Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

VI

Antes de irmos direito ao centro da ação, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela.

Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha se protrairia ainda cerca de quatro anos. O cálculo do general Mitre, relativo aos três meses de Buenos Aires a Assunção, tinha já caído, é certo, no abismo das ilusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vãs. A do general argentino, que era já uma afirmação errada, exprimiu contudo, no seu tempo, a convicção dos três povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a ilusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito. Não obstante, era difícil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse até março de 1870. Supunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaiti, a derrubar Humaitá, a vencer o ditador, não nos três meses do General Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade.

Isto posto, não admira que Valéria receasse a cada instante a terminação da guerra e a pronta volta do filho. Se tal cousa acontecesse, ela teria dado um golpe inútil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valéria preferia as soluções radicais. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de aniquilar as últimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estela. Assim procedendo, satisfaria também a afeição que tinha à moça, afeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estela e o pai havia contrastes morais de difícil conciliação. Cada um deles falava língua diferente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ela consigo), na escolha de um consorte.

Dous meses depois do embarque de Jorge, Valéria mandou chamar o Sr. Antunes a Santa Teresa, onde tinha uma casa de verão. O recado foi escrito, circunstância que lhe deu certa solenidade. Nunca até então a viúva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o duas ou três vezes à filha, esteve tentado de mostrá-lo ao vizinho fronteiro. Enquanto se vestia, pô-lo sobre a mesa, lançando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de cor as expressões corteses, espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamente na algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo enfaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, e supôs que se tratava de algum obséquio que ela lhe ia encomendar.

Era obséquio, e não lho pedia a viúva; prestava-o, e não se demorou muito em dizê-lo. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar Estela.

- Não quisera fazê-lo sem o seu consentimento - concluiu ela -; por isso o mandei chamar.

Do mais ínfimo a que um homem haja baixado, a natureza pode fazê-lo grave, ainda que por um só minuto. Esse minuto teve-o o pai de Estela. Imóvel e sem fala a princípio; depois, ainda sem fala, mas não já imóvel, o Sr. Antunes revelou em seu rosto, aliás vulgar, uma comoção digna. A dignidade, porém, expirou com o silêncio. Quando ele abriu a boca para agradecer a prova de afeição que a viúva lhe dava à filha, a alma readquiriu o trejeito habitual. Valéria cortou-lhe o discurso com uma arte tão superior, que o pai de Estela antes sentiu do que compreendeu. A viúva tinha a verdadeira generosidade, que consiste menos em prestar o obséquio do que em dissimulá-lo; disse-lhe que, dotando Estela, cumpria um desejo do desembargador, e, sem esperar pelo necrológio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo e afetuoso inventário das qualidades da moça.

- É muito boa filha - concluiu a viúva -; tem qualidades dignas de todo o apreço, e, além do mais, sou amiga dela.

- Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a ser boa filha, não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora tem razão. Saiu à mãe, que era uma santa alma.

- Estela não o é menos. E bonita! Enfim, pode vir amar alguém, não lhe parece?

- Pode, pode - assentiu o Sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei se ela já não amará. É tão calada! Ultimamente parece andar triste...

- Triste?

- Distraída... assim, como pessoa que não tem o pensamento sossegado. Não sei se aquilo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja, porque ela é forte e tem boa aparência. Coitadinha! Mas sempre alegre... isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre triste... ou por outra...

Valéria sorriu mentalmente daquela confusão que o Sr. Antunes fazia, e que atribuiu ao alvoroço que naturalmente a notícia do dote lhe causara; interrompeu-o dizendo que fosse lá com a filha.

Estela ouviu daí a meia hora a notícia da generosidade da viúva, que o pai se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou desanimado a cabeça.

- Não te entendo, filha! - replicou ele -. Hás de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não és rica, nem menos que rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, porque nada tenho. Há uma senhora que te estima, que te faz um benefício, e tu recebes isto como se fosse uma injúria.

A observação do pai chamou a filha à realidade da situação.

- Papai sabe que não sou de muito riso - disse ela -; pode ficar certo de que me alegrou muito a notícia que me deu.

Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquele favor uma espécie de perdas e danos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria os lábios dos beijos que ela forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damned spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua mágoa. A altivez com que procedera desde aquela manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o ato inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a ação da viúva, por mais espontânea que fosse, tinha aos olhos da moça a consequência de fazer decorrer o benefício da mesma origem da afronta. Estela não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era tudo a mesma bolsa; e dali é que lhe vinha o dote.

Com essa ideia opressiva entrou ela em casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia; depois falou-lhe da beleza, das ocupações, de cem cousas alheias ao objeto que as reunia, dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.

Quinze ou vinte dias depois, Valéria interrogou diretamente Estela, e a resposta que obteve foi contrária a suas esperanças.

- Não amo ninguém - disse a moça -; e provavelmente não amarei nunca.

- Por quê? - replicou vivamente a viúva.

