Iaiá Garcia
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.
Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.
O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.
O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.
Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
V
As primeiras cartas de Jorge foram todas à mãe. Eram longas e derramadas, entusiásticas, descuidosas e até pueris. Descontada a escassa porção de realidade que podia haver nelas, ficava um cálculo, que o coração de Valéria compreendeu; era adoçar-lhe a ausência e dissipar-lhe as apreensões.
Cedo se familiarizou Jorge com a vida militar. O exército, acampado em Tuiuti, não iniciava operações novas; tratava-se de reunir os elementos necessários para prosseguir a campanha de modo seguro e decisivo. Não havendo nenhuma ação grande, em que pudesse provar as forças e amestrar-se, Jorge buscava as ocasiões de algum perigo, as comissões arriscadas, cujo êxito dependesse de espírito atrevido, sagacidade e paciência. Esse desejo captou-lhe a simpatia dos chefes imediatos.
O coronel que o comandava atentou nele; sentiu-lhe a alma juvenil através do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observou que, no meio dos gozos fáceis e múltiplos do acampamento, convertido pela inação em povoado de recreio, Jorge conservava um retraimento monacal, um casto horror de tudo o que pudesse diverti-lo de curar das armas, ou somente de pensar nelas. O coronel era homem de seu ofício; amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da paz. Era bravo e ríspido. O que lhe destoou a princípio na pessoa de Jorge foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o jeito da vida civil, foi criando com o tempo a crosta de campanha. O desejo de trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nele um bom companheiro de armas, e ao fim de pouco tempo procurou distingui-lo.
Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia à mãe, não o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha não os considerava tais. Ouvia confidências de muitos, animava as esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a porta do coração à curiosidade transeunte. Devia ser entretanto interessante uma página somente da vida daquele militar, jovem, bonito, abastado, que não ia ao teatro nem aos saraus do acampamento, que ria poucas vezes e mal, que só falava da guerra, quando falava de alguma cousa.
Um dia, um major do Ceará foi achá-lo sentado em um resto de carreta inútil, lançado em sítio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a traçar com a ponta da espada uma estrela no chão.
- Capitão - disse o major -, parece que você está vendo estrelas ao meio-dia?
Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias, a traçar estrelas no chão ou a procurá-las nas campinas do céu. Os oficiais, arrastados pela simpatia, não lhe ficavam presos pela convivência; Jorge era não só taciturno, mas desigual, ora dócil, ora ríspido, muitas vezes distraído e absorto. Era distraído, sobretudo, quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quais rara vez acontecia que não viesse alguma do Sr. Antunes. O pai de Estela regava com a água salobra de seu estilo a esperança que não perdera. As suas cartas eram epitalâmios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais da filha, cuja alma, dizia ele, andava singularmente triste e acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar também de Estela; mais de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da pena; ele o riscava logo, assim como riscava qualquer frase que pudesse parecer alusiva aos seus sentimentos; as que escrevia ao pai da moça eram secas, sem especial interesse, polidas e frias.
Um dia, porém, antes de meado o ano de 1867, não pôde resistir à necessidade de segredar o amor a alguém ou proclamá-lo aos quatro ventos do céu. Ninguém havia ao pé dele que merecesse a confidência; Jorge alargou os olhos e lembrou-se de Luís Garcia, única pessoa estranha a quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das pegas, que contam tudo ou quase tudo.
Já nesse tempo o coração de Jorge padecera grande transformação. O amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em uma espécie de adoração mística, sentimento profundo e forte, que parecia respirar atmosfera mais alta que a do resto da criação. Ele mesmo o disse na carta a Luís Garcia, sem lhe denunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circunstância que pudesse pô-lo na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silêncio e contou-lhe o que sentia:
Não importa saber quem é - disse ele -; o essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo, e o triste é que não somente não sou amado, mas até estou certo de que sou aborrecido.
