Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XXIV
A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da chácara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre feliz, mas geralmente quieto. Mais de uma vez buscara dissipar a sombra pesarosa que alguns erros do conselheiro acumularam na fronte da consorte. Haveria naquela casa uma geração de dores, destinadas a abater o orgulho da riqueza com o irremediável espetáculo da debilidade humana?
"Não", dizia ele consigo mesmo. "A verdade é que tudo se encadeia e desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortúnio calado e profundo daquela senhora, que se foi em pleno meio-dia; o fruto há de ser tão amargo como a árvore; tem o sabor travado de remorsos."
Neste ponto chegava ao portão. Aí deteve-se um instante. O passo cauteloso e tímido de alguém fê-lo voltar a cabeça. Um vulto, cujo rosto não via, tão escuro como a noite, ali estava e lhe tocava respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pajem de Helena.
- Seu padre - disse este -, diga-me por favor o que aconteceu em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não aparece; fechou-se no quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?
- Nada - respondeu Melchior.
- Oh! É impossível! Alguma cousa há por força. Seu padre não tem confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?
- Sossega; não há nada.
- Hum! - gemeu incredulamente o pajem -. Há alguma cousa que o escravo não pode saber; mas também o escravo pode saber alguma cousa que os brancos tenham vontade de ouvir.
Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permitia examinar o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de interrogá-lo passou pela mente do padre, mas não fez mais do que passar; ele a rejeitou logo, como a rejeitara algumas horas antes. Melchior preferia a linha reta; não quisera empregar um meio tortuoso. Iria pedir a Helena a solução das dificuldades. Entretanto, o pajem, como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, continuou:
- Nhanhã Helena é uma santa. Se alguém a acusa, acusa o bom procedimento dela. Eu lhe direi tudo...
Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pajem, contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se passos; era um escravo que vinha fechar o portão.
- Vem gente - disse Vicente -; amanhã...
O pajem tateou nas trevas em procura da mão do padre; achou-a, enfim, beijou-a e afastou-se. Melchior seguiu para casa, abalado com a meia revelação que acabava de ouvir. Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; podia supor que o ato dele era menos espontâneo do que parecia; enfim, que a própria Helena sugerira aquele meio de transviar a expectação e congraçar os sentimentos. A interpretação era verossímil; mas o padre não cogitou de tal cousa. A ele era principalmente aplicável a máxima apostólica: para os corações limpos, todas as cousas são limpas.
A seguinte aurora alumiou um céu puro de nuvens. Estácio acordou com ela, depois de uma noite mal-dormida. Nunca a manhã lhe pareceu mais rumorosa e jovial; nunca o ar apresentara tão fina transparência nem a folhagem tão lustrosa cor. Da janela a que se encostara, via as flores de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e enviando-lhe, a ele, uma nuvem invisível de aromas: aspecto de festa e ironia da natureza. Estácio achava-se ali como um saimento em horas de Carnaval.
Almoçou sozinho; D. Úrsula estava com Helena. Logo depois do almoço, recebeu uma carta de Mendonça, que, tendo ido na véspera a Andaraí, recebera a resposta dada a todos, e mandava saber se havia moléstia em casa. Estácio respondeu afirmativamente, acrescentando que, posto não se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta podia ser mais circunspecta; no estado em que ele se achava, pareceu-lhe excelente.
Pela volta do meio-dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D. Úrsula, que o espreitava de uma das janelas.
- Helena? - perguntou ele ansioso.
- Já hoje desceu - respondeu D. Úrsula -. Está mais tranquila. Não lhe perguntei nada, mas, dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, mostrou-se ansiosa por vê-lo, e pediu-me até que o mandasse chamar.
Seguiram os dous até à saleta que ficava ao pé da sala de jantar. Helena estava sentada, com a cabeça caída sobre as costas da cadeira, e os olhos metade cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pálidas da vigília e da aflição. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, que lhe apertou as mãos entre as suas.
- Imprudente! - murmurou Melchior.