Estela sorriu.

- Podia dizer-lhe - respondeu ela - que não tenho coração...

- Seria mentir. Mas vais talvez dizer que um bom marido não é cousa fácil de achar...

- Isso.

- Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras a mais rara é um bom marido; mas o que é raro não é impossível. Meteu-se-me em cabeça que hei de descobrir uma joia. Se eu a encontrar, que farás tu?

- Aceito - disse a moça depois de um instante.

- Assim, não; não quero que a aceites sem vontade; hás de aceitá-la com amor... porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice de moça bonita. Deixa ver -continuou a viúva colocando-lhe a mão no peito -; tens, oh! Tens um coração que parece querer despedaçar-te o peito. Estela, tu estás doente!

- Que ideia! - exclamou a moça rindo -. Se eu vendo saúde! Não estou doente, estou comovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria. Mas um pouco de estima, certo interesse...

- Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a árvore.

Durante três meses não falaram do assunto. No fim desse tempo, tendo Valéria descido de Santa Teresa, Estela foi passar algumas semanas na rua dos Inválidos.

- Ainda nada? - perguntou a viúva logo que a viu.

- Cousa nenhuma - foi a resposta.

Dada a situação de uma e outra, não era fácil a Valéria encontrar-lhe o noivo desejado a menos de o designar a própria noiva, e essa era a mais improvável de todas as hipóteses.

Entretanto, a convivência fez renascer entre ambas alguns dos hábitos antigos. Valéria tornou a sentir a necessidade de a ter consigo, de a conversar, de depositar nela suas ideias e enxaquecas. Estela oferecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circunstância de ser moça, e ainda mais, a de ser bonita, qualidade simpática à viúva, que fora uma das belas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia restaurar inteiramente a situação anterior, a não ser a memória do passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual cautela, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar às vezes, sem poder compreender nunca. Não falavam de Jorge, nem da guerra, nem de cousa que pudesse reviver a lembrança do passado.

Começado o verão de 1867, Valéria transportou-se a Santa Teresa, onde Estela foi algumas vezes. Numa dessas vezes encontrou ali a filha de Luís Garcia, que caminhava para os treze anos, e concluía os estudos de colégio. Houve um instante de hesitação entre as duas. Iaiá, que era ainda a mesma criatura travessa e lépida, sentiu-se acanhada diante da gravidade de Estela, mas esse instante foi curto e a afeição, imediata. Acabado o verão, a viúva resolveu não descer à rua dos Inválidos; e, com o pretexto ou o motivo de que em Santa Teresa ficava mais só, alcançou que Estela fosse lá estar algum tempo. Estela subiu em março.

Já então Iaiá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver - e havia - simpático e atraente em sua pessoa, do que pelo esforço próprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra: assim viu depressa o que era menos agradável, para evitá-lo, e o que o era mais, para cumpri-lo. Essa qualidade ensinava-lhe a sintaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedário, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caráter de Valéria, Iaiá abriu a porta sem grande esforço.

Ia lá quase todos os domingos, às tardes, e algumas vezes de manhã, com tal ou qual repugnância do pai, para quem os domingos eram os dias de ouro, e só o eram com a condição do exclusivismo. Luís Garcia cedeu, não por causa da viúva, mas para satisfazer a filha, que parecia ter prazer em frequentar a casa. "É ainda criança", pensou ele; "convém dar-lhe festas". Quando Iaiá jantava em casa de Valéria, Luis Garcia, ou também jantava, ou ia buscá-la à noite, e trazia-a depois de uma hora de conversa. A presença de Estela tornou ainda mais aprazíveis à mocinha aquelas visitas, e, dentro de pouco tempo, era a afeição de Estela que mais lhe ocupava o coração.

A lei dos contrastes tinha ligado essas duas criaturas, porque tão petulante e juvenil era a filha de Luís Garcia, como refletida e plácida, a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, enquanto a outra vinha já do passado; e se Estela tinha necessidade de temperar a sua atmosfera moral com um raio da adolescência da outra, Iaiá sentia instintivamente que havia em Estela alguma cousa que sarar ou consolar.

Um dia, Iaiá foi encontrar Estela ao pé de uma mesa, com um álbum de retratos aberto diante de si. A moça estava tão embebida, que só deu pela presença de Iaiá quando esta parou do outro lado da mesa e inclinou os olhos para o álbum. Estela teve um pequeno sobressalto, mas dominou-se logo.

- Seu pai tem uma fisionomia de bom coração - disse ela.

- Não é verdade? - retorquiu a menina com entusiasmo

Efetivamente, uma das páginas do álbum continha o retrato de Luis Garcia; mas na outra página estava o retrato de Jorge, um dos três ou quatro que a viúva possuía na coleção. Iaiá, que adorava o pai, achou que a observação de Estela era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra fotografia. Estela fechou depressa o álbum com a mão trêmula, e mal pôde sorrir à insistência com que Iaiá voltou àquele assunto. Tinha o seio ofegante e o olhar vago, remoto, esvaído nas campanhas do Sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas essa comoção não durou mais de três a quatro minutos.