Minha mãe iludiu-se quando supôs que meu amor achara eco em outro coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguai, se soubesse que esta paixão solitária era o meu próprio castigo. Era; já o não é. A paixão veio comigo apesar do que lhe ouvi na véspera de embarcar; e se não cresceu, é porque não podia crescer. Mas transformou-se. De criança tonta, que era, fez-se homem de juízo. Uma crise, algumas léguas de permeio, poucos meses de intervalo foram bastantes a operar o milagre.
Não sei se a verei mais, porque uma bala pode pôr termo a meus dias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ela me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá comigo, e o seu nome será a última palavra que há de sair de meus lábios.
Meu amor não sabe já o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo: é uma fé religiosa, que pode viver inteira em muitos corações. Talvez o senhor me não compreenda. Os homens graves ficam surdos a estas sutilezas do coração. Os frívolos não as entendem. Eu mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma cousa nova, uma saudade sem esperança, mas também sem desespero: é o que me basta.
Jorge releu o escrito, e ora o achava claro demais, ora obscuro. Hesitou ainda algum tempo; enfim, dobrou a carta, fechou-a e remeteu-a para o Rio de Janeiro.
Quando a resposta lhe chegou às mãos, preparava-se o exército para deixar Tuiuti. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, a sonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de López. A resposta de Luís Garcia dizia pouco ou nada do objeto da carta de Jorge; compunha-se quase toda de conselhos e reflexões, dadas em linguagem sóbria e medida, reflexões e conselhos relativos quase exclusivamente aos deveres de homem e de soldado.
Jorge esperava aquilo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o gênio seco e gélido de Luís Garcia. Contudo, ficou momentaneamente desapontado e triste. Seria certo que nenhum coração simpatizava com seus secretos infortúnios ou suas venturas solitárias? Ao cabo de largos meses de separação, nem Estela pensaria nele, nem ele achava pessoa com quem partisse o pão das saudades, último alimento de um amor sem cônjuge. A consciência da solidão moral abateu-o um instante; esvaiu-se-lhe toda a força acumulada durante aqueles meses, e a alma caiu de bruços.
Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuiuti a Tuiu-Cué, a que se seguiu uma série de ações e movimentos, em que houve muita página de Plutarco. Só então pôde Jorge encarar o verdadeiro rosto à guerra, a cujo princípio não assistira; figurou em mais de uma jornada heroica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o; sentia-se tomado de admiração diante daquele mancebo, que combatia durante a batalha e calava depois da vitória, que comunicava o ardor aos soldados, não recuava de nenhuma empresa, ainda a mais arriscada, e a quem uma estrela parecia proteger com suas asas de luz.
Notou ele uma vez, em um dos combates mortíferos de dezembro de 1868, ano e meio depois da carta de Luís Garcia, que a temeridade do mancebo parecia ir além dos limites do costume, e que em vez de um homem que combatia, era ele um homem que queria morrer. A fortuna salvou-o. Findo o combate, recolhidos os feridos, repousados os corpos, o coronel foi ter com ele na barraca, e achou-o tristemente quieto, com os olhos inchados e parados. O coronel não reparou nisso; entrou a felicitá-lo pelo comportamento que tivera, ainda que um pouco excessivo. Jorge tinha-se respeitosamente erguido e olhava para o coronel sem dizer palavra. Este encarou-o e viu-lhe sinais de abatimento.
- Que diabo tem você, capitão?
- Nada - respondeu o moço.
- Recebeu ontem cartas do Rio de Janeiro?
- Uma: de minha mãe.
- Está boa?
- De perfeita saúde.
- Nesse caso...
O coronel parou e refletiu; depois continuou:
- Já sei o que é.
- O que é! - exclamou Jorge procurando sorrir.
- Há de fazer-se - continuou o coronel -; a cousa está a caminho, há de fazer-se, não lhe digo mais nada.
