Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

VIII

Chegando ao Rio, Jorge teve notícia de que Luís Garcia estava enfermo. Não contava com o incidente, que o pôs em grande perplexidade. Não queria visitá-lo, e mal poderia deixar de o fazer. Luís Garcia fora prezado de seus pais; ele próprio lhe tinha estima e consideração: motivos bastantes a aconselhar o desempenho de um dever de cortesia. Mas, por outro lado, ir a Santa Teresa era arriscar-se à suspeita de Estela. Jorge vacilou durante dous longos dias. Certo, ele sentiu algum alvoroço, com a ideia de a ver; ideia que, se buscou rejeitar do espírito, lá ficou latente e dissimulada. Mas a razão que confessava a si próprio era a da conveniência.

Venceu a hesitação e foi a Santa Teresa, na tarde do terceiro dia. A casa não era já a mesma; tinha dimensões um pouco maiores que a outra. Era nova, ladeada de verdura, com as telhas ainda da primeira cor. Havia duas entradas, uma para a sala, ficando a porta entre quatro janelas, outra para o jardim, e era uma porta de grade de ferro, aberta no centro de um pequeno muro, por cima do qual vinha debruçar-se a verdura de uma trepadeira. Aí achou Raimundo, mais velho do que o deixara, mas não menos forte. Raimundo conheceu-o, apesar de queimado do sol. Abriu-lhe a porta; acompanhou-o alegremente ao fundo do jardim.

- Meu senhor vai ficar muito contente - dizia ele fazendo-o entrar.

- Está melhor?

- Está, sim, senhor. Olhe, está ali.

Raimundo apontou para um grupo de pequenas árvores, através de cuja ramagem se descobriam vestidos de mulher. Jorge sentiu coar-lhe pelas veias uma onda de frio. Mas passou depressa; e deu o primeiro passo tão firme, como diante das legiões de López.

- Quem é, Raimundo? - cantou uma voz desconhecida, no meio das árvores.

Jorge viu aparecer uma moça, que representava ter dezoito anos e não contava mais de dezesseis; reconheceu a filha de Luís Garcia. Ela não o reconheceu logo; os trabalhos da guerra tinham-no mudado. Demais, nas poucas vezes que o vira não lhe havia prestado muita atenção. Jorge foi conduzido até a cadeira onde se achava estirado Luís Garcia, entre duas outras, uma com um trabalho de agulha em cima, outra com um livro aberto. Luís Garcia recebeu-o com satisfação e cordialidade; Jorge explicou a demora da visita pelo fato de estar ausente. A explicação era uma cortesia nova; Luís Garcia agradeceu-lha.

- Estive muito prostrado - disse ele -; não sei mesmo se cheguei às portas da morte. Agora estou quase bom.

Jorge sentara-se a um lado do convalescente, enquanto Iaiá, do outro lado, brincava com os cabelos do pai ou lhe apertava uma das mãos. Luís Garcia contou as peripécias da doença e exaltou a dedicação da família; Jorge falou pouco, já por evitar trair a comoção que sentia ao penetrar naquela casa, já por não prolongar a visita e podê-la terminar no primeiro intervalo de silêncio. No fim de quinze minutos levantou-se.

- Espere um pouco - disse o convalescente -. Iaiá, vai chamar tua madrasta.

Iaiá levantou-se para obedecer à ordem do pai, mas, no momento em que ia pousar nos joelhos deste o livro que tinha no regaço, ouviu-se um passo na areia e logo depois esta súbita palavra:

- Pronto!

Era Estela. O sobressalto de Jorge, por mais imperceptível que fosse, não escapou a Iaiá, e fê-la sorrir à socapa; atribuiu-o ao susto. Estela apareceu; mas, porque já sabia da presença de Jorge, pôde encará-lo sem nenhuma aparente comoção. Houve certa hesitação entre um e outro, mas foi curta. A moça inclinou-se levemente e estendeu-lhe a mão. Jorge apertou-lha.

- Ainda não tinha tido a satisfação de a ver depois de minha volta do Paraguai - disse ele.

- É verdade - respondeu a moça -; vivemos muito retirados.

Estela chegou-se ao marido, afastando-se Jorge para deixá-la passar.

- Pronto - repetiu ela.