- A senhora podia casar-se com papai - disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra.

Estela teve novo sobressalto, mas dessa vez era só espanto. Como Iaiá a abraçasse pela cintura, ela inclinou o rosto sobre o rosto da menina, e perguntou sorrindo:

- Tinhas muita vontade de ser minha enteada?

- Tinha.

Estela abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de incredulidade. Já conhecia alguma cousa do caráter de Luís Garcia; rigorosamente era um esposo aceitável. Via nele um homem de afeições plácidas, medíocres, mas sinceras. Via-o respeitoso sem abatimento, polido sem afetação, falando pouco, mas com alguma ideia, em todo o caso com muita oportunidade, vivendo enfim para si e para a filha. De tudo o que observara concluía que a sobriedade era a lei moral desse homem, e que à taça da vida não pedia mais do que alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão somente uma crônica; basta-lhe fidelidade e algum estilo. Conquanto houvesse algumas semelhanças entre ambos, havia também diferenças, mas Estela podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o marido era aceitável, não lhe parecia que fosse possível. A gravidade exterior como que o rodeava de uma atmosfera impenetrável.

Iaiá não insistiu; mas dous ou três domingos depois, estando todos na chácara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estela se deveras lhe tinha afeição.

- Já disse que sim - acudiu Estela.

- Mas gosta muito de mim?

- Muito - repetiu Estela prolongando a primeira sílaba.

- Por que não vem morar comigo?

Riram-se os outros; Estela beijou-a na testa. Ficando sós, a viúva e Estela jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem atenção; depois tomaram chá, mas sem apetite; finalmente dormiram, mas sem sono. Talvez a mesma ideia as preocupava. No dia seguinte, Estela perguntou sorrindo à viúva:

- Se eu lhe disser que já achei um projeto de marido?

- Quem?

- O Luís Garcia.

Valéria apertou-lhe as mãos.

- Excelente homem - disse ela -; marido digno e capaz. Conheço-o há muitos anos; nunca desmereceu da nossa estima. E... amam-se?

- Isso agora é mais complicado - replicou Estela -; não posso dizer que o amo; contudo, desejaria ser sua mulher. Talvez ele não deseje ser meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me diga, uma vez que aprova a escolha, se posso esperar reciprocidade e se devo...

- Não deves fazer nada; incumbo-me de tudo.

Valéria não ocultou o contentamento. Não lhe tinha ocorrido nunca a ideia de os casar; Iaiá fê-la nascer, Estela abriu-a em flor; só faltava o fruto, e era justamente a parte difícil, porque a índole de Luís Garcia afigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrair segundas núpcias. Mas Valéria não desanimou. "Não se pode dizer que ele seja o ideal de todas as noivas", pensava ela; "não tem a expansão nem o verdor da primeira idade; mas deve ser um excelente marido". Luís Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma promoção de emprego, e, mediante isso, e alguns trabalhos extraordinários que lhe eram confiados, pôde ficar inteiramente a coberto das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradável a Iaiá.

Estela, entretanto, impunha uma condição.

- Não desejo parecer que me ofereço - disse ela -; seria desairoso para um e para outro, e não seria a realidade.

- Que te ofereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que o amas? - disse a viúva maliciosamente.

- Ou que o aprecio - emendou Estela -. Para um bom casamento não é preciso mais.

Luís Garcia não ficou pouco admirado quando Valéria daí a dias lhe perguntou se não tinha vontade de passar a segundas núpcias. Sorriu e ergueu os ombros; mas, insistindo a viúva, respondeu que a ideia de casar era já serôdia para ele.

- Não diga isso - tornou Valéria -. Iaiá está quase moça, vai deixar o colégio. O senhor vive só, e, tendo de dar companhia à sua filha, é melhor que lhe dê uma madrasta.

Luís Garcia abanou resolutamente a cabeça.

- Não tenho vocação para o casamento - disse ele depois de uma pausa -; minha verdadeira vocação é o celibato.

- Foi por isso que enviuvou?

- Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de quê, era rapaz.

- Quando teimo em alguma cousa, é difícil que não vença - disse a viúva depois de alguns instantes -. Há duas pessoas de quem gosto muito, ela e o senhor, ambas dignas uma da outra; e eu entendi que as devia casar, e hei de casá-las. Por que está a sorrir com esse ar incrédulo?

Como Luís Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valéria ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chácara; depois voltou-se para dentro.

- Ande ver sua noiva - disse ela.

Luís Garcia foi até à varanda; a viúva apontou-lhe para o grupo de Estela e Iaiá.