E bateu-lhe no ombro, com um gesto que tanto podia dizer: "sossegue, capitão", como: "parabéns, senhor major". Jorge entendeu esse trocadilho gesticular, e apertou as mãos do coronel, agradecendo-lhe, não o posto que lhe anunciava, mas a afeição que lhe tinha. O coronel encarou-o paternalmente alguns minutos.
"Subir! Não sonham com outra cousa" - rosnava ele consigo.
E saiu.
Jorge ficou só, acendeu um cigarro, que não pôde fumar até o fim. Depois sentou-se, desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releu algumas linhas do fim. A carta era de Luís Garcia. Dava-lhe notícias de sua mãe, que, por motivos de doença, fora tomar águas a Minas, e rematava com estas palavras assombrosas: "Resta-me dizer-lhe, se em alguma cousa lhe pode interessar minha vida, que sábado passado contraí segundas núpcias. Minha mulher é a filha do Sr. Antunes. Sua mãe serviu-nos de madrinha."
Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudo mais. O papel, recebido na véspera, estava amarrotado, como se lhe passara pelas mãos durante um ano. Olhava, relia e não podia entender; quando chegava a entender, não podia acreditar. O casamento de Estela era a seu ver um absurdo; mas, após os intervalos de dúvida, a realidade apossava-se dele. A razão mostrava-lhe que semelhante notícia devia ser certa. No fim de dous dias, tinha ele compreendido alguma cousa do silêncio de sua mãe: o motivo era, sem dúvida, o mesmo que a impelira a mandá-lo ao Paraguai. Nunca lhe falara de Estela, nem do casamento de Luís Garcia, silêncio calculado para de todo extinguir em seu coração os derradeiros murmúrios de um amor sem eco.
Jorge sentiu então um fenômeno próprio de tais crises - um movimento de ódio a todo o gênero humano, desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortês, violento, deliberadamente mau: efeito transitório, ao qual sucedeu um abatimento profundo. Ferido daí a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns meses do exército, cujas operações só continuaram depois de meado o ano seguinte. Jorge teve parte nas jornadas de Peribebuí e Campo Grande, não já na qualidade de capitão, mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas Valentinas. No fim do ano estava tenente-coronel, comandava um batalhão, e recebia os abraços de seu antigo comandante, contente de o ver sagrado herói.
Um acontecimento inesperado e desastroso veio ainda golpeá-lo cruelmente, logo depois de março de 1870, quando, acabada a guerra, estava ele em Assunção. Valéria falecera. Luís Garcia lhe deu essa triste notícia, que ele antes adivinhou do que leu, porque as últimas cartas já lhe faziam pressentir o lúgubre desenlace. Jorge adorava a mãe. Se só a contragosto viera para a guerra, não é menos certo que esta o cobrira de louros e que ele os quisera depositar no regaço de Valéria. O destino decidiu por outro modo, como se quisesse contrastar cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o coração.
No fim de outubro volveu ao Rio de Janeiro. Tinham passado quatro anos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge comparava os tempos, as angústias e as esperanças da partida com a glória e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz nem infeliz, mas nesse estado médio, que é a condição vulgar da vida humana. Comparava-se ao mar daquela manhã, nem borrascoso nem quieto, mas levemente empolado e crespo, tão prestes a adormecer de todo, como a crescer e arremessar-se à praia. Que aragem sonolenta ou que tufão destruidor viria roçar por ele a asa invisível? Jorge não o perscrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou ao tempo os casos do futuro.
VI
Antes de irmos direito ao centro da ação, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela.
Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha se protrairia ainda cerca de quatro anos. O cálculo do general Mitre, relativo aos três meses de Buenos Aires a Assunção, tinha já caído, é certo, no abismo das ilusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vãs. A do general argentino, que era já uma afirmação errada, exprimiu contudo, no seu tempo, a convicção dos três povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a ilusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito. Não obstante, era difícil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse até março de 1870. Supunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaiti, a derrubar Humaitá, a vencer o ditador, não nos três meses do General Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade.