Trazia-lhe um copo de geleia. Enquanto Luís Garcia tomava a refeição de convalescente, Estela ficou de pé, ao lado dele; depois sentou-se e dirigiu a palavra ao filho de Valéria. Naturalmente falou-lhe da campanha. Ele respondeu sem afetação e com tranquilidade.

- Já tive ocasião de lhe dizer que foi um dos heróis - interveio Luís Garcia olhando para a mulher -; mas o Dr. Jorge teima em escurecer os seus próprios serviços. Iaiá não é a mesma cousa.

- Sim? - perguntou Jorge.

- É verdade; durante toda a campanha matou pelo menos metade do exército paraguaio.

Iaiá lançou ao pai um olhar de graciosa censura.

- Não precisa corar - disse Jorge -; era uma maneira de ser patriota; mas creia que havia menos perigo em matar o inimigo cá de longe.

- O senhor matou algum? - perguntou Iaiá no fim de um instante.

- Provavelmente. Na guerra é preciso matar ou morrer. Não me importava morrer; mas há ocasiões em que o mais indiferente é um herói. Eu fiz o que pude.

Como a tarde começasse a escurecer, Estela disse ao marido que era tempo de recolher-se a casa. Ergueu-se para lhe dar o braço. Jorge porém apressou-se a substituí-la. Estela foi adiante, e quando Jorge entrou na sala com o convalescente, ela preparava a cadeira em que este devia sentar-se, uma larga e extensa cadeira de vime. Luís Garcia esperou alguns instantes, enquanto a mulher colocava as almofadas, resvalando serenamente de um lado para outro.

Durante essa curta espera, Jorge olhava para a moça, e era a primeira vez que o fazia mais detidamente. Pouca era a diferença entre a Estela de 1866 e a de 1871. Tinha o mesmo rosto pálido e os mesmos olhos severos. As feições não haviam mudado; o busto conservava a graça antiga; estava só um pouco mais cheio, diferença que não destoava da estatura, que era alta. Esta era a pessoa física. Moralmente devia ser a mesma; mas que contraste na situação! Assim, a mulher que o levara a servir por quatro anos uma campanha árdua e porfiosa, e cuja imagem não esquecera no centro do perigo, essa mulher estava ali diante dele, ao pé de outro, feliz, serena, dedicada, como uma esposa bíblica. A comparação doeu-lhe; mas o coração começava a repetir-lhe juvenilmente as mesmas horas que já havia batido. Para refreá-lo, Jorge despediu-se dez minutos depois.

- Já! - exclamou Luís Garcia -. Foi visita de médico. Agradeço-lhe, entretanto, a atenção. Esta casa é sua; sabe que todos nós o estimamos.

Jorge seguiu para casa, contente e arrependido da visita que acabava de fazer. Gastou as primeiras horas da noite a folhear dez ou doze tomos, lendo a troncos duas ou três páginas de cada um, abertas ao acaso, e trinta vezes interrompido. Quando os olhos estavam mais atentos na página aberta, o espírito saía pé ante pé e deitava a correr pela infinita campanha dos sonhos vagos. Voltava de quando em quando; e os olhos que haviam chegado mecanicamente ao fim da página tornavam ao princípio, a reatar o fio da atenção. Como se a culpa fosse do livro, trocava-o por outro e ia da filosofia à história, da crítica à poesia, saltando de uma língua a outra, e de um século a outro século, sem outra lei mais que o acaso.

O clarão da seguinte manhã dissipou uma parte dos cuidados da noite. O primeiro alvoroço tinha passado. Jorge disse a si mesmo que bastava ser homem, esquecer o incidente da véspera, e arredar para sempre a possibilidade de outros. Não repetiria a visita a Luís Garcia; e provavelmente não os veria nunca mais. Na rua do Ouvidor encontrou Procópio Dias, que lhe disse à queima-roupa:

- Entrei meia hora depois do senhor sair.

- Onde?

- Em Santa Teresa. Se se demora meia hora mais, encontrava-o e poderíamos ter descido juntos. Conhece há muito tempo o Luís Garcia?

- Desde muito moço.

- Também eu; mas não o via há dez anos. Está o mesmo homem; está melhor, porque casou com uma mulher bonita. Que gente é aquela?

- A mulher foi educada por minha mãe.