Helena sorriu, um sorriso pálido e tão passageiro como a cor que lhe tingira o rosto. Dona Úrsula dispôs-se a ir chamar Estácio, que estava no andar de cima. Apenas a viu sair, Helena segurou em uma das mãos do padre.
- Queria vê-lo! - disse ela -. Não tenho ânimo de falar a ninguém mais, de dizer tudo...
- É inútil; tudo sei - interrompeu Melchior sorrindo -. O Vicente foi hoje de manhã à minha casa; foi de movimento próprio; relatou-me quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia ver, a ocultas, não podendo ou não querendo apresentá-lo em casa de seus parentes. O escrúpulo era excessivo, e o ato, leviano. Por que motivo dar aparência incorreta a um sentimento natural? Teria poupado muita aflição e muita lágrima, a si e aos seus, se tomasse antes o caminho direito, que é sempre o melhor.
Helena ouviu estas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. Não parecia sequer respirar. Quando ele acabou, perguntou sôfrega:
- Com que intento lhe falou ele?
- Com o mais puro de todos; desconfiou que a senhora padecia e por isso veio contar-me tudo.
Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quis interromper nessa ascensão mental ao céu; limitou-se a contemplá-la. A beleza de Helena nunca lhe parecera mais tocante do que nessa atitude implorativa. A contemplação não durou muito, porque a oração foi breve.
- Orei a Deus - disse ela, descendo as mãos -, porque infundiu aí no corpo vil do escravo tão nobre espírito de dedicação. Delatou-me para restituir-me a estima da família. Aquilo que ninguém lhe arrancaria do coração, tirou-o ele mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a paz de meu espírito. Infelizmente, mentiu.
Melchior empalideceu.
- Mentiu sem o saber - continuou a moça -. Disse o que supunha ser verdade, o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.
Melchior inclinou-se para a moça e, pegando-lhe nos pulsos, disse imperiosamente:
- Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem já direito de hesitar.
- Não hesito - replicou Helena -; em tais situações, uma criatura, como eu, caminha direto a um rochedo ou a um abismo; despedaça-se ou some-se. Não há escolha. Este papel - continuou, tirando da algibeira uma carta -, este papel lhe dirá tudo; leia e refira tudo a Estácio e a D. Úrsula. Não tenho ânimo de os encarar nesta ocasião.
Melchior, atordoado, fez um leve sinal de cabeça.
- Lido esse papel, estão rotos os vínculos que me prendem a esta casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei contudo as consequências. Poderei contar ao menos com a sua bênção?
A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de absolvição ou de clemência, que ela lhe pagou com muitos na destra enrugada e trêmula de comoção. Helena precipitou-se depois para o corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abri-la, receoso dos males que iam dali sair, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abri-la, e hesitou se o devia fazer na ausência de Estácio e D. Úrsula; venceu o escrúpulo e leu.
Dona Úrsula, que entrou na ocasião em que ele fechava a carta, recuou aterrada. Melchior estava pálido como um defunto. Antes que nenhum deles falasse, entrou Estácio na saleta. Melchior dirigiu-se a ele e entregou a carta. Leu-a Estácio, e dizia assim:
Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa aí há que te aflige. Presumo adivinhar o que é. Estácio esteve comigo, logo depois que saíste à última vez. Entrou desconfiado, e deu como razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na mão. Talvez ele próprio as fizesse para entrar aqui em casa. Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Supondo que ele soubesse de tuas visitas, não lhe ocultei a minha pobreza; era o meio de atribuí-las a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o teor da vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente, receio que assim acontecesse. Conta-me o que há, pobre filha do coração; não me escondas nada. Em todo caso, procede com cautela. Não provoques nenhum rompimento. Se for preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou meses. Contentar-me-ia a ideia de saber que vives em paz e feliz.
Abençoo-te,
Helena, com quanta efusão pode haver no peito do mais venturoso dos pais, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gosto de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.
Salvador
P. S. - Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não saias daí; seria um escândalo.
Estácio não compreendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade parecia inverossímil. O primeiro movimento foi sair dali e ir ter com Helena. Melchior deteve-o a tempo.
