Coletânea

Histórias da Meia Noite

1873

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Histórias da meia-noite, segunda coletânea de narrativas curtas de Machado de Assis, contém seis contos, quase todos publicados anteriormente no Jornal das Famílias, periódico voltado para um público predominantemente feminino e conservador. A primeira edição em livro, única em vida do autor, data de 1873, o que a situa entre os dois primeiros romances de Machado: Ressurreição (1872) e A mão e a luva (1874). Ainda estamos longe dos marcos que serão o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1880) e Papéis avulsos (1882), seu equivalente no conto.

Abrindo a coletânea, há uma advertência do autor. Nela, Machado afirma que os contos ali reunidos foram escritos "ao correr da pena", sem maiores pretensões que a de ocupar o tempo livre do leitor. Aproveita também para agradecer ao público pela acolhida dada ao seu primeiro romance e anuncia um próximo; o livro de contos ganha, assim, ares de uma obra de transição, com a função de distrair o leitor enquanto o autor não publica obra de maior fôlego. Com efeito, a recepção entusiasmada de Ressurreição não se repetiria aqui: na sua introdução à edição da Martins Fontes de 2007, Hélio de Seixas Guimarães afirma que apenas duas críticas foram escritas na ocasião do lançamento de Histórias da meia-noite. Destas, uma resenha anônima publicada no jornal A Reforma já chama a atenção para o caráter satírico dos contos, nos quais o crítico identifica o lado ridículo da sociedade.

Dos seis contos que formam a coletânea, cinco foram publicados em um intervalo de três anos no Jornal das Famílias. Entretanto, uma leitura atenta mostra que Histórias da meia-noite parece ridicularizar os gostos e costumes da própria sociedade na qual seus leitores estavam inseridos. A maior parte das personagens parece não ter uma motivação interna; são esses gostos e costumes já entranhados na sociedade que impulsionam suas ações.

O conto que abre a coletânea é "A parasita azul", quase uma novela em termos de extensão. Camilo Seabra, estudante de medicina em Paris, a certa altura, quando já formado, é intimado pelo pai a voltar. Não há, da parte dele, qualquer saudade da pátria: após chegar ao Brasil, em um primeiro momento, tudo lhe parece monótono, e sente falta da cidade francesa. O que ocorre é uma "Canção do exílio" invertida, já que nesta o poeta romântico Gonçalves Dias chora a saudade da pátria, à qual anseia por retornar. Por outro lado, para Camilo, Paris não representa nada além de uma vida frívola gasta nos cafés e na companhia de mulheres de reputação duvidosa; sua estada na grande capital do século XIX nada lhe acrescentou em termos de experiência. O Camilo que saíra de Goiás é exatamente o mesmo que retorna à terra natal. Como muitas outras personagens do livro, o jovem é despido de interioridade.

Após "A parasita azul", temos "As bodas de Luís Duarte". O tempo da narrativa transcorre entre o dia anterior ao casamento de Luís Duarte e o fim dos festejos. Neste conto, podemos observar todos os preparativos que exigia um casamento da elite carioca do século XIX. A sátira aos costumes é bastante evidente nessa história, em que são apontados vários tipos sociais da época, entre os quais se destaca o orador de sobremesas, um tipo pomposo que agrada aos convivas, com a sua linguagem cheia de floreios, mas vazia de significado.

Em "Ernesto de tal", terceiro conto de Histórias da meia-noite, dois rapazes são ludibriados por uma moça que tem como objetivo máximo casar - de preferência, com um bom partido, mas, acima de tudo, casar. O bom partido, no caso, é o rival de Ernesto, a quem conhecemos apenas como o "rapaz de nariz comprido".

O conto "Aurora sem dia" também trata de um romântico só que, em vez de um enamorado, temos, desta vez, um fazedor de versos. Luís Tinoco, imbuído dos ideais mais ralos do Romantismo, resolve tornar-se poeta. Seu romantismo, porém, não tem qualquer fundo filosófico, não tem como base uma visão de mundo: é, pura e simplesmente, a imagem que Luís Tinoco tem de um poeta.

"O relógio de ouro" apresenta ao leitor um marido, Luis Negreiros, que descobre um relógio de ouro em casa e acredita tratar-se de um presente de Clarinha, sua mulher, a um amante. Já temos aqui o marido ciumento que, desconfiando da esposa, procura sinais de sua traição, como um mau leitor que tenta enquadrar um romance nas suas expectativas e acaba por superinterpretá-lo. A mulher é objetificada e, em certos momentos, tratada como, em plena sociedade escravocrata brasileira, o marido trataria os escravos.

