Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

IV

Era noite fechada, quando Jorge chegou à casa de Estela. O Sr. Antunes estava à porta e talvez contava com a visita; recebeu-o com alvoroço e tristeza.

Quatro meses haviam decorrido depois da cena da Tijuca, e durante esse tempo Jorge fora muitas vezes à casa da rua de D. Luísa. Não lhe fugira Estela nem o maltratara; usou a mesma serenidade e frieza de outro tempo, falando-lhe pouco, é certo, mas com tamanha isenção, que parecia não ter havido entre eles o menor dissentimento.

Pela sua parte, Jorge forcejava por apagar a lembrança daquele episódio, havendo-se com o respeito e consideração que lhe pareciam bastantes para resgatar a estima perdida. Às vezes ficavam a sós na sala, porque o Sr. Antunes inventava algum motivo que o obrigasse a eclipses parciais, com o fim único, dizia ele consigo - de ajudar a natureza. Mas sobretudo nessas ocasiões, aliás propícias, não transpunha Jorge a linha que a si mesmo traçara, não lhe sussurrava uma única palavra amorosa, não lhe deitava um só olhar que a pudesse fazer corar ou reagir. Qualquer alusão à cena da Tijuca, ainda de submissão, seria prejudicial à causa de Jorge; ele evitava esse erro trivial, nada dizendo que próxima ou remotamente pudesse lembrá-la à moça. Falavam pouco e de cousas indiferentes, como pessoas de nenhuma intimidade.

Foi só quando perdeu de todo a esperança de a vencer pelos meios ordinários, que ele aceitou a proposta de se alistar no exército. No dia em que lhes deu a notícia, a impressão no pai e na filha foi profunda, mas diversa, porque o pai ficou totalmente consternado e morto, ao passo que a filha sentiu a alma respirar livremente, e se uma voz secreta e medrosa lhe disse: não o deixes ir; outra mais dominadora e forte lhe bradou que a partida era a liberdade e a paz. A viagem, a distância, o tempo, a natureza das ocupações militares deviam arrancar ao moço um sentimento que Estela temia fosse origem de dissensões domésticas, e que em todo o caso a abatia a seus próprios olhos.

- É então amanhã? - perguntou o Sr. Antunes fazendo entrar o jovem capitão.

- Amanhã.

Estela recebeu-o como das outras vezes, sem embargo do pai, que parecia apostado em lhe tornar amargos esses últimos instantes. A tristeza do Sr. Antunes era mortal. Ele pertencia à falange daqueles espíritos que, através dos anos e ainda nos regelos do inverno, conservam as calcinhas da primeira idade, e para quem a vida tem sempre o aspecto dos castelos de cartas que construíram na infância. Uma vez penetrado da ideia de casar a filha com o bacharel, viveu dela, como se a vira praticada. O incidente da guerra não lhe desvendou a realidade da situação, mas pareceu-lhe que adiava o seu desejo, e bastava a consterná-lo. Agora que via fardado o filho de Valéria, prestes a embarcar no dia seguinte, creu deveras na separação. Após meia hora de conversa, o Sr. Antunes retirou-se alguns minutos da sala; ia ver charutos.

- Tome um dos meus - disse Jorge.

- Nada; os seus são muito fortes.

Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante acusação da parte do Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como havia fumado os do pai. Estela ficou humilhada com a resposta e a ação. Jorge, que estava de pé, junto a uma mesa, viu sair o pai de Estela, e ficou a olhar para o chão. A moça cravou os olhos no trabalho, que estava fazendo.

Jorge ergueu enfim os olhos e pousou-os na moça, cuja beleza lhe pareceu naquela noite ainda mais límpida e espiritual, justamente porque ele começava a vê-la através do nimbo da saudade. Ela atendia ao trabalho com uma quietação laboriosa. As mãos, que podiam emparelhar com as mais puras, moviam as agulhas sem aparente comoção nem tremor. Ao mancebo já não humilhava esse aspecto indiferente e digno; podia medir, em si mesmo, a diferença das situações, o caminho vencido, desde as primeiras ideias a respeito de Estela. Mas os minutos corriam e o silêncio acanhava-o cada vez mais; enfim, resolveu rompê-lo, e rompê-lo de modo que tirasse daquele minuto ou a salvação ou o naufrágio da vida que ia empreender. Deu dous passos para Estela.