Na chácara havia um canteiro circular, plantado de grama, no centro do qual jorrava a água de um repuxo. A bacia deste era orlada de plantas, cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco, interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estela algumas, entretecera os talos formando uma capela, a pedido de Iaiá. Quando Luís Garcia chegou à janela, a moça concluía o difícil trabalho. Uma vez pronto, Iaiá, que olhava para ela, infantilmente ansiosa, inclinou a cabeça, e Estela cingiu-a com a grinalda rústica; depois recuou alguns passos, aproximou-se outra vez, concertou-a melhor. As folhas caíam-lhe sobre os ombros irregularmente ou erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria ideia de uma náiade casquilha. Estela mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ela e beijou-a repetidas vezes. Iaiá quis pagar-lhe o trabalho e a carícia devolvendo-lhe a grinalda, e colocando-lha ela mesma na cabeça. Estela recusou, mas como a menina insistisse, batendo impacientemente o pé, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Iaiá, que trepara a um banco, cingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfeito o seu capricho, saltou do banco ao chão.

Nesse momento, como Valéria falava a Luís Garcia, não viram estes dous que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; só deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estela. A moça correra à menina para a fazer levantar.

A queda fora pequena; Iaiá procurava sorrir, mas um seixo que havia no chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação na face.

- Não foi nada - dizia ela.

- Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papai que há de dizer... Anda cá.

Estela levou a menina pela mão até o repuxo; molhou o lenço na água; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ela, que sorria voluntariamente. Nesse momento, Luís Garcia, que havia descido logo, chegou ao grupo das duas.

- Não foi nada, papai - disse Iaiá lendo no rosto do pai o motivo que o trouxera -; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser travessa.

Luís Garcia estendera a mão direita sobre a cabeça da filha e examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada. Tranquilizou-se e repreendeu-a levemente. Estela, que interrompera a operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia ter sido mais grave. Luís Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obséquio.

- Demais, a culpada fui eu - disse Estela -, e sem desculpa, porque não sou criança. Vamos? - continuou ela pegando na mão da menina.

- Então? - perguntou a viúva a Luís Garcia logo que este voltou a ter com ela.

- Não falemos nisso, ou faça-me um milagre - disse ele secamente.

Não obstante a comoção que lhe ficou do procedimento afetuoso de Estela em relação a Iaiá, Luís Garcia riu no dia seguinte, ao lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando lá voltou, não ouviu falar mais em semelhante assunto, nem Estela lhe deu a entender a menor pretensão. Pareceu-lhe que Valéria consultara apenas o seu desejo particular.

Tratando a moça de perto, Luís Garcia havia já observado duas cousas: primeiro, o resguardo com que ela procedia, sem ostentar a intimidade de Valéria, nem cair nos ademanes da servilidade; depois, um ar de tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estela devia padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de suas qualidades morais. Supô-las verdadeiras, mas supô-las também caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a diferença, dizia ele, que há um prazo fatal para que as graças percam o primitivo frescor, e a flor expire o seu último cheiro - ao passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um princípio de corrupção, que destrói em breve termo todas as florescências do primeiro sol.

Estela não desistira da ideia e cogitava um meio de chegar à execução, não obstante a confiança da viúva, que lhe dizia:

- Descansa, a rede está lançada.

Era justamente essa ideia de rede que repugnava ao espírito direto e simples de Estela. Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça.

O resto foi obra de Iaiá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projeto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estela foi a mais poderosa força que modificou o pai. Era uma afeição intensa a dessas duas criaturas; ao passo que Iaiá dava a Estela uma porção de ternura de filha, Estela achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luís Garcia testemunhou esse movimento recíproco e, por assim dizer, fatal. Se Iaiá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior a seus anos, Estela tinha as condições necessárias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viúva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivência, a afeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe à menina, e antes legítima que mercenária, finalmente, a certeza de que a Estela não repugnava a solução, tais foram os primeiros elementos da decisão de Luís Garcia.

Faltava só o milagre, e o milagre veio. Iaiá adoeceu um dia em casa de Valéria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu ocasião a que Estela manifestasse de modo inequívoco toda a ternura de seu coração. Luís Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e contínua com que Estela tratou da doente. Esse último espetáculo desarmou-o de todo. Entre eles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis. Era um ato simples e grave. E foi o que Estela lhe disse a ele, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas.

- Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.

- Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil - confessou Luís Garcia -; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não pudesse inspirar, mas porque eu já o não poderia ter.

- Tanto melhor - concluiu Estela -; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

O casamento foi aprovado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma com que um réu sancionaria a própria execução. Não somente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caráter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viúva, luta em relação à filha; mas cedeu, porque ele nascera para não resistir. Hábil, no entanto, em espremer algum lucro dos males inevitáveis, uma vez perdida a confiança na eficácia da recusa, aceitou o acordo, não somente com aparência cordial mas ainda entusiasta.

- O dote faz-lhe foscas - gemia ele filosoficamente.

