Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XXV
- A mãe de Helena - disse Salvador -, cuja beleza foi a causa, a um tempo, da sua má e boa fortuna, era filha de um nobre lavrador do Rio Grande do Sul, onde também nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pai opôs-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria ver-me em posição brilhante. Ângela podia ser obstáculo à minha carreira, dizia ele. Opôs-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na campanha oriental, donde passamos a Montevidéu, e mais tarde ao Rio de Janeiro. Tinha vinte anos quando deixei a casa paterna; possuía alguns estudos, poucos, meia dúzia de patacões, muito amor e muita esperança. Era de sobra para a minha idade, mas insuficiente para o meu futuro. A lua-de-mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operário, estalajadeiro, escrevente de cartório; algumas semanas vivi de tirar cópias de peças e papéis para teatro. Trabalhava com energia, mas a fortuna não correspondia à constância, e o melhor dos anos, gastei-o em luta áspera e desigual. Uma compensação havia, a mais doce de todas: era o amor e o contentamento de Ângela, a igualdade do ânimo com que ela encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa fuga, havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe foram obtidos por favor de uma mulher da vizinhança. Mas nasceu em boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava com alma, lutava resoluto contra todas as forças adversas, certo de encontrar à noite a solicitude da mãe e as ingênuas carícias da filha. Os senhores não são pais; não podem avaliar a força que possui o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas acumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da noite, e eu, apesar de robusto, me sentia cansado, erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar forças novas. Se o próprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a adormecer metade da minha felicidade na terra.
Salvador interrompeu-se comovido.
- Perdoem-me - continuou ele, depois de alguns instantes - se estas memórias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. Desse tempo só resta um eco doloroso e consolador. Crescia Helena e cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras lições; assisti pasmado à aurora daquela inteligência que os senhores veem hoje tão desenvolvida e lúcida. Aprendia com facilidade, porque estudava com amor. Ângela e eu construíamos os mais lindos castelos do mundo. Nós a víamos já mulher, formosa como viria a ser, porque já o era, inteligente e prendada, esposa de algum homem que a adorasse e elevasse. Vivíamos dessa antecipação, que era apenas um sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.
- Por que razão - perguntou Melchior -, dado esse amor e nascida uma filha, não santificou o senhor a situação em que se achavam?
- A curiosidade é justa - replicou Salvador -, mas a resposta é decisiva. Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o ressentimento de meu pai. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande, a própria embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de santificar e legalizar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao dever que tomara em meus ombros, ia adiando o ato de mês para mês, de ano para ano. Afinal o projeto esvaiu-se de todo. Estávamos ligados pela miséria e pelo coração, não pretendíamos o respeito da sociedade; triste desculpa; e ainda mais triste recordação, porque o casamento teria talvez obstado os acontecimentos posteriores. Helena contava seis anos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermitências favoráveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, quando uma circunstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pai adoecera; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fosse ver sem demora. Obedeci prontamente. Do que ele me remeteu para as despesas de viagem e outras, deixei alguma cousa a Ângela e Helena, e parti. Vinte e quatro horas depois de ver meu pai, tive a dor de o perder. A liquidação dos negócios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo aos credores; restavam-me alguns patacões. Recebi esse golpe novo com a filosofia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do acontecimento? Os negócios, entretanto, apesar de curtos, demoraram-me mais do que eu pretendia e convinha. A ânsia de voltar cresceu, desde que não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Ângela. Enfim, pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pai.
Estácio desviou os olhos.
- Logo que cheguei - continuou Salvador - corri à casa; achei-a fechada. Um vizinho, testemunha da minha aflição, deu-me notícia de que Ângela se mudara para São Cristóvão. Não sabia nem o número nem a rua; mas deu-me algumas indicações que me guiaram. Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquele homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humilhava. Sem nunca haver recebido de mim a menor ofensa, vejo que ele tinha um prazer secreto com o meu infortúnio. Por quê? Deixo aos filósofos liquidarem esse enigma da natureza humana. Voei a São Cristóvão; gastei tempo em procurar a casa, mas dei com ela. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio de um pequeno jardim. Podia ser aquela a residência da companheira de minha miséria? Receoso de ir bater ali, vi assomar ao portão um homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a quem dei o seu próprio nome, dizendo que lhe desejava falar. "A senhora saiu", respondeu ele distraidamente. Dispus-me a esperar, mas o jardineiro observou-me que ia sair e fechar o portão, e que a senhora só voltaria à noite. "Esperarei até à noite", redargui. O jardineiro mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cauteloso pela rua e disse-me baixinho: "Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não há de gostar". Não escrevo um romance, dispenso-me de lhes pintar o efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a descrição. Há catástrofes mais solenes, há situações mais patéticas; mas naquela ocasião parecia-me que todas as dores do mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o efeito de suas palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. Convidou-me com brandura a sair; obedeci maquinalmente. Podendo informar-me acerca de Ângela, não o fiz. A febre reteve-me três dias de cama, numa pobre cama alugada em péssima estalagem da Cidade Nova. No terceiro dia recebi uma carta de Ângela. Pedia-me que lhe perdoasse o passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a carta, tive ímpeto de ir ter com ela e esganá-la; mas o ímpeto passou, e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois, quando Ângela me escreveu. "Ela enganou seu pai - diz Brabantio a Otelo -, há de enganar-te a ti também." Era justo; pelo menos, era explicável. Dous dias depois da carta de Ângela, escrevi-lhe pedindo meia hora de conversação; nada mais. Ângela concedeu-me a entrevista. Meu plano era arrebatar-lhe Helena; ela pareceu que o previu, recebendo-me sozinha, no jardim, às nove horas da noite.