- Talvez não nos vejamos mais - disse ele.

- Por quê? - disse Estela sem levantar os olhos.

- Posso ficar enterrado no Paraguai.

- Sua mãe não gostaria de ouvir isso

Seguiram-se ainda dous minutos. Jorge pôs toda a alma nestas palavras, ditas em voz baixa e triste:

- Embarco amanhã para o Sul. Não é o patriotismo que me leva, é o amor que lhe tenho, amor grande e sincero, que ninguém poderá arrancar-me do coração. Se morrer, a senhora será o meu último pensamento; se viver, não quero outra glória que não seja a de me sentir amado. Uma e outra cousa dependem só da senhora. Diga-me: devo morrer ou viver?

Estela tinha erguido a cabeça; quando ele acabou, achava-se de pé. Fitou-o alguns instantes com uma expressão muda e fria. A vaidade da mulher podia contentar-se daquela solene reparação, e perdoar; mas o orgulho de Estela venceu, e não deu lugar a nenhum outro sentimento de justiça ou de humanidade. Um jeito irônico torceu-lhe o lábio, donde saiu esta palavra má e desdenhosa:

- O senhor é um tonto.

Quando o pai voltou à sala, instantes depois, Jorge estava com uma das mãos no encosto de uma cadeira, pálido como um defunto. Estela fora até à porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro.

O Sr. Antunes não tinha observação; mas, ao ver o rosto dos dous, não era muito difícil adivinhar que alguma cousa se passara entre eles. Adivinhou-o; contudo, não atinara bem o que seria, se uma cena de dolorosa despedida, se outra cousa menos propícia a seus cálculos. Foi ao jovem capitão e pediu-lhe que se sentasse, mas Jorge declarou que ia sair e despediu-se. Sem encarar Estela, estendeu-lhe a mão, que ela apertou com o ar mais tranquilo do mundo. O pai espreitava uma lágrima furtiva, um gesto disfarçado, qualquer cousa que falasse em favor de suas esperanças. Nada; Estela não baixou o rosto nem escondeu os olhos. Jorge, sim; não obstante o esforço que fazia, tremia-lhe a mão ao apertar a do escrevente.

O Sr. Antunes acompanhou-o até a porta. Ali, antes de a abrir, quis abraçar o moço oficial.

- Dê-me essa triste honra - disse ele -; creia que estes braços são de amigo.

Jorge deixou-se ir, sem entusiasmo; mas quando sentiu o corpo do pai de Estela, pareceu-lhe que abraçava uma parte da moça, e apertou-o fortemente ao peito. Esta manifestação lisonjeou extremamente o outro; chegou a comovê-lo.

- Conte comigo - murmurou ele -; fico para ajudá-lo.

Jorge ouviu-o, apertou-lhe maquinalmente as mãos, recebeu um abraço último e atirou-se à rua.

Intolerável é a dor que não deixa sequer o direito de arguir a fortuna. O mais duro dos sacrifícios é o que não tem as consolações da consciência. Essa dor, padecia-a Jorge; esse sacrifício, ia consumá-lo.

Não foi dali para casa; não ousaria encarar sua mãe. Durante a primeira hora que se seguiu à saída da casa de Estela, não pôde reger os pensamentos; eles cruzavam-lhe o cérebro sem ordem nem dedução. O coração batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em quando o corpo era tomado de calefrios. Ia despeitado, humilhado, com um dente de remorso no coração. Quisera de um só gesto eliminar a cena daquela noite, quando menos apagá-la da lembrança. As palavras de Estela retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de vento colérico; ele trazia no espírito a figura desdenhosa da moça, o gesto sem ternura, os olhos sem misericórdia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a cena da Tijuca, e alguma cousa lhe dizia que essa noite era a desforra daquela manhã. Ora sentia-se odioso, ora ridículo.