Isto posto, não admira que Valéria receasse a cada instante a terminação da guerra e a pronta volta do filho. Se tal cousa acontecesse, ela teria dado um golpe inútil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valéria preferia as soluções radicais. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de aniquilar as últimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estela. Assim procedendo, satisfaria também a afeição que tinha à moça, afeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estela e o pai havia contrastes morais de difícil conciliação. Cada um deles falava língua diferente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ela consigo), na escolha de um consorte.
Dous meses depois do embarque de Jorge, Valéria mandou chamar o Sr. Antunes a Santa Teresa, onde tinha uma casa de verão. O recado foi escrito, circunstância que lhe deu certa solenidade. Nunca até então a viúva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o duas ou três vezes à filha, esteve tentado de mostrá-lo ao vizinho fronteiro. Enquanto se vestia, pô-lo sobre a mesa, lançando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de cor as expressões corteses, espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamente na algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo enfaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, e supôs que se tratava de algum obséquio que ela lhe ia encomendar.
Era obséquio, e não lho pedia a viúva; prestava-o, e não se demorou muito em dizê-lo. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar Estela.
- Não quisera fazê-lo sem o seu consentimento - concluiu ela -; por isso o mandei chamar.
Do mais ínfimo a que um homem haja baixado, a natureza pode fazê-lo grave, ainda que por um só minuto. Esse minuto teve-o o pai de Estela. Imóvel e sem fala a princípio; depois, ainda sem fala, mas não já imóvel, o Sr. Antunes revelou em seu rosto, aliás vulgar, uma comoção digna. A dignidade, porém, expirou com o silêncio. Quando ele abriu a boca para agradecer a prova de afeição que a viúva lhe dava à filha, a alma readquiriu o trejeito habitual. Valéria cortou-lhe o discurso com uma arte tão superior, que o pai de Estela antes sentiu do que compreendeu. A viúva tinha a verdadeira generosidade, que consiste menos em prestar o obséquio do que em dissimulá-lo; disse-lhe que, dotando Estela, cumpria um desejo do desembargador, e, sem esperar pelo necrológio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo e afetuoso inventário das qualidades da moça.
- É muito boa filha - concluiu a viúva -; tem qualidades dignas de todo o apreço, e, além do mais, sou amiga dela.
- Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a ser boa filha, não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora tem razão. Saiu à mãe, que era uma santa alma.
- Estela não o é menos. E bonita! Enfim, pode vir amar alguém, não lhe parece?
- Pode, pode - assentiu o Sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei se ela já não amará. É tão calada! Ultimamente parece andar triste...
- Triste?
- Distraída... assim, como pessoa que não tem o pensamento sossegado. Não sei se aquilo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja, porque ela é forte e tem boa aparência. Coitadinha! Mas sempre alegre... isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre triste... ou por outra...
Valéria sorriu mentalmente daquela confusão que o Sr. Antunes fazia, e que atribuiu ao alvoroço que naturalmente a notícia do dote lhe causara; interrompeu-o dizendo que fosse lá com a filha.
Estela ouviu daí a meia hora a notícia da generosidade da viúva, que o pai se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou desanimado a cabeça.
- Não te entendo, filha! - replicou ele -. Hás de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não és rica, nem menos que rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, porque nada tenho. Há uma senhora que te estima, que te faz um benefício, e tu recebes isto como se fosse uma injúria.
A observação do pai chamou a filha à realidade da situação.
- Papai sabe que não sou de muito riso - disse ela -; pode ficar certo de que me alegrou muito a notícia que me deu.
Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquele favor uma espécie de perdas e danos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria os lábios dos beijos que ela forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damned spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua mágoa. A altivez com que procedera desde aquela manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o ato inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a ação da viúva, por mais espontânea que fosse, tinha aos olhos da moça a consequência de fazer decorrer o benefício da mesma origem da afronta. Estela não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era tudo a mesma bolsa; e dali é que lhe vinha o dote.
