografia. Tirou-o dali, contemplou longamente a fronte austera e pura. Quê! Haveria na terra quem o amasse uma vez e não sentisse que o amor lhe dominaria a vida inteira? Tão afetuoso! Tão bom! Vivendo exclusivamente para os seus, sem nada invejar ao resto dos homens. Isto lhe dizia o coração, enquanto ela ia beijando o retrato com respeito, com amor, afinal com delírio. Grossas lágrimas e quentes lhe romperam dos olhos; Iaiá deixou-as cair: sorveu-as com seus próprios beijos. Quando essa primeira explosão acabou, acabou para se não repetir mais. Enxutos os olhos, Iaiá pôde friamente refletir, e a reflexão dominou a angústia.

O que se passou naquele cérebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vínculo espúrio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua inocência, assim como lhe dissimulava toda extensão possível do mal, assim também lhe encobria as asperezas e os óbices da execução. Era o coração que lhe designava esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direito ao fim sem o temor que dá a experiência e a contemplação da vida. Quem sabe? Não conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeitá-la; começava talvez a aprendê-la.

Tinha-se demorado muito e era preciso sair do quarto; mas, como houvesse chorado, podiam ler-lhe os vestígios da dor. Iaiá foi ao lavatório, deitou água na bacia e começou a banhar os olhos e o rosto. O rumor da água impediu-lhe ouvir que alguém abria a porta. Estela apareceu-lhe repentinamente.

- Que faz você aqui há tanto tempo? - disse a madrasta, parando à porta.

Iaiá não se atreveu a olhar de rosto para ela; mastigou uma resposta esquiva e continuou o que estava fazendo.

- Que tens? - perguntou Estela pegando-lhe dos braços e fazendo-a voltar para si -. Você chorou?... Chorou, sim; tem os olhos vermelhos. Que foi? Iaiá fala; que é?

- Não é nada - acudiu a outra procurando sorrir.

- Não minta, Iaiá.

A enteada olhou de relance para o espelho; viu que era inútil mentir.

- Foi uma tolice - disse ela.

- Alguma travessura?

- Antes fosse!

Iaiá pegou do retrato que pusera na borda do mármore do lavatório, e olhou alguns instantes para ele. Estela quis conchegá-la a si, mas a enteada fugiu-lhe com o corpo.

- Trata-se... de teu pai? - perguntou a madrasta.

Iaiá fitou-a e respondeu:

- Sim, mamãezinha; estava a sacudir a poeira do retrato de papai, e comecei a pensar... foi uma loucura... se ele... morresse?

Estela repreendeu-a com uma interjeição; Iaiá quis continuar, mas a outra interrompeu-a impetuosamente:

- Cala-te - disse -; não penses em tolices. Dá cá o retrato.

- Não é verdade que ele é o melhor dos homens? - perguntou Iaiá, enquanto Estela pendurava o retrato.

A única resposta da madrasta foi caminhar para ela e dizer-lhe que nunca mais pensasse em semelhante cousa.

- Não sou senhora dos meus pensamentos - respondeu a moça, erguendo os ombros.

Após alguns segundos de silêncio, Estela percebeu que alguma cousa preocupava a enteada, e disse-lho. Iaiá respondeu negativamente. Mas Estela insistiu:

- Não tens o teu ar do costume, e esses olhos andam vagamente de um lado para outro. Talvez... quem sabe...

- Não é isso que a senhora pensa - interrompeu Iaiá secamente.

Depois sentou-se, a olhar para o jardim, a morder o lábio, que lhe tremia, e a comprimir os seios com a mão. Estela ficou um instante calada; enfim sacudiu benevolamente a cabeça e aproximou-se da menina.

- Tu não tens confiança em mim, Iaiá - disse ela pousando-lhe a mão no ombro -. Se tivesses, dizias-me em que é que pensas, porque é decerto em alguma cousa. Não é difícil deixar de pensar no Procópio Dias; acho até que é a cousa mais fácil; mas não será algum pensamento da mesma natureza? Anda; sê franca; sou apenas tua madrasta, e pouco mais velha que tu; posso ouvir tuas confidências e aconselhar-te. Onde acharás melhor amiga do que eu?

Iaiá tinha aplacado a primeira sensação; afivelou de todo a máscara da tranquilidade, enquanto não a substituía por outra. Ergueu-se e disse com afouteza:

- Pois bem, vou confiar-lhe uma cousa... não... suponha... é melhor supor... tenho vergonha de dizer a verdade. Suponha que tive um amor de colégio...