"Tua mãe é quem tem razão", bradava uma voz interior; "ias descer a uma aliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus pais, justo é que pagues o erro indo correr a sorte da guerra. A vida não é uma égloga virgiliana, é uma convenção natural, que se não aceita com restrições, nem se infringe sem penalidade. Há duas naturezas, e a natureza social é tão legítima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, completam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder à primeira, desrespeitando as leis necessárias da segunda".

"Quem tem razão és tu", dizia-lhe outra voz contrária, "porque essa mulher vale mais que seu destino, e a lei do coração é anterior e superior às outras leis. Não ias descer; ias fazê-la subir; ias emendar o equívoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens".

Jorge caminhava assim, levado de sensações contrárias, até que ouviu bater meia-noite e caminhou para casa, cansado e opresso. Valéria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, oculta, vulgar nas mães, natural naquela véspera de uma separação acerba e longa, foi como um bálsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi também um remorso. Pungiu-lhe a consciência ao ver que esperdiçara algumas horas longe da criatura a quem verdadeiramente ia deixar saudades, única pessoa que pediria a Deus por ele. Valéria adivinhara onde estaria o filho, e tremia de medo à proporção que as horas passavam, receosa de que, amando-o Estela, um e outro houvessem subtraído a sua ventura ao jugo das leis sociais, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da retidão de seus atos. Não duvidava da natureza do mal; mas não excedia a ele o remédio escolhido? Supondo que esse pensamento era a sua primeira punição, reagiu fortemente, coligindo as energias abatidas e dispersas, e voltou a ser a mulher que era, com todas as suas fortes qualidades naturais ou contraídas. Demais, a que viria o arrependimento, se era tarde?

O filho entrou com as feições recompostas, mas tristes. Valéria recebeu-o sem nenhuma expressão de censura ou mágoa. Nada lhe disse; ele pouco falou e despediram-se sem expansão, aquela última noite que ia o moço dormir sob o teto de seus pais.

A noite foi para ele aflita e melancólica. Quase inteira gastou-a em inventariar a vida que ia acabar, em dar busca aos papéis, queimar as cartas dos amigos, repartir algumas prendas, e finalmente em escrever disposições testamentárias e cartas a pessoas íntimas. Perto das quatro horas deitou-se; às sete estava de pé. Valéria havia-se-lhe antecipado. Algumas pessoas foram despedir-se dele e acompanhar a mãe no solene momento da despedida. Entre essas figurava o pai de Estela, cuja tristeza, que era sincera, trazia uma máscara ainda mais triste.

Veio enfim o momento da despedida. Valéria dominara-se até onde pôde; mas o último instante concentrava tantas dores, que era impossível resistir-lhe. A organização moral da viúva era forte, mas a resistência fora prolongada, e a vontade gastou-se nesse esforço de todos os dias. Quando soou o instante definitivo da separação rebentaram dos olhos as lágrimas, não tumultuosas, cortadas de vozes e gemidos, mas dessas outras que retalham silenciosamente as faces, resto de uma dignidade que cede a custo à lei da natureza. Ela estendeu os braços, ainda formosos, sobre os ombros do filho; nessa postura contemplou-o algum tempo; depois beijou-o e apertou-o estreitamente ao coração.

- Vai, meu filho - disse com voz firme -. Eu fico rogando a Deus por ti; Deus é bom e te restituirá a meus braços. Serve a tua pátria e lembra-te de tua mãe!

Foram as últimas palavras. Jorge não as ouviu; tinha o espírito prostrado e surdo. Chorou também, menos silenciosamente que Valéria, mas as mesmas lágrimas aflitas.

- Adeus, querida mamãe! - disse ele arrancando-se enfim de seus braços.

Saiu; Valéria não o viu sair; dera costas a todos e foi lastimar na alcova seu voluntário infortúnio.