- Por que razão recorda todas essas minúcias? - interrompeu Melchior com brandura -; nós desejamos somente saber o essencial.
- Tudo é essencial na minha narração - disse Salvador -. Aquela entrevista mostrou-me a toda a luz o caráter de Ângela. Que outra mulher se arriscaria, em tais circunstâncias, a afrontar a cólera do homem desprezado? Ângela era um complexo de qualidades singulares. Capaz de suportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das máximas privações, esqueceu num instante as virtudes que tinha para correr atrás de uma fantasia de amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ela iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miséria. Ângela nasceu metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, não o era menos das pompas da cena. E daí... não fui eu mesmo que a desviei da estrada real para metê-la por um atalho obscuro? Disse-lho naquela noite em que procurei ser tranquilo e superior aos acontecimentos. "Meu fim, declarei eu, é só um: levar Helena; Helena é minha filha, não quero deixá-la entregue a seus maus exemplos." As lágrimas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada a meus pés, para que lhe deixasse Helena, não há negar que foi tudo sincero. Cedi aparentemente. Minha resolução estava assentada; sem Helena, a vida parecia-me impossível. Que outro vínculo me prendia ao mundo? A morte e a miséria tinham feito em redor de mim completa solidão. A única felicidade sobrevivente era ela.
- Segundo rapto - observou o padre -. O senhor condenava-se a só adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos.
- Tem razão - respondeu Salvador com tristeza -; um abismo chamava outro abismo. Felizes os que sabem o caminho reto da vida e nunca se arredaram dele! Quis arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a via nunca; a própria casa rara vez tinha uma porta ou janela aberta. Havia ali o recato e o mistério. Um dia resolvi ir ter com o protetor de Ângela. A notícia que me deram do conselheiro Vale era a mais honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. O demônio do orgulho impediu a execução do plano. Quase a entrar em casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cerca de dous meses. Emagreci; as longas vigílias fizeram-me pálido; o trabalho não me atraía; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é certo que a ela misturava-se a cólera, a cólera da impotência e o desgosto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para São Cristóvão, disposto a empregar a violência, contanto que trouxesse Helena ou fosse dali para o Aljube. Era à tardinha. Aproximei-me do jardim de Ângela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos meses! Parou-me o sangue todo.
Passado o primeiro abalo, caminhei cauteloso, encostado à cerca; Helena falava a alguém. Por uma abertura da cerca, pude espreitá-la; estava ao colo de um homem. Esse homem era o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a minha Helena.
Helena acariciava as barbas dele; este sorria para ela com um ar de ternura, que o absolvia quase da ofensa a mim feita. O coração, porém, apertou-se-me, ao ver dar a outro afagos a que só eu tinha direito. Era um roubo feito à natureza; mas, se meu próprio sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Daí a algum tempo - não sei se foi curto ou longo, porque eu ficara a olhar para ambos pasmado de amor e de cólera -, ouvi que falavam de mim. "Mas, olhe - dizia Helena -, papai quando vem?" O conselheiro deu um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairava sobre a cabeça dela. As crianças, porém, são implacáveis. Aquela repetiu a pergunta. "Papai não volta", respondeu o conselheiro. Helena ficou séria. "Não volta? Por quê?" "Tua mamãe disse ontem que papai está no céu". Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe rebentaram lágrimas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos... tentei dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha filha. Os músculos não corresponderam à intenção; senti fraqueza nas pernas; achei-me de bruços. Quando dei acordo de mim, volvi de novo os olhos para o lugar onde os vira. Ainda ali estavam, mas a atitude era diferente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que já não chorava. Ele beijava-lhe as mãozinhas e dizia-lhe: "Se papai foi para o céu, fiquei eu no lugar dele, para dar-te muito beijo, muito doce e muita boneca. Queres ser minha filha?" A resposta de Helena foi a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se dissesse: "Se não tenho ninguém mais no mundo!" O gesto foi tão eloquente que eu vi borbulhar uma lágrima nos olhos do conselheiro. Essa lágrima decidiu do meu destino; vi que ele a amava, e de todos os sacrifícios que o coração humano pode fazer, aceitei o maior e mais doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da única herança que tinha na terra, força da minha juventude, consolo de minha miséria, coroa de minha velhice, e voltei à solidão mais abatido que nunca!
Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por entre seus dedos escorreram algumas lágrimas, que ele, de envergonhado, enxugou rapidamente.
- Essas recordações são penosas - disse o padre -; não convém despertá-las de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrizou. Sabemos o essencial...
- Não, resta ainda alguma cousa - disse Salvador.
Estácio erguera-se. Visivelmente comovido, procurava lutar contra o sentimento que o dominava, a fim de conservar a necessária independência de espírito para julgar da narrativa e do alcance que ela podia ter. Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia parecer uma absolvição sumária. A verdade é que ele não refletia nem sentia claramente: a mente e o coração eram um campo de ideias e comoções contrárias.
- Vou acabar - disse Salvador, depois de alguns minutos -. Resta explicar o procedimento de Helena.
XXVI
- Seu pai - continuou Salvador dirigindo-se a Estácio, que, para acabar de compor o rosto, tinha ido até à janela e voltara a sentar-se -, seu pai era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Ângela, não me traiu, porque não me vira nunca; não contribuiu diretamente para a traição dela, porque supunha cortadas nossas relações. Soube depois que Ângela, quando eles se apaixonaram um pelo outro, lhe ocultara completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido. O conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma sugestão de amor ou um esquecimento; foi, talvez, um modo de respeitar-me; no segundo caso, houve cálculo: era o de redobrar o afeto que o conselheiro tinha a Helena. Assim aconteceu, porque o conselheiro sentiu-se pai de Helena, e assumiu esse caráter desde aquela tarde. Do contrato, feito ali entre o homem e a criança, cumpriu ele todas as cláusulas com generosa pontualidade. Pode crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez, passando por uma litografia, vi um retrato dele; comprei-o e conservo-o ali ao lado do de Helena.
Melchior e Estácio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos, ainda cobertos, conforme Estácio os vira, no primeiro dia em que ali foi.
- Os meses e os anos passaram - continuou Salvador -, Helena deu entrada em um colégio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O conselheiro a levou ali, dando-a como órfã de um amigo de Minas; Ângela, que se dera por sua tia, ia buscá-la aos sábados. Omito mil circunstâncias intermediárias, e as vezes, poucas, em que pude ver minha filha, de passagem e a ocultas. Se o tempo houvesse produzido em mim os seus naturais efeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, é possível que eu achasse meio de empregar-me no colégio ou nas imediações, a fim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o mesmo; passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a cor, e eu era o mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena podia reconhecer-me; e eu faltava à convenção tácita que fizera com o conselheiro. Um sábado, porém, tinha Helena doze anos, vindo ambas do colégio, parou o carro defronte do Passeio Público. Vi-as descer e entrar. Levado por um impulso irresistível, entrei também. Queria contemplá-las de longe, sem lhes falar; mas a resolução estava acima das minhas forças. Que pai não faria outro tanto? No lugar mais solitário do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas atentou um pouco, recuou espavorida e agarrou-se à mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava ali um pai, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia afastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar à mãe: "Papai?" Voltei-me. Ângela envolvera o rosto da criança entre os vestidos. O gesto equivalia a uma confissão; mas esta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo à boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os ombros, descobriu rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto afirmativo. A menina não exigiu mais; correu para mim e atirou-se-me nos braços. Ângela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrifício falavam em meu favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Ângela interveio: "Basta!" disse ela. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua. Apertei-a maquinalmente; meus olhos estavam pregados na criança. Era tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabelos enlaçados com fitas azuis, um chapelinho de palha e os pezinhos calçados com botinas de seda! "Fez bem", disse eu a Ângela, depois de alguns instantes; "deu-lhe um pai melhor do que eu." Reparei então que ela própria se transformara; trajava com elegância e estava superiormente bela. A abastança aperfeiçoara a natureza. Olhei-a sem inveja nem cólera - mas com saudade -, nessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo. "Fez mal", disse-me ela baixinho. E suspirou. "Sei que morri", disse eu, "e não pretendo ressuscitar." Depois voltei-me para Helena: "Minha filha, faze de conta que me não viste; morri para ti e para o mundo. Teu pai é outro. Prometes que não dirás nada?" Helena fez um leve sinal de cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quisesse ser vista de Ângela. Nesse simples gesto reconheci que ela ia obedecer-me; mas a tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pedíamos à natureza mais do que ela podia dar.
