Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XXIII
- És forte? - perguntou o padre.
- Sou.
- Crês em Deus?
Estácio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior insistiu:
- Crês?
- Essa pergunta...
- É menos ociosa do que parece. Não basta supor que se crê; nem basta crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia, onde nunca se pretende pôr os pés. O Deus de que te falo não é só essa sublime necessidade do espírito, que apenas contenta alguns filósofos; falo-te do Deus criador e remunerador, do Deus que lê no fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar a morte, e, além da morte, o prêmio ou o castigo. Crês?
- Creio.
- Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, rebela-se, vaga à feição de um instinto mal expresso e mal compreendido. O mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus liames dourados e ocultos; tu não o sentes, não o vês; terás horror de ti mesmo, quando deres com ele de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre teu coração e tua consciência há como um véu espesso que os separa, que impede esse acordo gerador do delito.
- Mas que é, padre-mestre?
Melchior inclinou-se e encarou o moço. Os olhos, fitos nele, eram como um espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do que lhe ia dizer.
- Estácio - disse Melchior pausadamente -, tu amas tua irmã.
O gesto mesclado de horror, assombro e remorso com que Estácio ouvira aquela palavra mostrou ao padre, não só que ele estava de posse da verdade, mas também que acabava de a revelar ao mancebo. O que a consciência deste ignorava, sabia-o o coração, e só lho disse naquela hora solene. A consciência, depois de tatear nas trevas, recuou apavorada, como afastando de si o clarão súbito que acendera nela a palavra do sacerdote. Estácio não respondeu nada; não podia responder nada. Com que vocábulo e em que língua humana exprimiria ele a comoção nova e terrível que lhe abalara a alma toda? Que fio pudera atar-lhe as ideias rotas e dispersas? Nem falou, nem se atreveu a erguer os olhos; ficou como estúpido e morto. Melchior contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Os olhos, que eram de águia para os mistérios da vida, eram de pomba para os grandes infortúnios. Abaixo da cabeça máscula, havia um coração feminino.
A mudez de Estácio cessou enfim; o corpo agitou-se; o lábio articulou algumas frases desconcertadas. Vago era o sentido delas; podia concluir-se que ele não cria na revelação de Melchior, que o suposto sentimento era tão absurdo e desnatural que só a maus instintos devia ser atribuído. Melchior ouviu-o, e sorriu com satisfação. Não era aquilo mesmo um protesto de consciência honrada?
- Maus instintos, não - respondeu Melchior -, um desvio da lei social e religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estácio; revolve-lhe os mais íntimos recantos, e lá acharás esse gérmen funesto; lança-o fora de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o sentiste nunca; a tentação usa essa tática serpentina e dolosa; é insinuante como a calúnia, e pertinaz como a suspeita. Mas eu sou a verdade que afirma, e a caridade que consola. Digo-te, não que pecaste, mas que ficaste à beira do pecado, e estendo-te a mão para que recues do abismo.
- Padre-mestre! - murmurou Estácio, cujo coração recebia a influência da palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.
- Não fales - continuou o padre -; negá-lo é mentir, confessá-lo é ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quis a fortuna que entre vocês dous não houvesse a imagem da infância e a comunhão dos primeiros anos; que, em plena mocidade, passassem, do total desconhecimento um do outro, para a intimidade de todos os dias. Esta foi a raiz do mal. Helena apareceu-te mulher, com todas as seduções próprias da mulher, e mais ainda com as de seu próprio espírito, porque a natureza e a educação acordaram em a fazer original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou em ti, nem podias compreendê-la. São Paulo disse: para os corações limpos, todas as cousas são limpas. Vias a afeição legítima naquilo que era já afeição espúria; daí vieram os zelos, a suspicácia, um egoísmo exigente, cujo resultado seria subtrair a alma de Helena a todas as alegrias da terra, unicamente para o fim de a contemplares sozinho, como um avaro.
Ouvindo a palavra do padre, Estácio soletrava o próprio coração e lia claramente o que até então era para ele como um livro fechado. A situação tornava-se, entretanto, por demais aflitiva, profunda, a vergonha, intenso, o remorso. Estácio ergueu-se: erguendo-se, deu com os olhos no retrato do conselheiro que, na penumbra em que ficava, parecia olhar para o filho e interrogá-lo. Esta circunstância desorientou o moço.