Pouco tempo depois, perdendo de vista a cidade natal, sentiu Jorge que dobrara a primeira lauda de seu destino, e ia encetar outra, escrita com sangue. O espetáculo do mar abateu-o ainda mais: alargava-se-lhe a solidão até o infinito. Os poucos dias da viagem, desfiou-os nessa atonia moral que sucede às catástrofes. Enfim, aportou a Montevidéu, seguindo dali ao Paraguai.

A segunda viagem, as gentes estranhas, as novas cousas, o movimento do teatro da guerra, produziram nele saudável transformação. O espírito elástico e móbil sacudiu as sombras de pesar que o enoiteciam, e, uma vez voltado o rosto para o lado do perigo, começou de enxergar, não a morte obscura ou ainda gloriosa, mas o triunfo e o laureado regresso. Bebido o primeiro hausto da campanha, Jorge sentiu-se homem. A hora das frivolidades acabara; a que começava era a do sacrifício austero e diuturno. Ia encarar trabalhos não sabidos, expor-se a perigos inopináveis; mas ia resoluto e firme, com a fronte serena e clara, e o lume da confiança aceso no coração.

V

As primeiras cartas de Jorge foram todas à mãe. Eram longas e derramadas, entusiásticas, descuidosas e até pueris. Descontada a escassa porção de realidade que podia haver nelas, ficava um cálculo, que o coração de Valéria compreendeu; era adoçar-lhe a ausência e dissipar-lhe as apreensões.

Cedo se familiarizou Jorge com a vida militar. O exército, acampado em Tuiuti, não iniciava operações novas; tratava-se de reunir os elementos necessários para prosseguir a campanha de modo seguro e decisivo. Não havendo nenhuma ação grande, em que pudesse provar as forças e amestrar-se, Jorge buscava as ocasiões de algum perigo, as comissões arriscadas, cujo êxito dependesse de espírito atrevido, sagacidade e paciência. Esse desejo captou-lhe a simpatia dos chefes imediatos.

O coronel que o comandava atentou nele; sentiu-lhe a alma juvenil através do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observou que, no meio dos gozos fáceis e múltiplos do acampamento, convertido pela inação em povoado de recreio, Jorge conservava um retraimento monacal, um casto horror de tudo o que pudesse diverti-lo de curar das armas, ou somente de pensar nelas. O coronel era homem de seu ofício; amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da paz. Era bravo e ríspido. O que lhe destoou a princípio na pessoa de Jorge foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o jeito da vida civil, foi criando com o tempo a crosta de campanha. O desejo de trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nele um bom companheiro de armas, e ao fim de pouco tempo procurou distingui-lo.

Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia à mãe, não o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha não os considerava tais. Ouvia confidências de muitos, animava as esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a porta do coração à curiosidade transeunte. Devia ser entretanto interessante uma página somente da vida daquele militar, jovem, bonito, abastado, que não ia ao teatro nem aos saraus do acampamento, que ria poucas vezes e mal, que só falava da guerra, quando falava de alguma cousa.

Um dia, um major do Ceará foi achá-lo sentado em um resto de carreta inútil, lançado em sítio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a traçar com a ponta da espada uma estrela no chão.

- Capitão - disse o major -, parece que você está vendo estrelas ao meio-dia?

Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias, a traçar estrelas no chão ou a procurá-las nas campinas do céu. Os oficiais, arrastados pela simpatia, não lhe ficavam presos pela convivência; Jorge era não só taciturno, mas desigual, ora dócil, ora ríspido, muitas vezes distraído e absorto. Era distraído, sobretudo, quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quais rara vez acontecia que não viesse alguma do Sr. Antunes. O pai de Estela regava com a água salobra de seu estilo a esperança que não perdera. As suas cartas eram epitalâmios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais da filha, cuja alma, dizia ele, andava singularmente triste e acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar também de Estela; mais de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da pena; ele o riscava logo, assim como riscava qualquer frase que pudesse parecer alusiva aos seus sentimentos; as que escrevia ao pai da moça eram secas, sem especial interesse, polidas e frias.