Salvador fez uma pausa, ergueu-se, foi à cômoda, e de uma das gavetas tirou uma caixinha, que colocou sobre a mesa. Melchior e Estácio trocaram um olhar de curiosidade... Salvador sentara-se de novo.
- Ângela morreu - prosseguiu ele - daí a um ano. Seu pai e alguns amigos poucos foram levá-la à sepultura. Também eu lá me achei. A diferença é que ele enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pesaroso da criatura que perdera. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa, foi removida para o colégio, onde ficou residindo definitivamente. O conselheiro ia visitá-la todas as semanas. Pela minha parte, certo da descrição de minha filha, encetei com ela uma correspondência que era toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do colégio servia de intermediária entre nós. Então como hoje, achei uma alma compassiva que me ajudou a ser feliz com mistério; a diferença é que naquele tempo era precisa a intervenção pecuniária. Eu tinha pouco, mas dava o jantar de um dia para ler as cartas de Helena. Conservo-as todas, tanto as de outrora, como as destes últimos meses; estão fechadas aqui.
Salvador mostrou a caixinha que colocara sobre a mesa.
- Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do conselheiro. O fato consternou-me; mas eu peço licença para lhes dizer tudo: de envolta com o sentimento de pesar, houve em mim alguma cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contrato expirava com ele; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi desde logo a Helena; fi-lo ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas: a primeira era no sentido da minha carta; a segunda anunciava-me que o conselheiro a reconhecera por testamento. Podia procurar e ler-lhes a segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquela menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor póstumo. Sabendo a verdade, não queria escondê-la ao mundo. Aceitando o reconhecimento, entendia que prejudicava direitos de terceiro, além de repudiar-me solenemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de ação. Entre a herança e o dever, dizia ela, escolho o que é honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o sono uma noite inteira, perplexo como fiquei entre o ato do finado e a resolução da herdeira. Que mão visível tocara no coração do conselheiro essa corda de sensibilidade? Melhor fora que ele houvesse traduzido em uma simples lembrança a afeição que tinha a Helena. Longo tempo refleti nisso; o pai lutava com o pai. Tê-la comigo era a minha ventura, o meu sonho, a minha ambição; era a realidade que eu chegara a tocar com as mãos. Mas, podia atá-la ao carro decrépito da minha fortuna, dar-lhe o pão amargo de todos os dias? A família do conselheiro ia afiançar-lhe futuro, respeito, prestígio; a lei ia ampará-la. Perguntei a mim mesmo se, depois de haver morrido para o mundo, me era lícito ressuscitar para reclamar e reaver um título de que me havia despojado; finalmente, se possuía já o direito de fazer um escândalo. Estas reflexões, se viessem sós, teriam triunfado desde logo; mas, em oposição a elas, vieram as sugestões do coração. Adverti que, cedendo à vontade do morto, cavaria um abismo entre mim e Helena, e que não mais, ou só raramente e a ocultas, podia desfrutar a felicidade de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração. Nessa luta gastei três longos dias. Helena escreveu-me outra carta, insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe, fi-lo sacrificando-me. Não a convenci. Procurei ter uma entrevista com ela. Não era fácil; mas o interesse venceu tudo; a escrava intermediária aumentou o preço da complacência. O que se passou entre nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a luta foi renhida e longa. Busquei persuadi-la com reflexões e súplicas; ela resistiu com indignação e lágrimas. A nobre alma repudiava a cumplicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via usurpação, porque a meus olhos nem os interesses da família do conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam; eu via minha filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder fossem somente Ângela e seu benfeitor. Eles me acostumaram a amá-la de longe, a não disputar a outrem o benefício que ela recebia. Enfim, meu coração, egoísta e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquela pobre criança era o simples retorno das carícias de que eu havia sido defraudado; tais foram os motivos da minha consciência. Helena resistiu até à última; cedeu somente à necessidade da obediência, à imagem de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esforço, à fiança que lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto dela, onde quer que o destino a levasse; cedeu exausta, sem convicção nem fervor. Se nesse ato decisivo de Helena há culpa, é toda minha, porque eu fui o autor único; ela não passou de simples instrumento, instrumento rebelde e passivo. Seu erro foi não ter a prudência necessária para não transpor o abismo que nos separava. Eu devia contar com as resoluções súbitas e prontas dessa menina; há ali uma costela de sua mãe. Mandando-lhe dizer, com as indicações precisas, onde morava, estava longe de esperar que ela viesse ver-me. A princípio fiquei aterrado com as possíveis consequências; mas se o homem se habitua ao mal e à dor, por que se não há de acostumar ao prazer e ao bem? Helena veio mais vezes; o gosto de a ver fez olvidar o perigo, e eu bebi, em horas escassas e furtivas, a única felicidade que me restava na terra, a de ser pai e a de me sentir amado por minha filha.