- Vê-se que sim. Oh! Falamos muito do senhor.

- Sim? - perguntou vivamente Jorge.

Procópio Dias olhou fixamente um instante; depois riu com a testa.

- Muito - repetiu ele -; eu e o Luís Garcia travamos um duelo de louvores, e se não há nisto vaidade creio que o venci; naturalmente porque sou mais expansivo do que ele. Na verdade, ele é seco, mas o pouco que disse, disse-o com sinceridade. Parece estimar-se muito aquela família.

Procópio Dias tornou a falar-lhe de Santa Teresa, na noite do dia seguinte, em uma casa onde jantaram juntos. Falou-lhe primeiramente em particular, depois diante de outros. A dona da casa, que era uma Diana caçadora de boatos e novidades, farejou algum mistério entre as rugas da testa de Procópio Dias, e dobrando as pontas do arco, disparou sutilmente uma flecha que ninguém viu, mas foi enterrar-se no coração de Jorge. Este fez boa cara ao tiro, mas lá dentro sangrou um pouco de irritação e medo. Sentia no fundo da consciência o calor de um sentimento honesto, e contudo a opinião tendia a apoderar-se dele e a devassar-lhe as cinzas do passado; cinzas frias ou mornas, é o que ele não podia ainda discernir. Confiado em si mesmo, Jorge tremia diante da opinião - a opinião do epigrama e da anedota, que começava a sacudir o seu riso escarninho e cru.

Inquieto e aborrecido, saiu dali pouco depois de jantar. O gracejo da dona da casa continuava a zumbir-lhe ao ouvido, ao mesmo tempo que a figura de Estela lhe surgia aos olhos, com o seu aspecto do costume. Já entrado na rua dos Inválidos, Jorge desandou o caminho e foi direito a um teatro, com o fim de aturdir-se e esquecer mais depressa. Eram nove horas e meia; assistiu a um resto de drama, que lhe pareceu jovial, e a uma comédia inteira, que lhe pareceu lúgubre. Não obstante, arejou o espírito dos cuidados da noite, e caminhou para casa mais leve e desassombrado. Era uma hora quando chegou; o criado entregou-lhe uma carta.

- A pessoa que trouxe esta carta disse que era urgente.

Jorge recebeu-a, sem conhecer a letra do sobrescrito. Era letra de mulher. Abriu-a sem pressa, mas não sem curiosidade. Não era longa; dizia simplesmente isto: "Ilmo. Sr. Doutor. Papai está muito mal; pede-lhe o favor de vir a nossa casa. - Lina Garcia."

- A que horas veio esta carta? - perguntou ele ao criado.

- Às sete.

Jorge fez um gesto de enfado e mandou buscar um tilbury. Daí uma hora parava à porta de Luís Garcia. Era tudo silêncio. Jorge deteve-se alguns instantes, incerto sobre o que convinha fazer. O perigo, se perigo houve, podia ter passado, e toda a família estaria em repouso. Espreitou pela porta do jardim, e viu uma claridade frouxa, através de uma veneziana. Logo depois ouviu passos na areia. Era o Sr. Antunes que sentira parar o tilbury.

- Meu genro está mal - disse o pai de Estela -; teve esta manhã uma recaída e perto das oito horas cuidamos perdê-lo.

Jorge entrou.

Luís Garcia estava prostrado; a febre ardia-lhe sinistramente nos olhos. De um lado e de outro do leito, viam-se a mulher e a filha, aparentemente quietas, mas gastando toda a força moral em suster a angústia que ameaçava fazer-se em lágrimas.

- Que tem? - perguntou Jorge aproximando-se do enfermo.

- Uma febrinha importuna - respondeu este.

A um sinal, Estela e Iaiá retiraram-se da alcova, onde só ficou Jorge.

Mandando chamar o moço, Luís Garcia punha em execução um pensamento que lhe brotara no calor da febre. Ouviu do médico algumas palavras que lhe fizeram supor a probabilidade da morte; e, não tendo amigos nem parentes, e não querendo confiar a mulher e a filha ao sogro, lançou mão da pessoa que lhe pareceu ter a sisudez bastante e a influência necessária para as dirigir e proteger.