Um dia, porém, antes de meado o ano de 1867, não pôde resistir à necessidade de segredar o amor a alguém ou proclamá-lo aos quatro ventos do céu. Ninguém havia ao pé dele que merecesse a confidência; Jorge alargou os olhos e lembrou-se de Luís Garcia, única pessoa estranha a quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das pegas, que contam tudo ou quase tudo.

Já nesse tempo o coração de Jorge padecera grande transformação. O amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em uma espécie de adoração mística, sentimento profundo e forte, que parecia respirar atmosfera mais alta que a do esto da criação. Ele mesmo o disse na carta a Luís Garcia, sem lhe denunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circunstância que pudesse pô-lo na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silêncio e contou-lhe o que sentia:

Não importa saber quem é - disse ele -; o essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo, e o triste é que não somente não sou amado, mas até estou certo de que sou aborrecido.

Minha mãe iludiu-se quando supôs que meu amor achara eco em outro coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguai, se soubesse que esta paixão solitária era o meu próprio castigo. Era; já o não é. A paixão veio comigo apesar do que lhe ouvi na véspera de embarcar; e se não cresceu, é porque não podia crescer. Mas transformou-se. De criança tonta, que era, fez-se homem de juízo. Uma crise, algumas léguas de permeio, poucos meses de intervalo foram bastantes a operar o milagre.

Não sei se a verei mais, porque uma bala pode pôr termo a meus dias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ela me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá comigo, e o seu nome será a última palavra que há de sair de meus lábios.

Meu amor não sabe já o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo: é uma fé religiosa, que pode viver inteira em muitos corações. Talvez o senhor me não compreenda. Os homens graves ficam surdos a estas sutilezas do coração. Os frívolos não as entendem. Eu mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma cousa nova, uma saudade sem esperança, mas também sem desespero: é o que me basta.

Jorge releu o escrito, e ora o achava claro demais, ora obscuro. Hesitou ainda algum tempo; enfim, dobrou a carta, fechou-a e remeteu-a para o Rio de Janeiro.

Quando a resposta lhe chegou às mãos, preparava-se o exército para deixar Tuiuti. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, a sonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de López. A resposta de Luís Garcia dizia pouco ou nada do objeto da carta de Jorge; compunha-se quase toda de conselhos e reflexões, dadas em linguagem sóbria e medida, reflexões e conselhos relativos quase exclusivamente aos deveres de homem e de soldado.

Jorge esperava aquilo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o gênio seco e gélido de Luís Garcia. Contudo, ficou momentaneamente desapontado e triste. Seria certo que nenhum coração simpatizava com seus secretos infortúnios ou suas venturas solitárias? Ao cabo de largos meses de separação, nem Estela pensaria nele, nem ele achava pessoa com quem partisse o pão das saudades, último alimento de um amor sem cônjuge. A consciência da solidão moral abateu-o um instante; esvaiu-se-lhe toda a força acumulada durante aqueles meses, e a alma caiu de bruços.

Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuiuti a Tuiu-Cué, a que se seguiu uma série de ações e movimentos, em que houve muita página de Plutarco. Só então pôde Jorge encarar o verdadeiro rosto à guerra, a cujo princípio não assistira; figurou em mais de uma jornada heroica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o; sentia-se tomado de admiração diante daquele mancebo, que combatia durante a batalha e calava depois da vitória, que comunicava o ardor aos soldados, não recuava de nenhuma empresa, ainda a mais arriscada, e a quem uma estrela parecia proteger com suas asas de luz.

Notou ele uma vez, em um dos combates mortíferos de dezembro de 1868, ano e meio depois da carta de Luís Garcia, que a temeridade do mancebo parecia ir além dos limites do costume, e que em vez de um homem que combatia, era ele um homem que queria morrer. A fortuna salvou-o. Findo o combate, recolhidos os feridos, repousados os corpos, o coronel foi ter com ele na barraca, e achou-o tristemente quieto, com os olhos inchados e parados. O coronel não reparou nisso; entrou a felicitá-lo pelo comportamento que tivera, ainda que um pouco excessivo. Jorge tinha-se respeitosamente erguido e olhava para o coronel sem dizer palavra. Este encarou-o e viu-lhe sinais de abatimento.