A viúva serviu de madrinha a Estela. Sua alegria era sincera e tanto ou quanto desinteressada. Quase se não lembrava já do perigo que, dous anos antes, lhe atordoara o espírito. As cartas de Jorge eram tão livres de qualquer opressão, tão exclusivamente militares! Além disso, a consciência ficava satisfeita de um desenlace que, de certo modo, compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estela. Finalmente, a satisfação com que a viu aceitar casamento, aliás sugerido por ela própria, e a felicidade de que foi testemunha durante os primeiros tempos deram-lhe a convicção de que a moça estava já inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão deste, tinha fé que o tempo fizera a sua obra.

VII

Três meses depois da chegada ao Rio de Janeiro, tinha Jorge liquidado todos os negócios de família. Os haveres herdados podiam dispensá-lo de advogar ou de seguir qualquer outra profissão, uma vez que não fosse ambicioso e regesse com critério o uso de suas rendas Tinha as qualidades precisas para isso, umas naturais, outras obtidas com o tempo. Os quatro anos de guerra, de mãos dadas com os sucessos imediatamente anteriores, fizeram-lhe perder certas preocupações que eram, em 1866, as únicas de seu espírito. A vida à rédea solta, o desperdício elegante, todas as seduções juvenis eram inteiramente passadas.

O espetáculo da guerra, que não raro engendra o orgulho, produziu em Jorge uma ação contrária, porque ele viu, ao lado da justa glória de seu país, o irremediável conflito das cousas humanas. Pela primeira vez meditou; admirou-se de achar em si uma fonte de ideias e sensações, que nunca lhe deram os recreios de outro tempo. Contudo, não se pode dizer que viera filósofo. Era um homem, apenas, cuja consciência reta e cândida sobrevivera às preocupações da primeira quadra, cujo espírito, temperado pela vida intensa de uma longa campanha, começava de penetrar um pouco abaixo da superfície das cousas.

Querendo adotar um plano de vida nova, renegou a princípio todos os hábitos anteriores, disposto a dar à sociedade tão somente a estrita polidez. Teve primeiro ideia de ir estabelecer-se em algum recanto silencioso e escuro no interior; mas desistiu logo, cedendo à necessidade de ficar mais à mão de uma viagem transatlântica, ideia a que aliás nunca deu princípio de execução.

Os primeiros três meses passaram depressa; foram empregados em liquidar o inventário. Poucos legados deixara a viúva. Um deles interessa-nos, porque recaiu em favor de Iaiá Garcia. A viúva beneficiava assim, indiretamente, o marido de Estela. Jorge aprovou cordialmente o ato de sua mãe. Não aprovou menos o dote de Estela, mas o sentimento do vexame que experimentou, logo que dele teve notícia, honrava a delicadeza de seu coração.

Luís Garcia dera-se pressa em visitar o filho de Valéria. A entrevista desses dous homens, que o curso dos sucessos colocara em tão delicada situação, foi cordial, mas não expansiva. Jorge não achou Luís Garcia mais velho; era o mesmo. Não o achou também menos reservado que antes. A conversa, em começo, não foi além dos fatos gerais; falaram da guerra, e das vitórias. Jorge referiu alguns episódios, que o outro ouviu com interesse; e, como parecesse olvidar seus próprios feitos:

- Vejo que é modesto - observou Luís Garcia -; felizmente lemos as folhas e as partes oficiais.

- Fiz o que pude - respondeu Jorge -; era preciso vencer ou ser vencido. Que é feito de tanta gente que ainda não vi? - continuou ele para desviar o assunto.

- Cada qual segue o seu destino. Meu sogro creio que já o visitou...

- Já.

- A propósito, deixe-me agradecer os benefícios que devo a sua mãe...

Jorge quis interrompê-lo com o gesto.

- Perdão; é meu dever - continuou Luís Garcia gravemente. A Sra. D. Valéria quis mostrar ainda à última hora a simpatia que sempre lhe mereci. Duas vezes o fez, além de outras. Primeiramente, resolveu-me a casar outra vez, cousa que estava longe de meus cálculos. Foi ela a primeira autora dessa transformação de minha vida, e em boa hora o foi, porque não me podia fazer maior obséquio. Requintou o obséquio, ocultando até a última hora a prova de ternura que desde alguns meses antes dera a minha mulher; tinha-a dotado, como deve saber...

Jorge fez um gesto afirmativo.

- Achou que não era bastante e deixou a minha filha um legado, que será o seu dote... Gostava muito dela. Não podendo agradecê-lo à benfeitora, permita que o agradeça ao...

- Desta vez há de obedecer-me - interrompeu Jorge com brandura -; falemos de outra cousa.

- Sim; falemos de minha mulher. Saiba que rematou dignamente a obra de sua mãe; e mais uma vez me fez compreender o benefício do casamento. Logo depois de casado, propôs-me aceitar, em favor de minha filha, a parte com que a Sra. D. Valéria lhe manifestara sua afeição. Gostei de a ouvir, porque era sinal de desinteresse, mas recusei, e recusei sem eficácia. Cedi, enfim; e não podia ser de outro modo. Folgo de lhe dizer essas cousas porque são raras...