Com essa ideia opressiva entrou ela em casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia; depois falou-lhe da beleza, das ocupações, de cem cousas alheias ao objeto que as reunia, dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.
Quinze ou vinte dias depois, Valéria interrogou diretamente Estela, e a resposta que obteve foi contrária a suas esperanças.
- Não amo ninguém - disse a moça -; e provavelmente não amarei nunca.
- Por quê? - replicou vivamente a viúva.
Estela sorriu.
- Podia dizer-lhe - respondeu ela - que não tenho coração...
- Seria mentir. Mas vais talvez dizer que um bom marido não é cousa fácil de achar...
- Isso.
- Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras a mais rara é um bom marido; mas o que é raro não é impossível. Meteu-se-me em cabeça que hei de descobrir uma joia. Se eu a encontrar, que farás tu?
- Aceito - disse a moça depois de um instante.
- Assim, não; não quero que a aceites sem vontade; hás de aceitá-la com amor... porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice de moça bonita. Deixa ver -continuou a viúva colocando-lhe a mão no peito -; tens, oh! Tens um coração que parece querer despedaçar-te o peito. Estela, tu estás doente!
- Que ideia! - exclamou a moça rindo -. Se eu vendo saúde! Não estou doente, estou comovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria. Mas um pouco de estima, certo interesse...
- Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a árvore.
Durante três meses não falaram do assunto. No fim desse tempo, tendo Valéria descido de Santa Teresa, Estela foi passar algumas semanas na rua dos Inválidos.
- Ainda nada? - perguntou a viúva logo que a viu.
- Cousa nenhuma - foi a resposta.
Dada a situação de uma e outra, não era fácil a Valéria encontrar-lhe o noivo desejado a menos de o designar a própria noiva, e essa era a mais improvável de todas as hipóteses.
Entretanto, a convivência fez renascer entre ambas alguns dos hábitos antigos. Valéria tornou a sentir a necessidade de a ter consigo, de a conversar, de depositar nela suas ideias e enxaquecas. Estela oferecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circunstância de ser moça, e ainda mais, a de ser bonita, qualidade simpática à viúva, que fora uma das belas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia restaurar inteiramente a situação anterior, a não ser a memória do passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual cautela, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar às vezes, sem poder compreender nunca. Não falavam de Jorge, nem da guerra, nem de cousa que pudesse reviver a lembrança do passado.
Começado o verão de 1867, Valéria transportou-se a Santa Teresa, onde Estela foi algumas vezes. Numa dessas vezes encontrou ali a filha de Luís Garcia, que caminhava para os treze anos, e concluía os estudos de colégio. Houve um instante de hesitação entre as duas. Iaiá, que era ainda a mesma criatura travessa e lépida, sentiu-se acanhada diante da gravidade de Estela, mas esse instante foi curto e a afeição, imediata. Acabado o verão, a viúva resolveu não descer à rua dos Inválidos; e, com o pretexto ou o motivo de que em Santa Teresa ficava mais só, alcançou que Estela fosse lá estar algum tempo. Estela subiu em março.
Já então Iaiá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver - e havia - simpático e atraente em sua pessoa, do que pelo esforço próprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra: assim viu depressa o que era menos agradável, para evitá-lo, e o que o era mais, para cumpri-lo. Essa qualidade ensinava-lhe a sintaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedário, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caráter de Valéria, Iaiá abriu a porta sem grande esforço.
Ia lá quase todos os domingos, às tardes, e algumas vezes de manhã, com tal ou qual repugnância do pai, para quem os domingos eram os dias de ouro, e só o eram com a condição do exclusivismo. Luís Garcia cedeu, não por causa da viúva, mas para satisfazer a filha, que parecia ter prazer em frequentar a casa. "É ainda criança", pensou ele; "convém dar-lhe festas". Quando Iaiá jantava em casa de Valéria, Luis Garcia, ou também jantava, ou ia buscá-la à noite, e trazia-a depois de uma hora de conversa. A presença de Estela tornou ainda mais aprazíveis à mocinha aquelas visitas, e, dentro de pouco tempo, era a afeição de Estela que mais lhe ocupava o coração.