- Que diabo tem você, capitão?

- Nada - respondeu o moço.

- Recebeu ontem cartas do Rio de Janeiro?

- Uma: de minha mãe.

- Está boa?

- De perfeita saúde.

- Nesse caso...

O coronel parou e refletiu; depois continuou:

- Já sei o que é.

- O que é! - exclamou Jorge procurando sorrir.

- Há de fazer-se - continuou o coronel -; a cousa está a caminho, há de fazer-se, não lhe digo mais nada.

E bateu-lhe no ombro, com um gesto que tanto podia dizer: "sossegue, capitão", como: "parabéns, senhor major". Jorge entendeu esse trocadilho gesticular, e apertou as mãos do coronel, agradecendo-lhe, não o posto que lhe anunciava, mas a afeição que lhe tinha. O coronel encarou-o paternalmente alguns minutos.

"Subir! Não sonham com outra cousa" - rosnava ele consigo.

E saiu.

Jorge ficou só, acendeu um cigarro, que não pôde fumar até o fim. Depois sentou-se, desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releu algumas linhas do fim. A carta era de Luís Garcia. Dava-lhe notícias de sua mãe, que, por motivos de doença, fora tomar águas a Minas, e rematava com estas palavras assombrosas: "Resta-me dizer-lhe, se em alguma cousa lhe pode interessar minha vida, que sábado passado contraí segundas núpcias. Minha mulher é a filha do Sr. Antunes. Sua mãe serviu-nos de madrinha."

Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudo mais. O papel, recebido na véspera, estava amarrotado, como se lhe passara pelas mãos durante um ano. Olhava, relia e não podia entender; quando chegava a entender, não podia acreditar. O casamento de Estela era a seu ver um absurdo; mas, após os intervalos de dúvida, a realidade apossava-se dele. A razão mostrava-lhe que semelhante notícia devia ser certa. No fim de dous dias, tinha ele compreendido alguma cousa do silêncio de sua mãe: o motivo era, sem dúvida, o mesmo que a impelira a mandá-lo ao Paraguai. Nunca lhe falara de Estela, nem do casamento de Luís Garcia, silêncio calculado para de todo extinguir em seu coração os derradeiros murmúrios de um amor sem eco.

Jorge sentiu então um fenômeno próprio de tais crises - um movimento de ódio a todo o gênero humano, desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortês, violento, deliberadamente mau: efeito transitório, ao qual sucedeu um abatimento profundo. Ferido daí a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns meses do exército, cujas operações só continuaram depois de meado o ano seguinte. Jorge teve parte nas jornadas de Peribebuí e Campo Grande, não já na qualidade de capitão, mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas Valentinas. No fim do ano estava tenente-coronel, comandava um batalhão, e recebia os abraços de seu antigo comandante, contente de o ver sagrado herói.

Um acontecimento inesperado e desastroso veio ainda golpeá-lo cruelmente, logo depois de março de 1870, quando, acabada a guerra, estava ele em Assunção. Valéria falecera. Luís Garcia lhe deu essa triste notícia, que ele antes adivinhou do que leu, porque as últimas cartas já lhe faziam pressentir o lúgubre desenlace. Jorge adorava a mãe. Se só a contragosto viera para a guerra, não é menos certo que esta o cobrira de louros e que ele os quisera depositar no regaço de Valéria. O destino decidiu por outro modo, como se quisesse contrastar cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o coração.

No fim de outubro volveu ao Rio de Janeiro. Tinham passado quatro anos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge comparava os tempos, as angústias e as esperanças da partida com a glória e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz nem infeliz, mas nesse estado médio, que é a condição vulgar da vida humana. Comparava-se ao mar daquela manhã, nem borrascoso nem quieto, mas levemente empolado e crespo, tão prestes a adormecer de todo, como a crescer e arremessar-se à praia. Que aragem sonolenta ou que tufão destruidor viria roçar por ele a asa invisível? Jorge não o perscrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou ao tempo os casos do futuro.

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