- Não, padre-mestre! - exclamou ele deixando-se cair na cadeira -. É impossível! Isto que me está dizendo é um sonho mau, é um funesto equívoco; é impossível; juro-lhe que é impossível. É certo que a amo... que a amava, com sentimentos de irmão; mas esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso afeto... oh! Era impossível!
Melchior erguera-se. Após meia dúzia de passos, aproximou-se de Estácio, sobre cuja cabeça estendeu a mão direita, enquanto com a outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para ele.
- Digo-te que tens uma raiz de má erva no coração; esta é a cruel verdade. Há no homem uma ligação de sentimentos, às vezes inexplicável. Produtos de climas opostos aí se alternam ou se confundem... Mas queres saber o resto?
- O resto?
- Ouve - continuou o padre, sentando-se -. A planta ruim bracejou um ramo para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento os ligou em seus fios invisíveis. Nem tu o vias, nem ela; mas eu vi, eu fui o triste espectador dessa violenta e miserável situação. São irmãos e amam-se. A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão.
- Impossível! Impossível! - exclamou Estácio -. Mas, dado que assim fosse, por que acumular à dificuldade presente o horror de semelhante revelação?
- Porque a revelação explica a dificuldade. Helena não saberá que ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma perversão que ela não pode ter, e que, em tal idade, faria dela um monstro. Será Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da natureza humana. Não! Essa casa, onde a viste entrar, é com certeza asilo de miséria: o que ela aí vai levar é a esmola e a compaixão.
Um raio de esperança alumiou a fronte de Estácio. O raciocínio do padre era exato, e, por mais perigosa que fosse a situação revelada por ele, já agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da família ficava intacta. Estácio refletiu largo tempo no que acabava de ouvir. Mas a esperança foi curta, embora a necessidade dela fosse grande.
- Helena continua recolhida? - perguntou o padre.
Estácio fez um leve sinal afirmativo.
- Falar-lhe-ei amanhã; por hoje convém não dizer palavra nem deixar transpirar cousa nenhuma.
Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se refletisse ainda alguma cousa. Estácio erguera-se e entrara a passear lentamente. De quando em quando, apertava a cabeça entre as mãos; tantas comoções bastavam para atordoar mais forte espírito. O mistério o cercava de todos os lados. Ele ia até à janela, daí até à porta, intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do braço ou da cabeça. A intervalos, olhava a furto e de través para o capelão, como o criminoso olha para a consciência; não podia evitar o sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia aquele investigador exato e profundo de seus sentimentos mais recônditos e inaccessíveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revelada, e o que era obscuro fizera-se-lhe enfim transparente. É assim que a luz de um astro, acesa desde séculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos olhos mortais.
Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do conselheiro. Não os retirou aterrado; cravou-os com ar de reproche e amargura, em que o padre reparou, e que o fez sorrir tristemente. O olhar do filho pedia contas ao pai.
- Paz aos mortos! - observou Melchior. Os atos de seu pai já não pertencem à jurisdição deste mundo.
Melchior proferiu estas palavras já de pé.
- O Dr. Camargo - disse ele mudando de tom - deve chegar um dia destes, segundo anuncia. Há alguma razão para demorar o casamento?
- Nenhuma.
- Convém realizá-lo imediatamente?
- Imediatamente.
Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta à chave e deteve-se.
- Antes de nos separarmos - disse ele -, desejo a promessa de que não falarás a Helena antes de amanhã.
- Prometo.
O padre refletiu um instante; Estácio pareceu adivinhá-lo.
- Quer ainda outra promessa? - perguntou ele -. Quer que a evite de todos os modos?
- Sim; que a considere como pessoa totalmente estranha.
- Poderia ser de outra maneira? - observou melancolicamente Estácio -. Os sucessos destes dias são, por enquanto ao menos, uma barreira entre ela e sua família. Demais, eu seria destituído de todo o senso moral...
- Jura?
- Juro.
Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe pendia de uma fita preta, ao pescoço.
- Este - disse ele com voz singela - é a efígie do teu Deus. Tão puro exemplo de castidade não viram os séculos nem antes nem depois que ele desceu à terra. Jura o que me prometes.
- Padre-mestre - retorquiu Estácio -; minha palavra era bastante. Mas, se é preciso afirmação mais solene, eu a darei tal qual me pede.
Estácio inclinou a cabeça sobre o crucifixo e beijou-o respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençoou-o e saiu.
Saindo do gabinete de Estácio, dirigiu-se para a sala de costura, onde achou D. Úrsula um pouco menos agitada.
- Falou a Helena? - perguntou ela, dirigindo-se ao padre.