- Não precipitemos nada - disse ele -. Sossegue primeiro.
Estácio deixou-se cair numa cadeira; Melchior comunicou o conteúdo da carta a D. Úrsula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, porque ela não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar estupidamente para o papel. Houve então entre aqueles três personagens dez minutos de mortal silêncio. Dona Úrsula não pensava; olhava para a carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma conclusão que seu próprio espírito não podia deduzir dos acontecimentos. Estácio ficara desorientado; em vão procurava um fio de dedução entre as ideias; a revelação nova era uma complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração testamentária de seu pai? Se o não era, como explicar a audácia de semelhante invenção? Ele não podia discernir o que era favorável a Helena, nem ousava afirmar o que lhe era adverso.
No meio daquela família, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava a superioridade da morte sobre alguns lances terríveis da vida. Se o óbito de Helena tomara o lugar da carta, a dor seria violenta, mas o irremediável desfecho e o consolo da religião teriam contribuído para sarar a alma dos que ficassem e converter o desespero de alguns dias na saudade da vida inteira. Em vez disso, estava ele, talvez, diante de um destino aniquilado; via um abismo possível entre corações que a vontade de um morto vinculara. Qualquer que fosse a veracidade da carta, o resultado era talvez esse.
Melchior foi dali ter com Helena, para alcançar mais detida explicação do que acabava de ler. Ela ergueu-se quando o viu, e pareceu reviver ao contemplar o gesto benévolo com que ele lhe falou. Um longo suspiro de alívio rompeu-lhe do coração: os braços caíram sobre os ombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou enfim - um minuto - das dores que a afligiam.
- Perdoaram-me? - disse ela.
- Hão de perdoar; conte-me tudo.
- Oh! Não posso, não sei; sei que é meu pai.
O capelão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na posição em que os deixara. Interrogaram-no com os olhos.
- Nada - disse ele -. O coração dela não possui nesta ocasião a necessária força para responder a quanto se lhe devia perguntar; demais, não saberá tudo. Temos a primeira confissão da verdade...
- Da verdade? - interrompeu melancolicamente Estácio -. Quem sabe se é verdade o que lemos nesse papel?
- É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; mas eu incumbo-me de ir buscá-los.
- Iremos ambos.
Dona Úrsula quis dissuadir o sobrinho de ir à casa do homem, causa dos desastres da família, não tanto porque lhe parecia que entre Estácio e ele nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo porque ela precisava de alguém que a acompanhasse em tão graves circunstâncias. Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Úrsula.
- Irei eu só - disse ele -; depois conduzi-lo-ei até cá, se for preciso.
- Não posso esperar - insistiu Estácio -; preciso falar a esse homem, ouvi-lo, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o decoro da família exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração goteja sangue...
Era impossível dissuadi-lo: Melchior tratou somente de o moderar. De resto, a crise era violenta; cumpria resolvê-la sem demora nem hesitação O padre animou D. Úrsula, e saiu acompanhado de Estácio, cujo coração, convalescido do primeiro abalo, deixava as regiões da dúvida para entrar na atmosfera da verdade - pelo menos da esperança. Quaisquer que fossem as consequências da nova revelação, vinha esta como um bálsamo, após tão dolorosas comoções; era um rasgão azul no céu tempestuoso daqueles dias. Ia ele pensando assim, ou antes sentindo - porque o pensamento não ousava regê-lo desde que a vida inteira do moço se lhe concentrara no coração.
Chegando à frente da casa, Estácio desviou os olhos; custava-lhe encará-la, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se esta enfim, e a figura do dono da casa apareceu aos dous. Vendo-os, empalideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. Estácio foi direito ao fim.
- Suponho que se lembra de mim? - disse ele.
- Perfeitamente.
- Sabe que motivo nos traz à sua casa?
- Não, senhor.
- Confessa a autoria desta carta?
Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto afirmativo.
- Pretende que Helena é sua filha - disse o moço depois de um instante -. Confirma verbalmente o que escreveu?