A lei dos contrastes tinha ligado essas duas criaturas, porque tão petulante e juvenil era a filha de Luís Garcia, como refletida e plácida, a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, enquanto a outra vinha já do passado; e se Estela tinha necessidade de temperar a sua atmosfera moral com um raio da adolescência da outra, Iaiá sentia instintivamente que havia em Estela alguma cousa que sarar ou consolar.
Um dia, Iaiá foi encontrar Estela ao pé de uma mesa, com um álbum de retratos aberto diante de si. A moça estava tão embebida, que só deu pela presença de Iaiá quando esta parou do outro lado da mesa e inclinou os olhos para o álbum. Estela teve um pequeno sobressalto, mas dominou-se logo.
- Seu pai tem uma fisionomia de bom coração - disse ela.
- Não é verdade? - retorquiu a menina com entusiasmo
Efetivamente, uma das páginas do álbum continha o retrato de Luis Garcia; mas na outra página estava o retrato de Jorge, um dos três ou quatro que a viúva possuía na coleção. Iaiá, que adorava o pai, achou que a observação de Estela era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra fotografia. Estela fechou depressa o álbum com a mão trêmula, e mal pôde sorrir à insistência com que Iaiá voltou àquele assunto. Tinha o seio ofegante e o olhar vago, remoto, esvaído nas campanhas do Sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas essa comoção não durou mais de três a quatro minutos.
- A senhora podia casar-se com papai - disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra.
Estela teve novo sobressalto, mas dessa vez era só espanto. Como Iaiá a abraçasse pela cintura, ela inclinou o rosto sobre o rosto da menina, e perguntou sorrindo:
- Tinhas muita vontade de ser minha enteada?
- Tinha.
Estela abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de incredulidade. Já conhecia alguma cousa do caráter de Luís Garcia; rigorosamente era um esposo aceitável. Via nele um homem de afeições plácidas, medíocres, mas sinceras. Via-o respeitoso sem abatimento, polido sem afetação, falando pouco, mas com alguma ideia, em todo o caso com muita oportunidade, vivendo enfim para si e para a filha. De tudo o que observara concluía que a sobriedade era a lei moral desse homem, e que à taça da vida não pedia mais do que alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão somente uma crônica; basta-lhe fidelidade e algum estilo. Conquanto houvesse algumas semelhanças entre ambos, havia também diferenças, mas Estela podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o marido era aceitável, não lhe parecia que fosse possível. A gravidade exterior como que o rodeava de uma atmosfera impenetrável.
Iaiá não insistiu; mas dous ou três domingos depois, estando todos na chácara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estela se deveras lhe tinha afeição.
- Já disse que sim - acudiu Estela.
- Mas gosta muito de mim?
- Muito - repetiu Estela prolongando a primeira sílaba.
- Por que não vem morar comigo?
Riram-se os outros; Estela beijou-a na testa. Ficando sós, a viúva e Estela jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem atenção; depois tomaram chá, mas sem apetite; finalmente dormiram, mas sem sono. Talvez a mesma ideia as preocupava. No dia seguinte, Estela perguntou sorrindo à viúva:
- Se eu lhe disser que já achei um projeto de marido?
- Quem?
- O Luís Garcia.
Valéria apertou-lhe as mãos.
- Excelente homem - disse ela -; marido digno e capaz. Conheço-o há muitos anos; nunca desmereceu da nossa estima. E... amam-se?
- Isso agora é mais complicado - replicou Estela -; não posso dizer que o amo; contudo, desejaria ser sua mulher. Talvez ele não deseje ser meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me diga, uma vez que aprova a escolha, se posso esperar reciprocidade e se devo...
- Não deves fazer nada; incumbo-me de tudo.