- Ainda não; sei que não quer sair do quarto; deixemos passar a primeira comoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a senhora sossegue.
- Oh! Estou sossegada! Não perdi a confiança.
Dona Úrsula proferiu estas palavras com tamanha serenidade e tanta convicção que fortaleceu o espírito do próprio Melchior, aliás não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes a contemplar o rosto plácido de D. Úrsula, a admirar a força secreta que a tornava surda ao clamor da realidade - pelo menos, da realidade aparente. Contemplou-a silencioso, e desceu à chácara.
XXIV
A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da chácara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre feliz, mas geralmente quieto. Mais de uma vez buscara dissipar a sombra pesarosa que alguns erros do conselheiro acumularam na fronte da consorte. Haveria naquela casa uma geração de dores, destinadas a abater o orgulho da riqueza com o irremediável espetáculo da debilidade humana?
"Não", dizia ele consigo mesmo. "A verdade é que tudo se encadeia e desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortúnio calado e profundo daquela senhora, que se foi em pleno meio-dia; o fruto há de ser tão amargo como a árvore; tem o sabor travado de remorsos."
Neste ponto chegava ao portão. Aí deteve-se um instante. O passo cauteloso e tímido de alguém fê-lo voltar a cabeça. Um vulto, cujo rosto não via, tão escuro como a noite, ali estava e lhe tocava respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pajem de Helena.
- Seu padre - disse este -, diga-me por favor o que aconteceu em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não aparece; fechou-se no quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?
- Nada - respondeu Melchior.
- Oh! É impossível! Alguma cousa há por força. Seu padre não tem confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?
- Sossega; não há nada.
- Hum! - gemeu incredulamente o pajem -. Há alguma cousa que o escravo não pode saber; mas também o escravo pode saber alguma cousa que os brancos tenham vontade de ouvir.
Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permitia examinar o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de interrogá-lo passou pela mente do padre, mas não fez mais do que passar; ele a rejeitou logo, como a rejeitara algumas horas antes. Melchior preferia a linha reta; não quisera empregar um meio tortuoso. Iria pedir a Helena a solução das dificuldades. Entretanto, o pajem, como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, continuou:
- Nhanhã Helena é uma santa. Se alguém a acusa, acusa o bom procedimento dela. Eu lhe direi tudo...
Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pajem, contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se passos; era um escravo que vinha fechar o portão.
- Vem gente - disse Vicente -; amanhã...
O pajem tateou nas trevas em procura da mão do padre; achou-a, enfim, beijou-a e afastou-se. Melchior seguiu para casa, abalado com a meia revelação que acabava de ouvir. Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; podia supor que o ato dele era menos espontâneo do que parecia; enfim, que a própria Helena sugerira aquele meio de transviar a expectação e congraçar os sentimentos. A interpretação era verossímil; mas o padre não cogitou de tal cousa. A ele era principalmente aplicável a máxima apostólica: para os corações limpos, todas as cousas são limpas.
A seguinte aurora alumiou um céu puro de nuvens. Estácio acordou com ela, depois de uma noite mal-dormida. Nunca a manhã lhe pareceu mais rumorosa e jovial; nunca o ar apresentara tão fina transparência nem a folhagem tão lustrosa cor. Da janela a que se encostara, via as flores de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e enviando-lhe, a ele, uma nuvem invisível de aromas: aspecto de festa e ironia da natureza. Estácio achava-se ali como um saimento em horas de Carnaval.
Almoçou sozinho; D. Úrsula estava com Helena. Logo depois do almoço, recebeu uma carta de Mendonça, que, tendo ido na véspera a Andaraí, recebera a resposta dada a todos, e mandava saber se havia moléstia em casa. Estácio respondeu afirmativamente, acrescentando que, posto não se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta podia ser mais circunspecta; no estado em que ele se achava, pareceu-lhe excelente.
Pela volta do meio-dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D. Úrsula, que o espreitava de uma das janelas.
- Helena? - perguntou ele ansioso.
- Já hoje desceu - respondeu D. Úrsula -. Está mais tranquila. Não lhe perguntei nada, mas, dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, mostrou-se ansiosa por vê-lo, e pediu-me até que o mandasse chamar.
Seguiram os dous até à saleta que ficava ao pé da sala de jantar. Helena estava sentada, com a cabeça caída sobre as costas da cadeira, e os olhos metade cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pálidas da vigília e da aflição. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, que lhe apertou as mãos entre as suas.