Jorge fechou o rosto ao ouvir essas palavras de Luís Garcia. Adivinhara a causa do desinteresse de Estela. "Eterno orgulho!", pensou ele. Depois refletiu no caso e perguntou a si mesmo se a moça teria confiado ao marido alguma cousa do que se passara entre eles. Era difícil percebê-lo, mas não era acertado supô-lo. Nenhuma mulher o faria nunca, Estela menos que nenhuma outra. Interrogou o rosto de Luís Garcia; achou-o plácido e imóvel. Após alguns segundos de silêncio, estendeu-lhe a mão.

- Permite-me então que o felicite? - disse ele.

- De coração - acudiu Luís Garcia. E depois de erguer-se: - Se eu tivesse o sestro de dar conselhos, dir-lhe-ia que se casasse.

- Pode ser.

- Não lhe pergunto pela outra paixão; creio que a esqueceu de todo.

- De todo.

Luís Garcia apertou-lhe cordialmente a mão e saiu, depois de lhe oferecer a casa. Jorge ficou alguns instantes pensativo. A notícia do dote de Estela causara-lhe certo vexame; a notícia da doação pela moça em favor da enteada produzia-lhe agora um sentimento mesclado de admiração e despeito. Ele sentia arder no mais fundo do coração da moça um resíduo de ódio, e em seu próprio coração não podia deixar de aprovar o ato.

Sendo forçoso pagar a visita a Luís Garcia, Jorge demorou o cumprimento desse dever enquanto lhe foi possível fazê-lo sem reparo. Um dia, enfim, sabendo por intermédio do Sr. Antunes que a família não estava em casa, foi a Santa Teresa e deixou lá um bilhete de visita.

A vida de Jorge foi então dividida entre o estudo e a sociedade à qual cabia somente uma parte mínima. Estudava muito e projetava ainda mais. Delineou várias obras durante algumas semanas. A primeira foi uma história da guerra, que deixou por mão, desde que encarou de frente o monte de documentos que teria de compulsar e as numerosas datas que seria obrigado a coligir. Veio depois um opúsculo sobre questões jurídicas e logo duas biografias de generais. Tão depressa escrevia o título da obra como a punha de lado. O espírito sôfrego colhia só as primícias da ideia, que aliás entrevia apenas. Uma vez, uma só vez, lembrou-se de escrever um romance, que era nada menos que o seu próprio; ao cabo de algumas páginas, reconheceu que a execução não correspondia ao pensamento, e que não saía das efusões líricas e das proporções da anedota.

Quando mais disposto se achava a compor essa autobiografia, ocorreu vagar a casa da Tijuca, a mesma aonde fora uma vez com sua mãe e Estela, ponto de partida dos sucessos que lhe transformaram a existência. Quis vê-la novamente; talvez ali achasse uma fonte de inspiração. Foi; achou-a quase no mesmo estado. Entrou curioso e tranquilo. Pouco a pouco sentiu que o passado começava a reviver; a ressurreição foi completa quando penetrou na varanda, em que da primeira vez achara o casal de pombos, solitário e esquecido. Já lá não estavam as pobres aves! Tinham voado ou morrido, como as esperanças dele, e tão discretamente, que a ninguém revelaram o desastrado episódio. Mas as paredes eram as mesmas; eram os mesmos o parapeito e o ladrilho do chão. Jorge encostou-se ao parapeito, onde estivera Estela, com os pombos ao colo, diante dele, naquela fatal manhã. O que sentia nesse outro tempo, posto frisasse o amor, tinha ainda um pouco de estouvamento juvenil. Contudo a vista das paredes nuas e frias da varanda abria-lhe na alma a fonte das sensações austeras, e ele tornou a ver os olhos férvidos e o rosto pálido da moça; pareceu até escutar-lhe o som da voz. Viu também a sua própria violência; e, como em meio de tantas vicissitudes, trazia ainda a consciência íntegra, a recordação fê-lo estremecer e abater. Jorge fincou os braços no parapeito e fechou a cabeça nas mãos.

- Olá, senhor dorminhoco! São horas de almoçar.

Jorge ergueu vivamente a cabeça e olhou para a chácara, donde lhe pareceu que saíra a voz. Na chácara, a vinte passos de distância, estava um homem, que sorria para ele, com as mãos nas costas, seguras a uma grossa bengala. Jorge sentiu um calefrio, como se lhe descobrissem o segredo do passado. Só depois de desfeita a primeira sensação, respondeu sorrindo:

- Não durmo; estou pensando nos aluguéis.

- Muda-se para aqui?

- Não.

- A casa é sua?

- É. Suba cá.

O homem galgou os seis degraus da escada de tijolo e entrou na varanda, onde Jorge assumira exclusivamente o papel de proprietário, olhando atentamente para as paredes do edifício.