Valéria não ocultou o contentamento. Não lhe tinha ocorrido nunca a ideia de os casar; Iaiá fê-la nascer, Estela abriu-a em flor; só faltava o fruto, e era justamente a parte difícil, porque a índole de Luís Garcia afigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrair segundas núpcias. Mas Valéria não desanimou. "Não se pode dizer que ele seja o ideal de todas as noivas", pensava ela; "não tem a expansão nem o verdor da primeira idade; mas deve ser um excelente marido". Luís Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma promoção de emprego, e, mediante isso, e alguns trabalhos extraordinários que lhe eram confiados, pôde ficar inteiramente a coberto das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradável a Iaiá.
Estela, entretanto, impunha uma condição.
- Não desejo parecer que me ofereço - disse ela -; seria desairoso para um e para outro, e não seria a realidade.
- Que te ofereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que o amas? - disse a viúva maliciosamente.
- Ou que o aprecio - emendou Estela -. Para um bom casamento não é preciso mais.
Luís Garcia não ficou pouco admirado quando Valéria daí a dias lhe perguntou se não tinha vontade de passar a segundas núpcias. Sorriu e ergueu os ombros; mas, insistindo a viúva, respondeu que a ideia de casar era já serôdia para ele.
- Não diga isso - tornou Valéria -. Iaiá está quase moça, vai deixar o colégio. O senhor vive só, e, tendo de dar companhia à sua filha, é melhor que lhe dê uma madrasta.
Luís Garcia abanou resolutamente a cabeça.
- Não tenho vocação para o casamento - disse ele depois de uma pausa -; minha verdadeira vocação é o celibato.
- Foi por isso que enviuvou?
- Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de quê, era rapaz.
- Quando teimo em alguma cousa, é difícil que não vença - disse a viúva depois de alguns instantes -. Há duas pessoas de quem gosto muito, ela e o senhor, ambas dignas uma da outra; e eu entendi que as devia casar, e hei de casá-las. Por que está a sorrir com esse ar incrédulo?
Como Luís Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valéria ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chácara; depois voltou-se para dentro.
- Ande ver sua noiva - disse ela.
Luís Garcia foi até à varanda; a viúva apontou-lhe para o grupo de Estela e Iaiá.
Na chácara havia um canteiro circular, plantado de grama, no centro do qual jorrava a água de um repuxo. A bacia deste era orlada de plantas, cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco, interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estela algumas, entretecera os talos formando uma capela, a pedido de Iaiá. Quando Luís Garcia chegou à janela, a moça concluía o difícil trabalho. Uma vez pronto, Iaiá, que olhava para ela, infantilmente ansiosa, inclinou a cabeça, e Estela cingiu-a com a grinalda rústica; depois recuou alguns passos, aproximou-se outra vez, concertou-a melhor. As folhas caíam-lhe sobre os ombros irregularmente ou erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria ideia de uma náiade casquilha. Estela mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ela e beijou-a repetidas vezes. Iaiá quis pagar-lhe o trabalho e a carícia devolvendo-lhe a grinalda, e colocando-lha ela mesma na cabeça. Estela recusou, mas como a menina insistisse, batendo impacientemente o pé, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Iaiá, que trepara a um banco, cingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfeito o seu capricho, saltou do banco ao chão.
Nesse momento, como Valéria falava a Luís Garcia, não viram estes dous que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; só deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estela. A moça correra à menina para a fazer levantar.
A queda fora pequena; Iaiá procurava sorrir, mas um seixo que havia no chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação na face.
- Não foi nada - dizia ela.
- Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papai que há de dizer... Anda cá.
Estela levou a menina pela mão até o repuxo; molhou o lenço na água; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ela, que sorria voluntariamente. Nesse momento, Luís Garcia, que havia descido logo, chegou ao grupo das duas.
- Não foi nada, papai - disse Iaiá lendo no rosto do pai o motivo que o trouxera -; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser travessa.