- Helena é minha filha.
Melchior interveio:
- Há um ano, falecendo, o meu velho amigo conselheiro Vale reconheceu Helena, por uma cláusula testamentária; recomendava à família que a tratasse com afeto e carinho e designava o colégio em que ela estava sendo educada. O fato do reconhecimento e as circunstâncias que apontou dão toda a veracidade à palavra do morto. Que prova apresenta o senhor em contrário a ela?
- Nenhuma - disse Salvador -; não tenho prova de nenhuma natureza.
- Na falta de provas - prosseguiu o capelão -, poderia dizer-nos como supor da parte do conselheiro uma falsificação, tratando-se de disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa estranha na família?
Salvador sorriu amargamente.
- Suponha - disse ele - que eu havia iludido a confiança do conselheiro e que ele acreditava ser pai de Helena.
- Era isso?
- Não era. Na posição em que nos achamos, já não há lugar para meias palavras. Força é referir tudo. Dez minutos apenas.
Os três sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a persistência e a curiosidade naturais da ocasião. Salvador esteve alguns instantes calado; enfim, voltou-se para o capelão.
- Estimo - disse ele - que o senhor padre viesse; sua caridade temperará a legítima indignação deste moço; e eu farei as declarações indispensáveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de Helena.
- Queira falar - disse secamente Estácio.
XXV
- A mãe de Helena - disse Salvador -, cuja beleza foi a causa, a um tempo, da sua má e boa fortuna, era filha de um nobre lavrador do Rio Grande do Sul, onde também nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pai opôs-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria ver-me em posição brilhante. Ângela podia ser obstáculo à minha carreira, dizia ele. Opôs-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na campanha oriental, donde passamos a Montevidéu, e mais tarde ao Rio de Janeiro. Tinha vinte anos quando deixei a casa paterna; possuía alguns estudos, poucos, meia dúzia de patacões, muito amor e muita esperança. Era de sobra para a minha idade, mas insuficiente para o meu futuro. A lua-de-mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operário, estalajadeiro, escrevente de cartório; algumas semanas vivi de tirar cópias de peças e papéis para teatro. Trabalhava com energia, mas a fortuna não correspondia à constância, e o melhor dos anos, gastei-o em luta áspera e desigual. Uma compensação havia, a mais doce de todas: era o amor e o contentamento de Ângela, a igualdade do ânimo com que ela encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa fuga, havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe foram obtidos por favor de uma mulher da vizinhança. Mas nasceu em boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava com alma, lutava resoluto contra todas as forças adversas, certo de encontrar à noite a solicitude da mãe e as ingênuas carícias da filha. Os senhores não são pais; não podem avaliar a força que possui o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas acumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da noite, e eu, apesar de robusto, me sentia cansado, erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar forças novas. Se o próprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a adormecer metade da minha felicidade na terra.
Salvador interrompeu-se comovido.
- Perdoem-me - continuou ele, depois de alguns instantes - se estas memórias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. Desse tempo só resta um eco doloroso e consolador. Crescia Helena e cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras lições; assisti pasmado à aurora daquela inteligência que os senhores veem hoje tão desenvolvida e lúcida. Aprendia com facilidade, porque estudava com amor. Ângela e eu construíamos os mais lindos castelos do mundo. Nós a víamos já mulher, formosa como viria a ser, porque já o era, inteligente e prendada, esposa de algum homem que a adorasse e elevasse. Vivíamos dessa antecipação, que era apenas um sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.
- Por que razão - perguntou Melchior -, dado esse amor e nascida uma filha, não santificou o senhor a situação em que se achavam?