- Que faz por aqui, Sr. Procópio Dias, às dez horas da manhã? - disse Jorge logo que o outro apareceu.

- Passei a noite na Tijuca; soube que esta casa vagara, vim vê-la; não sabia que era sua. Está um pouco estragada.

- Muito.

- Muito?

- Parece.

Procópio Dias abanou a cabeça com um gesto de lástima.

- Não é assim que deve responder um proprietário - disse ele -. Meu interesse é achá-la arruinada; o seu é dizer que apenas precisa de algum conserto. A realidade é que a casa está entre a minha e a sua opinião. Olhe, se está disposto a concordar sempre com os inquilinos, é melhor vender as casas todas que possui - ou fica perdido... Com que então esta casa é sua? A aparência não é feia; há alguma cousa que pode ser consertada e ficará então excelente. Não é casa moderna; mas é sólida. Eu já a vi quase toda; desci à chácara, e estava a examiná-la quando o senhor apareceu na varanda.

- Quer ficar com ela?

- Ingênuo! - respondeu Procópio Dias batendo-lhe alegremente no ombro. Se eu confesso que ela não está muito estragada é porque não a quero para mim. É grande demais; e depois, fica muito longe da cidade. Se fosse mais para baixo...

- Mas no caso de que haja por aí algum namoro? - ponderou Jorge sorrindo.

- Falemos de outra cousa - acudiu o outro faiscando-lhe os olhos

Os olhos de Procópio Dias eram cor de chumbo, com uma expressão refletida e sonsa. Tinha cinquenta anos esse homem, uns cinquenta anos ainda verdes e prósperos. Era mediano de carnes e de estatura, e não horrivelmente feio; a porção de fealdade que lhe coubera, ele a disfarçava, quando podia, por meio de qualidades que adquirira com o tempo e o trato social. Fazia às vezes um movimento que lhe descrevia na testa cinco rugas horizontais. Era uma das suas maneiras de rir. Além dessa particularidade, havia o feitio do nariz, que representava um triângulo de lados iguais, ou quase: nariz a um tempo sarcástico e inquisidor. Não obstante a expressão dos olhos, Procópio Dias tinha a particularidade de parecer simplório, sempre que lhe convinha; nessas ocasiões é que ria com a testa. Não usava barba; ele próprio a fazia com o maior esmero. Via-se que era homem abastado. As roupas, graves no corte e nas cores, eram da melhor fazenda e do mais perfeito acabado. Naquela manhã trazia uma longa sobrecasaca abotoada até metade do peito, deixando ver meio palmo de camisa, infinitamente bordada. Entre o último botão da sobrecasaca e o único do colarinho, fulgia um brilhante vasto, ostensivo, escandaloso. Um dos dedos da mão esquerda ornava-se com uma soberba granada. A bengala tinha o castão de ouro lavrado, com as iniciais dele por cima - de forma gótica.

Jorge conheceu Procópio Dias no Paraguai, onde este fora negociar e triplicar os capitais, o que lhe permitiu colocar-se acima das viravoltas da fortuna.

Travaram relações, não íntimas, mas frequentes e agradáveis, e até certo ponto úteis a Procópio Dias, que obteve de Jorge mais de uma recomendação. Não obstante a frequência das relações, estavam longe da amizade estreita; e isso, não por esforço de Procópio Dias, cujas maneiras fáceis assediaram por muito tempo a inexperiência de Jorge. O motivo de Procópio Dias cessou com a guerra, desde que com a guerra cessara também o interesse mercantil. Jorge não tinha motivo contra ele; quando o conhecera estava no período melancólico.

- Ainda não respondeu à minha suspeita - disse Jorge dando o braço a Procópio Dias.

- O namoro?

- Sim.

- Nem sombras disso, meu caro! Ou antes... creio que vou entrar para um convento: é a minha última ambição.

Procópio Dias tinha dous credos. Era um deles o lucro. Mediante alguns anos de trabalho assíduo e finuras encobertas, viu engrossarem-lhe os cabedais. Em 1864, por um instinto verdadeiramente miraculoso, farejou a crise e o descalabro dos bancos, e retirou a tempo os fundos que tinha em um deles. Sobrevindo a guerra, atirou-se a toda a sorte de meios que pudessem tresdobrar-lhe as rendas, cousa que efetivamente alcançou no fim de 1869.