- Tu? Aos treze anos!

- Aos doze e meio.

- Bonito! Não foi começar tarde. Esse amor naturalmente expirou nos braços da última boneca.

- Suponha que não - disse Iaiá em tom sério -. Ora, se eu tiver de casar com o Procópio Dias...

- Quem te fala em casar com ele?

- Por ora é um gracejo; mas, se ele teimar, é possível que nem a senhora nem papai o desamparem, e ainda mais possível que eu me deixe vencer para contentar a todos. Mas é este o ponto de minha confidência: é uma ideia que me persegue há dias. Devo eu casar com um homem amando a outro? Posso fazê-lo? Devo fazê-lo?

Estela estremeceu levemente, sob o olhar impassível e puro da enteada, e não respondeu logo. Iaiá parecia folgar com esse enleio de um minuto; mas ao mesmo tempo o coração lhe sangrava, porque o enleio era a confirmação de suas recentes suposições. A madrasta não tinha a penetração da enteada; além disso, como supor nela o conhecimento de um fato remoto e não divulgado? Estela nem cogitou nisso. Escoou-se o minuto, e ela respondeu com tranquilidade:

- Não deves casar, se o amor pode ser satisfeito sem obstáculo. No caso contrário, o casamento é uma simples escolha da razão: sacrifica-te.

Iaiá, que tinha uma das mãos da madrasta entre as suas, largou-a subitamente. Estela riu, e bateu-lhe na testa com a ponta do dedo.

- Esta cabecinha! - disse ela -. Há aqui dentro muita cousa que é preciso capinar...

No primeiro instante, Iaiá empalideceu. Ao último gesto de Estela respondeu com um sorriso forçado e sem cor. Logo que esta saiu, deixou-se cair na cadeira e fechou o rosto nas mãos. Quando dali saiu, meia hora depois, não trazia nenhum sinal de lágrimas, ou sequer de tristeza. Não vinha alegre, decerto; serena, sim, daquela serenidade com que o caçador do sertão se dispõe a encarar a onça.

Jorge foi jantar e sobre a tarde apareceu Procópio Dias. Durante o jantar e a noite, Iaiá fez impressão na família e nos estranhos pela singular alteração de seus modos. Estava um pouco pálida, mas a viva luz dos olhos parecia comunicar ao rosto uma porção do colorido ausente. Mostrou-se expansiva, e não galhofeira. Suas frases eram longas, deduzidas, iam até o fim do pensamento, sem as interrupções e saltos do costume. De costume, parecia que a moça pensava aos fragmentos, porque era quase impossível ter com ela uma conversa inteiriça e ordenada com a sua variedade própria. Naquele dia era o contrário. Como que a alma despira a roupa de bailarina, para enfiar um roupão caseiro, simples, apertado, subido até o pescoço. Era melhor assim? Era pior? Nem uma nem outra cousa; era uma aparência nova.

Mais do que ninguém, Jorge estimou essa alteração, porque em relação a ele a moça também havia mudado alguma cousa. Iaiá sentira nesse dia mais repugnância do que nunca ao ver o filho de Valéria, e chegou a recuar instintivamente a mão. Cedeu, porém, e o sorriso com que corrigiu a recusa foi o primeiro que Jorge recebeu diretamente dela. Nesse dia a moça respondeu-lhe sem custo, e talvez lhe dirigiu a palavra alguma vez; o que tudo viu Luís Garcia e atribuiu a efeito de suas admoestações.

Nem Luís Garcia nem Jorge poderiam supor que sobre a cabeça da madrasta e da enteada a carta de 1867 agitava as suas letras de fogo. Essa carta importuna, poupada da destruição imediata, era a centelha subitamente lançada no amor adormecido de uma e no ódio nascente de outra; Jorge estava longe de o ler no rosto afável de Iaiá, e no olhar fugidio de Estela.

Pouco depois das dez horas dispersou-se a reunião. O Sr. Antunes aposentou-se por essa noite em casa do genro. Jorge e Procópio Dias saíram juntos.

- Vai para a cidade a esta hora? - perguntou Jorge.

- Repare que ainda me não ofereceu cama - disse rindo o outro.

- Mas ofereço-lhe agora.

- Aceito. Precisava justamente falar-lhe: negócio grave.

- Não é decerto algum fornecimento?

- Nem só de pão vive o homem - acudiu Procópio Dias.

- Que negócio é?

- Uma explicação.

- Sobre...

- Há de ser lá em casa; a noite é escura e os quintais são traiçoeiros.

A+
A-