- A curiosidade é justa - replicou Salvador -, mas a resposta é decisiva. Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o ressentimento de meu pai. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande, a própria embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de santificar e legalizar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao dever que tomara em meus ombros, ia adiando o ato de mês para mês, de ano para ano. Afinal o projeto esvaiu-se de todo. Estávamos ligados pela miséria e pelo coração, não pretendíamos o respeito da sociedade; triste desculpa; e ainda mais triste recordação, porque o casamento teria talvez obstado os acontecimentos posteriores. Helena contava seis anos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermitências favoráveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, quando uma circunstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pai adoecera; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fosse ver sem demora. Obedeci prontamente. Do que ele me remeteu para as despesas de viagem e outras, deixei alguma cousa a Ângela e Helena, e parti. Vinte e quatro horas depois de ver meu pai, tive a dor de o perder. A liquidação dos negócios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo aos credores; restavam-me alguns patacões. Recebi esse golpe novo com a filosofia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do acontecimento? Os negócios, entretanto, apesar de curtos, demoraram-me mais do que eu pretendia e convinha. A ânsia de voltar cresceu, desde que não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Ângela. Enfim, pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pai.
Estácio desviou os olhos.
- Logo que cheguei - continuou Salvador - corri à casa; achei-a fechada. Um vizinho, testemunha da minha aflição, deu-me notícia de que Ângela se mudara para São Cristóvão. Não sabia nem o número nem a rua; mas deu-me algumas indicações que me guiaram. Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquele homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humilhava. Sem nunca haver recebido de mim a menor ofensa, vejo que ele tinha um prazer secreto com o meu infortúnio. Por quê? Deixo aos filósofos liquidarem esse enigma da natureza humana. Voei a São Cristóvão; gastei tempo em procurar a casa, mas dei com ela. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio de um pequeno jardim. Podia ser aquela a residência da companheira de minha miséria? Receoso de ir bater ali, vi assomar ao portão um homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a quem dei o seu próprio nome, dizendo que lhe desejava falar. "A senhora saiu", respondeu ele distraidamente. Dispus-me a esperar, mas o jardineiro observou-me que ia sair e fechar o portão, e que a senhora só voltaria à noite. "Esperarei até à noite", redargui. O jardineiro mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cauteloso pela rua e disse-me baixinho: "Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não há de gostar". Não escrevo um romance, dispenso-me de lhes pintar o efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a descrição. Há catástrofes mais solenes, há situações mais patéticas; mas naquela ocasião parecia-me que todas as dores do mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o efeito de suas palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. Convidou-me com brandura a sair; obedeci maquinalmente. Podendo informar-me acerca de Ângela, não o fiz. A febre reteve-me três dias de cama, numa pobre cama alugada em péssima estalagem da Cidade Nova. No terceiro dia recebi uma carta de Ângela. Pedia-me que lhe perdoasse o passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a carta, tive ímpeto de ir ter com ela e esganá-la; mas o ímpeto passou, e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois, quando Ângela me escreveu. "Ela enganou seu pai - diz Brabantio a Otelo -, há de enganar-te a ti também." Era justo; pelo menos, era explicável. Dous dias depois da carta de Ângela, escrevi-lhe pedindo meia hora de conversação; nada mais. Ângela concedeu-me a entrevista. Meu plano era arrebatar-lhe Helena; ela pareceu que o previu, recebendo-me sozinha, no jardim, às nove horas da noite.
- Por que razão recorda todas essas minúcias? - interrompeu Melchior com brandura -; nós desejamos somente saber o essencial.
- Tudo é essencial na minha narração - disse Salvador -. Aquela entrevista mostrou-me a toda a luz o caráter de Ângela. Que outra mulher se arriscaria, em tais circunstâncias, a afrontar a cólera do homem desprezado? Ângela era um complexo de qualidades singulares. Capaz de suportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das máximas privações, esqueceu num instante as virtudes que tinha para correr atrás de uma fantasia de amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ela iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miséria. Ângela nasceu metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, não o era menos das pompas da cena. E daí... não fui eu mesmo que a desviei da estrada real para metê-la por um atalho obscuro? Disse-lho naquela noite em que procurei ser tranquilo e superior aos acontecimentos. "Meu fim, declarei eu, é só um: levar Helena; Helena é minha filha, não quero deixá-la entregue a seus maus exemplos." As lágrimas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada a meus pés, para que lhe deixasse Helena, não há negar que foi tudo sincero. Cedi aparentemente. Minha resolução estava assentada; sem Helena, a vida parecia-me impossível. Que outro vínculo me prendia ao mundo? A morte e a miséria tinham feito em redor de mim completa solidão. A única felicidade sobrevivente era ela.