- Seu pai foi amigo de meu pai - disse ele -; eu fui amigo de sua família; devo-lhe obséquios apreciáveis. Se eu morrer, minha mulher e minha filha ficam amparadas da fortuna, porque o dote de uma servirá para ambas, que se estimam muito; mas ficam sem mim. É verdade que meu sogro, mas... mas meu sogro tem outras ocupações, está velho, pode faltar-lhes de repente. Quisera pedir-lhe que as protegesse e guiasse; que fosse um como tutor moral das duas. Não é que lhes falte juízo; mas duas senhoras sozinhas precisam de conselhos... e eu... desculpe-me se sou indiscreto. Promete?

Jorge prometeu tudo, com o fim de o tranquilizar, porque Luís Garcia parecia excessivamente aflito com a ideia daquela eterna separação. O pedido afigurou-se-lhe singular; atribuiu-o à exaltação febril do doente. Soube depois que a vida de Luís Garcia dependia da primeira crise que fizesse a enfermidade, segundo havia declarado o médico.

Eram quase quatro horas quando Jorge de lá saiu. Voltou às nove e achou o médico. A crise era esperada na tarde desse dia, e só então se poderia dizer se a vida do enfermo estava perdida ou salva. Foi o que o médico lhe repetiu, à porta do jardim, aonde Jorge o foi acompanhar.

- Não obstante - concluiu o médico -, ele tem outra doença que o deve matar dentro de alguns meses, um ano ou ano e meio.

- Coração?

- Justamente.

Esta notícia impressionou o moço.

- Não será ilusão da medicina? - perguntou ele.

O médico abanou a cabeça, e saiu. Jorge encaminhou-se para casa, mas teria dado apenas três passos, quando viu Estela que vinha ao seu encontro. A moça parou diante dele.

- Que lhe disse o médico? - perguntou.

- Tem esperanças; logo de tarde poderá afiançar mais alguma cousa.

- Só isso?

- Só.

- Não o desenganou?

- Não.

Estela refletiu um instante.

- Dê-me sua palavra - disse ela.

Jorge estendeu-lhe a mão, sobre a qual Estela deixou cair a sua, não menos fria que pálida.

- Sou amigo de seu marido - disse Jorge depois de alguns instantes -; creia que ele pode contar com toda a minha dedicação.

Estela pareceu acordar do momentâneo torpor; atentou no moço, retirou a mão e respondeu com um simples gesto de assentimento. A alma subjugada tornara à natural atitude. Jorge viu-a entrar em casa e ficou só alguns minutos, a recordar a revelação do médico, e a sentir que, ao pé da tristeza que o pungia, havia alguma cousa semelhante a um sentimento egoísta e cruel.

Entre a esperança e o receio gotejaram algumas horas longas, até que a crise veio e passou, sem levar consigo a vida ameaçada. Na manhã seguinte a alegria foi tamanha em redor do enfermo, que ele viu claramente o perigo e a salvação. Nem a filha nem a mulher pareciam alquebradas do trabalho e da vigília; estavam frescas, risonhas, ágeis, partindo entre si o pão da alegria, como haviam partido irmamente o pão da angústia.

Durante a moléstia e a convalescença, Jorge visitou-os uma vez por dia; e força é dizer que, se por um instante houve em seu coração um impulso egoísta, tal impulso não se lhe repetiu depois; serviu ao doente com desinteresse e lealdade. A família deste mostrou-se-lhe agradecida. Luís Garcia recordou ao moço o pedido que lhe fizera na noite em que o mandara chamar, e recordou-lho, não só para lhe agradecer a aquiescência, como para explicá-lo. Mas a explicação era difícil, porque ele cedera principalmente à aversão que lhe inspirava o sogro, em quem não tinha a mínima confiança; não obstante as meias palavras de que usou, Jorge entendeu tudo.

A frequência trouxe a necessidade. Levado pelas circunstâncias, Jorge acostumou-se às visitas, e amiudou-as. No mês de setembro, a pretexto de calor, que ainda não fazia, transferiu a residência para a casa que tinha em Santa Teresa, e que não ficava a longa distância da de Luís Garcia. Não havia que reparar no caso; sua mãe tinha o costume de passar ali três a quatro meses no ano. Demais, nas últimas semanas, ele começara a fazer-se menos visto e menos frequentado. Podia facilmente passar a outra vida mais reclusa.