Luís Garcia estendera a mão direita sobre a cabeça da filha e examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada. Tranquilizou-se e repreendeu-a levemente. Estela, que interrompera a operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia ter sido mais grave. Luís Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obséquio.
- Demais, a culpada fui eu - disse Estela -, e sem desculpa, porque não sou criança. Vamos? - continuou ela pegando na mão da menina.
- Então? - perguntou a viúva a Luís Garcia logo que este voltou a ter com ela.
- Não falemos nisso, ou faça-me um milagre - disse ele secamente.
Não obstante a comoção que lhe ficou do procedimento afetuoso de Estela em relação a Iaiá, Luís Garcia riu no dia seguinte, ao lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando lá voltou, não ouviu falar mais em semelhante assunto, nem Estela lhe deu a entender a menor pretensão. Pareceu-lhe que Valéria consultara apenas o seu desejo particular.
Tratando a moça de perto, Luís Garcia havia já observado duas cousas: primeiro, o resguardo com que ela procedia, sem ostentar a intimidade de Valéria, nem cair nos ademanes da servilidade; depois, um ar de tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estela devia padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de suas qualidades morais. Supô-las verdadeiras, mas supô-las também caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a diferença, dizia ele, que há um prazo fatal para que as graças percam o primitivo frescor, e a flor expire o seu último cheiro - ao passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um princípio de corrupção, que destrói em breve termo todas as florescências do primeiro sol.
Estela não desistira da ideia e cogitava um meio de chegar à execução, não obstante a confiança da viúva, que lhe dizia:
- Descansa, a rede está lançada.
Era justamente essa ideia de rede que repugnava ao espírito direto e simples de Estela. Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça.
O resto foi obra de Iaiá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projeto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estela foi a mais poderosa força que modificou o pai. Era uma afeição intensa a dessas duas criaturas; ao passo que Iaiá dava a Estela uma porção de ternura de filha, Estela achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luís Garcia testemunhou esse movimento recíproco e, por assim dizer, fatal. Se Iaiá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior a seus anos, Estela tinha as condições necessárias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viúva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivência, a afeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe à menina, e antes legítima que mercenária, finalmente, a certeza de que a Estela não repugnava a solução, tais foram os primeiros elementos da decisão de Luís Garcia.
Faltava só o milagre, e o milagre veio. Iaiá adoeceu um dia em casa de Valéria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu ocasião a que Estela manifestasse de modo inequívoco toda a ternura de seu coração. Luís Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e contínua com que Estela tratou da doente. Esse último espetáculo desarmou-o de todo. Entre eles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis. Era um ato simples e grave. E foi o que Estela lhe disse a ele, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas.
- Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.
- Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil - confessou Luís Garcia -; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não pudesse inspirar, mas porque eu já o não poderia ter.
- Tanto melhor - concluiu Estela -; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.
O casamento foi aprovado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma com que um réu sancionaria a própria execução. Não somente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caráter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viúva, luta em relação à filha; mas cedeu, porque ele nascera para não resistir. Hábil, no entanto, em espremer algum lucro dos males inevitáveis, uma vez perdida a confiança na eficácia da recusa, aceitou o acordo, não somente com aparência cordial mas ainda entusiasta.
- O dote faz-lhe foscas - gemia ele filosoficamente.
A viúva serviu de madrinha a Estela. Sua alegria era sincera e tanto ou quanto desinteressada. Quase se não lembrava já do perigo que, dous anos antes, lhe atordoara o espírito. As cartas de Jorge eram tão livres de qualquer opressão, tão exclusivamente militares! Além disso, a consciência ficava satisfeita de um desenlace que, de certo modo, compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estela. Finalmente, a satisfação com que a viu aceitar casamento, aliás sugerido por ela própria, e a felicidade de que foi testemunha durante os primeiros tempos deram-lhe a convicção de que a moça estava já inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão deste, tinha fé que o tempo fizera a sua obra.