- Segundo rapto - observou o padre -. O senhor condenava-se a só adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos.
- Tem razão - respondeu Salvador com tristeza -; um abismo chamava outro abismo. Felizes os que sabem o caminho reto da vida e nunca se arredaram dele! Quis arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a via nunca; a própria casa rara vez tinha uma porta ou janela aberta. Havia ali o recato e o mistério. Um dia resolvi ir ter com o protetor de Ângela. A notícia que me deram do conselheiro Vale era a mais honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. O demônio do orgulho impediu a execução do plano. Quase a entrar em casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cerca de dous meses. Emagreci; as longas vigílias fizeram-me pálido; o trabalho não me atraía; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é certo que a ela misturava-se a cólera, a cólera da impotência e o desgosto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para São Cristóvão, disposto a empregar a violência, contanto que trouxesse Helena ou fosse dali para o Aljube. Era à tardinha. Aproximei-me do jardim de Ângela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos meses! Parou-me o sangue todo.
Passado o primeiro abalo, caminhei cauteloso, encostado à cerca; Helena falava a alguém. Por uma abertura da cerca, pude espreitá-la; estava ao colo de um homem. Esse homem era o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a minha Helena.
Helena acariciava as barbas dele; este sorria para ela com um ar de ternura, que o absolvia quase da ofensa a mim feita. O coração, porém, apertou-se-me, ao ver dar a outro afagos a que só eu tinha direito. Era um roubo feito à natureza; mas, se meu próprio sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Daí a algum tempo - não sei se foi curto ou longo, porque eu ficara a olhar para ambos pasmado de amor e de cólera -, ouvi que falavam de mim. "Mas, olhe - dizia Helena -, papai quando vem?" O conselheiro deu um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairava sobre a cabeça dela. As crianças, porém, são implacáveis. Aquela repetiu a pergunta. "Papai não volta", respondeu o conselheiro. Helena ficou séria. "Não volta? Por quê?" "Tua mamãe disse ontem que papai está no céu". Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe rebentaram lágrimas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos... tentei dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha filha. Os músculos não corresponderam à intenção; senti fraqueza nas pernas; achei-me de bruços. Quando dei acordo de mim, volvi de novo os olhos para o lugar onde os vira. Ainda ali estavam, mas a atitude era diferente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que já não chorava. Ele beijava-lhe as mãozinhas e dizia-lhe: "Se papai foi para o céu, fiquei eu no lugar dele, para dar-te muito beijo, muito doce e muita boneca. Queres ser minha filha?" A resposta de Helena foi a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se dissesse: "Se não tenho ninguém mais no mundo!" O gesto foi tão eloquente que eu vi borbulhar uma lágrima nos olhos do conselheiro. Essa lágrima decidiu do meu destino; vi que ele a amava, e de todos os sacrifícios que o coração humano pode fazer, aceitei o maior e mais doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da única herança que tinha na terra, força da minha juventude, consolo de minha miséria, coroa de minha velhice, e voltei à solidão mais abatido que nunca!
Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por entre seus dedos escorreram algumas lágrimas, que ele, de envergonhado, enxugou rapidamente.
- Essas recordações são penosas - disse o padre -; não convém despertá-las de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrizou. Sabemos o essencial...
- Não, resta ainda alguma cousa - disse Salvador.
Estácio erguera-se. Visivelmente comovido, procurava lutar contra o sentimento que o dominava, a fim de conservar a necessária independência de espírito para julgar da narrativa e do alcance que ela podia ter. Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia parecer uma absolvição sumária. A verdade é que ele não refletia nem sentia claramente: a mente e o coração eram um campo de ideias e comoções contrárias.
- Vou acabar - disse Salvador, depois de alguns minutos -. Resta explicar o procedimento de Helena.