Entretanto, como essa mudança antecipada para Santa Teresa podia não ter em si mesma toda a explicação razoável, Jorge buscou enganar-se a si próprio, reunindo os elementos e lançando ao papel as primeiras linhas de um trabalho, que jamais devia acabar, mas que, em todo caso, legitimava a necessidade de repouso. Nos intervalos deste é que visitava a casa de Luís Garcia, uma ou duas vezes por semana. Aos domingos, tinha sempre a jantar o Sr. Antunes, com quem jogava uma partida de bilhar. Tentou ensinar-lhe o xadrez, mas desanimou ao fim de cinco lições.

- Ah! Mas nem todos têm o seu talento! - exclamou triunfalmente o pai de Estela.

Luís Garcia jogava o xadrez. Era o recreio usual entre ele e Jorge; outras vezes saíam a passeio até curta distância. Luís Garcia aceitava de boa sombra essas distrações, que não eram turbulentas nem cansativas, mas brandas e pausadas, como ele. Demais nem sempre eram distrações sem fruto. Jorge apreciava agora melhor as conversações que não eram puros nadas, e os dous trocavam ideias e observações. Luís Garcia era homem de escassa cultura, sobretudo irregular; mas tinha os dons naturais e a longa solidão dera-lhe o hábito de refletir. Também ele ia à casa de Jorge, cujos livros lia de empréstimo. Era tarde; já não estava moço; faltava-lhe tempo e sobrava-lhe fome; atirou-se sôfrego, sem grande método nem escrupulosa eleição; tinha vontade de colher a flor ao menos de cada cousa. E porque era leitor de boa casta, dos que casam a reflexão à impressão, quando acabava a leitura, recompunha o livro, incrustava-o, por assim dizer, no cérebro; embora sem rigoroso método, essa leitura retificou-lhe algumas ideias e lhe completou outras, que só tinha por intuição.

A necessidade intelectual de Luís Garcia contribuiu assim para tornar mais íntima a convivência, única exceção na vida reclusa que ele continuava a ter, ainda depois de casado. Jorge pela sua parte não desmentia até ali o bom conceito que o outro formava de suas qualidades; e a família viu lentamente estabelecer-se a intimidade e a estima entre os dous homens. Uma noite, saindo Jorge da casa de Luís Garcia, este e a mulher ficaram no jardim algum tempo. Luís Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valéria.

- Pode ser que eu me engane - concluiu o céptico -; mas persuado-me que é um bom rapaz.

Estela não respondeu nada; cravou os olhos numa nuvem negra, que manchava a brancura do luar. Mas Iaiá, que chegara alguns momentos antes, ergueu os ombros com um movimento nervoso.

- Pode ser - disse ela -; mas eu acho-o insuportável.

IX

A nova ordem de cousas perturbou profundamente o ânimo de Estela. O procedimento de Jorge, por ocasião da moléstia do marido, não lhe pareceu esconder nenhuma intenção particular; mas durante a convalescença, e sobretudo depois dela, afigurou-se-lhe que a ideia do moço era insinuar-se na família. Para quê? Estela supunha que o amor de Jorge, ao fim de tão longo período, estaria acabado de todo, como produto da primeira estação. Não lhe negou um pouco de gratidão, quando viu os obséquios que prestara ao marido enfermo, com tanta solicitude, discrição e dignidade. Agora, porém, ao ver a frequência e a convivência, supôs alguma cousa mais do que a simples afeição tradicional. Que encanto podia oferecer a casa de uma família retirada e obscura a um homem criado em mais aparente plana social? Seu meio era outro; tendências de espírito ou ambições de futuro o deviam levar a outra esfera. Esta consideração lhe pareceu decisiva. Concluiu que a paixão, vencida ou comprimida, soltava outra vez o brado da revolta; e se assim era, Jorge devia estar pior que em 1866, porque então os sentimentos rompiam com violência e sinceridade, ao passo que agora o seu principal aspecto era a dissimulação. O amor, se amor havia, trazia já os olhos abertos e dispunha da razão; de estouvado, tornava-se cauteloso e sutil.

"Que ideia faz ele de mim?", perguntou Estela a si mesma.