"Ponto de vista", último conto da coletânea, é a primeira experiência de Machado com uma forma de narrativa menos tradicional. Não há um narrador em terceira pessoa onisciente, já que o conto assume a forma de uma troca de cartas entre Raquel e Luísa. Raquel é uma moça solteira que escreve para a amiga Luísa, casada, que mora em Juiz de Fora. O título original do conto é "Ponto de vista (quem desdenha...)", em referência ao ditado popular "quem desdenha quer comprar". Funciona, assim, como uma espécie de moral da história.

Em Histórias da meia-noite, temos um Machado ainda sem o controle da técnica narrativa que caracterizaria seus romances e contos da chamada fase madura. No entanto, como afirma José Guilherme Merquior em seu prefácio à edição crítica, o tom satírico da coletânea já o aproxima mais de Memórias póstumas de Brás Cubas que dos romances escritos àquela época. Já vemos um narrador que se equilibra entre buscar uma identificação com o leitor implícito e frustrar os seus ideais e expectativas; um narrador que seduz o leitor sem deixar de provocá-lo. É nesse malabarismo que o autor de Histórias da meia-noite assemelha-se com o Machado de Assis pós-1880.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, mencionada acima, bem como com a publicada pela editora Martins Fontes em 2007, preparada por Hélio de Seixas Guimarães, também já referida aqui. Em caso de discrepância, foi consultada a primeira edição, existente na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está na primeira edição: "súbdito" (e não "súdito"), "estupefacto" (e não "estupefato"), "arroxado" (e não "arroxeado"); "conjetura" (e não "conjectura"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "noite" e "noute", e entre "dous" e "dois". Mantiveram-se o advérbio flexionado ("meia adoentada"), bem como regências hoje em desuso ("entrou a barra"), e mesmo algumas consideradas incorretas pelas regras gramaticais de hoje em dia ("[...] e a quase novidade daquele espetáculo, que uma longa ausência lhe fizera esquecer", quando o correto seria "que uma longa ausência o fizera esquecer"). Do mesmo modo, manteve-se a dupla preposição em casos como "O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço em forma de coração", como é até hoje usual em Portugal. Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos, bem como para instituições.

Preservaram-se palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando já delas existe forma aportuguesada: "croquette" (e não "croquete"), "ultimatum" (e não "ultimato") "champagne" (e não "champanhe"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma em que aparecem na primeira edição ("trinta e sete", mas "10.000"). Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias.

Quanto aos hiperlinks, além das referências histórico-literárias e culturais (dentre estas, não se fez nota para "Deus" e para "diabo" quando eram parte de uma expressão congelada, como "vão todos para o diabo que os carregue"), anotaram-se também palavras que o autor usa em sentido diverso do que é corrente na atualidade, como "sombra", com o significado de "fantasma", "espírito". Procedeu-se assim também em relação a expressões idiomáticas hoje em desuso: "Daí em diante foi impossível ter-lhe mão", que quer dizer "reprimir", "sustar uma ação ou um processo".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Escrevi-lhe anteontem uma carta, e acrescento hoje um bilhetinho". Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que ocorre em: "Camilo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, [...]. Soares chegou à porta e acompanhou com os olhos o filho do comendador até perdê-lo de vista." (Note-se que no primeiro período existe vírgula antes da aditiva, e no segundo período não.) Ou a que é flagrante em: "Isabel, porém, não lhe deu tempo de chegar ao fim." e "O modo porém constituía a originalidade do poeta [...]"

Respeitou-se igualmente o emprego da vírgula usada pelo autor para reproduzir pausas da linguagem oral: " - Uma moça, é pouco." e "As obras leio... Agora os títulos, podem escapar." Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo: "Acabada a refeição, acendeu Camilo um charuto e Soares, um cigarro de palha."

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. No entanto, no conto "As bodas de Luís Duarte", há uma fala no meio do parágrafo, e foram usadas aspas porque abrir novo parágrafo pareceu demasiado.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Karen Nascimento de Souza, Laíza Verçosa do Nascimento; na revisão e na pesquisa de alguns hiperlinks, a de Mariana Magalhães Viana de Barros. Todas três são atuais bolsistas de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Mariana Magalhães Viana de Barros, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

julho de 2012

ADVERTÊNCIA

Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.

Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.

M. de A.

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