A não ser o segundo credo, é provável que Procópio Dias só liquidasse com a morte. Tendo chegado a uma posição sólida, aos cinquenta anos, achou-se diante de outra riqueza, não inferior àquela, que era o tempo. Ora, o segundo credo era o gozo. Para ele, a vida física era todo o destino da espécie humana. Nunca fora sórdido; desde as primeiras fases da vida, reservou para si a porção de gozo compatível com os meios da ocasião. Sua filosofia tinha dous pais: Luculo e Salomão - não o Luculo general, nem o Salomão piedoso, mas só a parte sensual desses dous homens, porque o eterno feminino não o dominava menos que o eterno estômago. Entre os colegas de negócio foi sempre tido como um feliz vencedor de corações fracos. E, ao invés de outros, não punha nisso a menor vaidade ou gloríola; preferia a cautela e a obscuridade, não em atenção ao pudor público, mas porque era mais cômodo. Nenhuma diva mundana teria jamais a audácia de cortejá-lo na rua ou sorrir-lhe simplesmente; perdia o tempo e o sacerdote. Gozava para si, que é a perfeição sensual.

Não conhecia Jorge nem a vida nem o caráter do outro. Procópio Dias tinha o pior mérito que pode caber a um homem sem moral: era insinuante, afável, conversado; tinha certa viveza e graça. Era bom parceiro de rapazes e senhoras. Para os primeiros, quando eles o pediam, tinha a anedota crespa e o estilo vil; se lhes repugnava isso, usava de atavios diferentes. Com senhoras era o mais paciente dos homens, o mais serviçal, o mais buliçoso - uma joia.

- Ninguém o vê - dizia ele daí a duas horas, à mesa do almoço de Jorge, na casa da rua dos Inválidos. Não conheço os seus amigos de outro tempo, mas devo crer que todos lhe censuram essa vida de bicho-do-mato. Nos teatros... nunca vai aos teatros?

- Quase nunca.

- Vamos hoje?

- Corruptor! - disse Jorge sorrindo.

De noite foram ao teatro. Procópio Dias estava de veia; a palestra, a cena, o próprio tempo, tudo conspirou para dissipar as sombras de melancolia que a manhã acumulara na fronte de Jorge.

- Não se deixe apodrecer na obscuridade, que é a mais fria das sepulturas - dizia Procópio Dias, à mesa de um hotel, onde fora cear.

Jorge não comeu nada. Malgrado o prazer que achava em estar com ele, não quis aceitar-lhe o obséquio da ceia, apesar de lhe ter feito o do almoço. Procópio Dias percebeu isso mesmo, mas não se molestou: abaixou a cabeça, deixou passar essa onda de desconfiança e surgiu fora, a rir. Saíram dali uma hora depois. A evocação da Tijuca tinha-se esvaído.

Jorge deixou-se persuadir dos conselhos do outro. Abriu mão do último livro planeado, contentando-se com tê-lo vivido. Demais, o tempo ia minando a antiga sensação, e a vida social tornava a prendê-lo em suas malhas.

Entre as pessoas que tornou a ver, figurava a mesma Eulália, com quem a mãe quisera casá-lo, alguns anos antes. Eulália não ficara solteira; estava na lua de mel, uma lua de mel que durava mais de um ano. O casamento fora a vara mosaica, mediante a qual se lhe abrira no coração uma fontezinha de ternura. Encontraram-se num baile. Nenhum deles sentiu acanhamento; como nunca chegaram a tratar dos projetos de Valéria, puderam falar com a mesma isenção de 1866. A diferença é que Eulália, que era feliz, exagerava a felicidade para melhor mostrá-la a Jorge e convencê-lo de que antes ganhara do que perdera com a recusa dele.

- Vá lá à rua de Olinda - disse a moça, quero mostrar-lhe meu filho.

Jorge foi. Eulália mostrou-lhe o filho, criança que valia por duas, tão gorda e vigorosa era. Jorge chegou a pegar nele, mas não sabia haver-se com as rendas, os babados, as fitas. Eulália, que possuía já toda a destreza materna, tomou-lho das mãos.

- O senhor não entende disto - disse ela.

E depois de concertar a touca da criança, beijou-a muitas vezes, riu-se para ela, fez-lhe um monólogo, tudo com uma graça e poesia, que Jorge estava longe de lhe supor cinco anos antes. Ele contemplava essa jovem mãe, elegante e natural, e sentia-se tomado de inveja e cobiça.

"A felicidade é isto mesmo", pensou ele.

Voltou lá algumas vezes, fez-se íntimo da casa. Começou a receber também. Viu entre os frequentadores de sua casa o pai de Estela, que achou nele a benevolência do desembargador. O Sr. Antunes era conviva certo ao almoço dos domingos; dava-lhe notícias do genro e da filha. Ele pranteava ainda a quimera esvaída, e achava não sei que dolorido prazer em falar de Estela ao genro de suas ambições. Demais, era um como desforço do outro, a respeito de quem aventurou mais de uma queixa. Jorge, porém, ouvia-o sem lhe responder nada.

No meado do ano de 1871, fez Jorge uma excursão a Minas Gerais, com o fim de ajoelhar-se à sepultura de sua mãe, cujos ossos transportaria oportunamente para um dos cemitérios do Rio de Janeiro. A excursão durou seis semanas. Jorge visitou alguns parentes, e regressou nos princípios de agosto.

Um incidente transtornou-lhe os planos.

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