Quando esta palavra lhe soou no espírito, Estela sentiu-se diminuída e humilhada aos olhos de Jorge. Cumpria pôr termo a uma vida de reticências e dubiedade. Estela cogitou no meio de fazer cessar a intimidade dos dous homens; quando menos, a frequência de Jorge naquela casa. Pensou em pedi-lo diretamente a Jorge; mas rejeitou desde logo a ideia, aliás incompatível com sua índole; depois, pensou em dizer tudo ao marido.

Uma noite, na primeira semana de novembro, Estela assentou definitivamente revelar ao marido a única página de seu passado. Estava sozinha, no jardim, e vira desmaiar o crepúsculo da tarde - uma tarde cinzenta e amortecida. De quando em quando o espírito volvia ao passado, e toda ela estremecia com uma sensação estranha, misteriosa e insuportável. A noite caiu de todo, e a alma de Estela mergulharia também na vaga e pérfida escuridão do futuro, se a rude voz do escravo não a viesse acordar.

- Nhanhã está apanhando sereno - disse Raimundo.

Estela ergueu-se e foi dali ao gabinete do marido. Luís Garcia trabalhava, à claridade de um lampião, que toda convergia para ele e os papéis que tinha diante de si, graças ao efeito de um abat-jour. O resto do aposento ficava na meia obscuridade.

- Que é? - perguntou Luís Garcia sem levantar a cabeça.

Estela parou do outro lado da secretária; Luís Garcia ergueu então a cabeça e olhou para ela, sem lhe poder ver o transtorno das feições.

- Que é? - repetiu.

Vendo-o entregue ao trabalho, por amor dela e da filha, Estela hesitou; pareceu-lhe crueldade dar-lhe, em troca da proteção e do afeto, um desengano e uma aflição. Hesitou um instante, e passou da hesitação à renúncia. Conteve-se e saiu. Escolheu o silêncio.

Mas o silêncio só por si não melhorava nada; tarde ou cedo o marido viria a ler em seu rosto o constrangimento, em relação a Jorge, constrangimento inexplicável, que ele podia interpretar contra ela. Foi então que a serpente lhe ensinou a dissimulação. A necessidade deu-lhe a intuição maquiavélica; isto é, a ocasião não consentia um rosto franco, sinceramente hostil, mas um ar ameno, uma cordialidade de superfície, friamente cortês, mas cortês. Desse modo, salvava-se a paz doméstica, e era o essencial. Ao mesmo tempo mostraria a destemidez de seu coração, capaz de afrontar todo o artifício do outro.

Com o tempo, verificou Estela que o procedimento de Jorge, se alguma intenção escondia, não a deixava sequer suspeitar; não lhe parecia já dissimulação, mas abstenção. Ele próprio a evitava; fugia às conversas longas, sobretudo às conversas solitárias. Era respeitoso e frio.

Com efeito, Jorge não havia cedido a nenhum plano preconcebido; ia à feição do tempo; metia-se por um atalho, sem saber se iria dar à estrada reta ou a um abismo. Nenhuma preocupação lhe ensombrava a fronte risonha e plácida. Dir-se-ia que, após longa e trabalhosa jornada, vingara o cume das delícias humanas.

A verdade é que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de sentimento para constituir-se ideia fixa. Nascido de uma primeira explosão de juventude, curtiu alguns anos de ausência. A ausência disciplinou os primeiros ardores, quebrou os ímpetos, afrouxou o alento; o amor atou aos ombros as asas de um misticismo quieto. Não parou nessa evolução. Do coração em que pousava tomou impulso e alou-se ao cérebro, onde assumiu a fixidez das resoluções definitivas. Não era já uma paixão, mas uma convicção, isto é, outra cousa. Pensava muitas vezes na consequência de herdar em breve prazo a esposa de Luís Garcia, resolução que lhe parecia necessária; era uma que ele dizia a si mesmo. E esse casamento tinha dous resultados: era uma reparação e uma desforra; reparação do mal que ele fizera, desforra do tratamento que ela lhe deu. Ambos tinham que reprochar um ao outro. O casamento absolvia-os. Talvez na balança comum não fossem iguais as dívidas, mas Jorge tinha certo fundo de equidade, e entendia que, se padecera muito e longo, não excedeu o padecimento à injúria que, a seus olhos, fora grave.

Os ralhos da consciência eram agora menos frequentes e menos ríspidos: é o efeito natural dessa ordem de situações violentas. Os mais rígidos podem chegar assim às complacências inexplicáveis, e o que é hoje nobre repugnância é amanhã hesitação pueril. Jorge não ficou estranho a essa lei do costume. De si para si julgava-se inocente, porque era impassível, esquecendo a letra do decálogo que não defende somente a ação, mas a própria intenção.

Duas circunstâncias perturbaram, entretanto, o espírito de Jorge, antes do fim daquele ano.

A primeira foi a assiduidade de Procópio Dias, que lhe pareceu pouco explicável. Procópio Dias era recebido com agasalho mais cordial do que ele. Em relação a Jorge, o procedimento de Estela era cauteloso e apenas afável; o de Iaiá era de algum modo medroso ou hostil; uma e outra pareciam alegrar-se quando Procópio Dias assomava à porta. Era uma expressão diferente. Este acompanhava-as às vezes nos passeios, ou conversava-as largo tempo, fazendo-as rir com uma espontaneidade que não tinham a falar com Jorge. Obedecia aos desejos da madrasta e aos caprichos da enteada, quaisquer que fossem, com tamanha tolerância e bom humor, que fazia despeitar o outro, sem o saber. Jorge atentou nos ditos e ações do intruso, e com o tempo veio a tranquilizar-se.

"É um celibatário necessitado da companhia de mulheres", disse consigo.

Procópio Dias não parecia outra cousa; a atmosfera feminina era para ele uma necessidade; o ruge-ruge das saias, a melhor música a seus ouvidos. Graças à idade, Iaiá era mais familiar do que Estela; às vezes chegava a "judiar" com ele, excesso que o pai ou a madrasta reprimia, e reprimia sem necessidade. Procópio Dias não manifestava nem sentia o menor despeito; achava-lhe graça e chegava a fazer coro com ela.

A segunda circunstância que projetou alguma sombra no espírito de Jorge foi justamente a hostilidade de Iaiá Garcia.

"Que diabo fiz eu a esta menina?", perguntava Jorge a si mesmo.

Durante a moléstia e a convalescença do pai, Iaiá tratara Jorge com muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois, começou a diminuir essa aparência, até que cessou de todo e se converteu noutra cousa, que visivelmente era repugnância, com uma pontazinha de hostilidade. Luís Garcia viu logo a diferença, tanto mais fácil de notar quanto que Estela, se não era já tão expansiva como nos primeiros dias, tratava ainda assim o filho de Valéria com uma afabilidade que salvava as aparências; a única exceção era a filha. Não deixou de a advertir; ponderou-lhe que Jorge era filho de uma pessoa a quem eles deviam estima, e de quem ela mesma houvera uma recordação póstuma; que essa circunstância devia atenuar a antipatia, se Jorge lhe era antipático. Iaiá ouvia e calava-se; emendava-se num dia, para reincidir toda a semana.

- És uma estranhona - disse uma vez o pai depois de lhe repetir a advertência.

Podia ser estranhice. A vida que Iaiá tivera durante largo tempo dera-lhe o amor exclusivo da solidão e da família. Mas no caso presente parecia ser alguma cousa mais do que isso. O rosto com que recebia Jorge não era o mesmo com que via outras pessoas. Jorge às vezes chegava quando ela estava ao piano; Iaiá interrompia-se habilmente, fazia gotejar dos dedos umas três ou quatro notas soltas e divergentes e erguia-se. Se ele ia conversar com ela e a madrasta, Iaiá tomava a parte mínima do diálogo e esquivava-se cautelosamente. Não sorria nunca se ele dizia uma cousa graciosa ou fazia cumprimento; não animava nunca a adoção de qualquer projeto que viesse dele; não lia os romances que ele lhe emprestava. Se era convidada a dizer o que pensava de um ou outro desses livros, fazia descair os cantos da boca com um gesto de indiferença. Não falava nunca de Jorge; aparecia-lhe o menos que podia. Este procedimento constante, não afrontoso, porque ela o disfarçava, impressionou o espírito do moço, que não lhe pôde descobrir a causa verdadeira, ou pelo menos verossímil.

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciúme filial. Iaiá adorava o pai sobre todas as cousas; era o principal mandamento de seu catecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitária, e porque amava Estela. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma afeição; não lhe diminuía nada do seu quinhão de filha.

Iaiá viu, entretanto, a mudança que houve nos hábitos do pai, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de setembro. Esse homem seco para todos, expansivo somente na família, abrira uma exceção em favor de Jorge; sem mostrar maneiras ruidosas, aliás incompatíveis com ele, era menos reservado, de mais fácil e continuado acesso. Não foi porém esse primeiro reparo que produziu em Iaiá a notada mudança; foi outro. Luís Garcia deu a Jorge algumas demonstrações de confiança pessoal, e no dia em que a filha viu a primeira, recordou-se da carta que escrevera ao moço na noite em que a moléstia do pai se agravara, e da confidência dos dois, cujo assunto nunca lhe chegara aos ouvidos. Neste instante sentiu borbulhar no coração uma primeira gota de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe alguma cousa. Não cogitou se haveria assunto que dous homens devessem tratar exclusivamente entre si; supôs-se despojada de uma parte da confiança do pai, e porque amava o pai sobre todas as cousas, seu amor tinha os ciúmes, as cóleras, os arrebatamentos do outro amor, e consequentemente os mesmos ódios e lástimas.

Conhecia o pai toda a intensidade da afeição filial da moça, e não era menor a do seu amor; mas ele dizia consigo filosoficamente, e não sem pesar, que a natureza se encarregaria de lhe ensinar outro sentimento menos grave, mas não menos intenso e imperioso. Quando ele assim refletia, contemplava a filha com um olhar já úmido das primeiras saudades.

Iaiá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era leve, ágil, súbita - com um pouco de destimidez -; às vezes áspera, mas dotada de um espírito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse falar também dos olhos, que, se eram límpidos como os de Eva antes do pecado, se eram de rola, como os da Sulamites, tinham como os desta alguma cousa escondida dentro, que não era decerto a mesma cousa. Quando ela olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da consciência alheia. Mas eram raras essas ocasiões. A expressão usual era outra, meiga ou indiferente, e mais de infância que de juventude. Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os lábios eram finos e enérgicos. Em resumo, as feições dos onze anos estavam ali desenvolvidas e mais acentuadas.

Uma tarde Luís Garcia recebeu ordem de ir imediatamente à casa do ministro. Saiu, deixando a mulher e a filha, ansiosas pelo resultado. Jorge apareceu pouco depois. A demora de Luís Garcia foi longa, e Jorge ter-se-ia retirado, se não fora a chegada do Sr. Antunes, que deu um sopro de vida à conversa que expirava. Nove horas, dez horas, onze horas bateram sem que Luís Garcia voltasse. Iaiá estava impaciente; receava alguma doença súbita do pai, um desastre qualquer. Eram onze horas e um quarto quando este entrou ofegante, porque viera depressa, tendo encontrado Raimundo, que, ouvindo as ânsias da moça, saíra a encontrá-lo e a dizer-lhas.

Iaiá atirou-se-lhe aos braços.

- Medrosa! - disse Luís Garcia abrangendo-lhe a cabeça com as mãos.

Sentou-se um instante para repousar; com a mão esquerda comprimia o coração. Logo depois ergueu-se, chamou Jorge e foi até uma das janelas. Conversaram em voz baixa dez minutos. Disse-lhe que talvez fosse obrigado a sair no fim daquela semana; tratava-se de uma necessidade de serviço; salvo uma hipótese, a viagem era inevitável.

Iaiá não tirava os olhos de um e de outro; despediu-se de Jorge dando-lhe as pontas dos dedos. Foi no dia seguinte que Estela lhe disse que talvez fossem obrigadas a sair por algum tempo. Ouvindo a notícia, Iaiá compreendeu a confidência da véspera, e ficou consternada. Ela era a última que a recebia, e o primeiro fora um estranho, um intruso - esteve quase a dizer um inimigo. Nenhuma palavra do pai; nenhuma comunicação direta.

- A última!

Esse ressentimento exagerado era o próprio efeito da organização da moça, e, outrossim, de sua educação quase solitária. Para afastá-la de Jorge não foi preciso mais; o despeito apoderou-se inteiramente dela. Se até ali pouco lhe havia falado, esse pouco diminuiu ainda com o tempo; fez-se quase nada.

E essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a esbarrar-se, no caminho de seus destinos.

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