- Imprudente! - murmurou Melchior.
Helena sorriu, um sorriso pálido e tão passageiro como a cor que lhe tingira o rosto. Dona Úrsula dispôs-se a ir chamar Estácio, que estava no andar de cima. Apenas a viu sair, Helena segurou em uma das mãos do padre.
- Queria vê-lo! - disse ela -. Não tenho ânimo de falar a ninguém mais, de dizer tudo...
- É inútil; tudo sei - interrompeu Melchior sorrindo -. O Vicente foi hoje de manhã à minha casa; foi de movimento próprio; relatou-me quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia ver, a ocultas, não podendo ou não querendo apresentá-lo em casa de seus parentes. O escrúpulo era excessivo, e o ato, leviano. Por que motivo dar aparência incorreta a um sentimento natural? Teria poupado muita aflição e muita lágrima, a si e aos seus, se tomasse antes o caminho direito, que é sempre o melhor.
Helena ouviu estas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. Não parecia sequer respirar. Quando ele acabou, perguntou sôfrega:
- Com que intento lhe falou ele?
- Com o mais puro de todos; desconfiou que a senhora padecia e por isso veio contar-me tudo.
Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quis interromper nessa ascensão mental ao céu; limitou-se a contemplá-la. A beleza de Helena nunca lhe parecera mais tocante do que nessa atitude implorativa. A contemplação não durou muito, porque a oração foi breve.
- Orei a Deus - disse ela, descendo as mãos -, porque infundiu aí no corpo vil do escravo tão nobre espírito de dedicação. Delatou-me para restituir-me a estima da família. Aquilo que ninguém lhe arrancaria do coração, tirou-o ele mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a paz de meu espírito. Infelizmente, mentiu.
Melchior empalideceu.
- Mentiu sem o saber - continuou a moça -. Disse o que supunha ser verdade, o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.
Melchior inclinou-se para a moça e, pegando-lhe nos pulsos, disse imperiosamente:
- Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem já direito de hesitar.
- Não hesito - replicou Helena -; em tais situações, uma criatura, como eu, caminha direto a um rochedo ou a um abismo; despedaça-se ou some-se. Não há escolha. Este papel - continuou, tirando da algibeira uma carta -, este papel lhe dirá tudo; leia e refira tudo a Estácio e a D. Úrsula. Não tenho ânimo de os encarar nesta ocasião.
Melchior, atordoado, fez um leve sinal de cabeça.
- Lido esse papel, estão rotos os vínculos que me prendem a esta casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei contudo as consequências. Poderei contar ao menos com a sua bênção?
A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de absolvição ou de clemência, que ela lhe pagou com muitos na destra enrugada e trêmula de comoção. Helena precipitou-se depois para o corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abri-la, receoso dos males que iam dali sair, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abri-la, e hesitou se o devia fazer na ausência de Estácio e D. Úrsula; venceu o escrúpulo e leu.
Dona Úrsula, que entrou na ocasião em que ele fechava a carta, recuou aterrada. Melchior estava pálido como um defunto. Antes que nenhum deles falasse, entrou Estácio na saleta. Melchior dirigiu-se a ele e entregou a carta. Leu-a Estácio, e dizia assim:
Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa aí há que te aflige. Presumo adivinhar o que é. Estácio esteve comigo, logo depois que saíste à última vez*. Entrou desconfiado, e deu como razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na mão. Talvez ele próprio as fizesse para entrar aqui em casa. Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Supondo que ele soubesse de tuas visitas, não lhe ocultei a minha pobreza; era o meio de atribuí-las a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o teor da vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente, receio que assim acontecesse. Conta-me o que há, pobre filha do coração; não me escondas nada. Em todo caso, procede com cautela. Não provoques nenhum rompimento. Se for preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou meses. Contentar-me-ia a ideia de saber que vives em paz e feliz.
Abençoo-te,
Helena, com quanta efusão pode haver no peito do mais venturoso dos pais, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gosto de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.
Salvador
P. S. - Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não saias daí; seria um escândalo.
Estácio não compreendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade parecia inverossímil. O primeiro movimento foi sair dali e ir ter com Helena. Melchior deteve-o a tempo.
- Não precipitemos nada - disse ele -. Sossegue primeiro.
Estácio deixou-se cair numa cadeira; Melchior comunicou o conteúdo da carta a D. Úrsula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, porque ela não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar estupidamente para o papel. Houve então entre aqueles três personagens dez minutos de mortal silêncio. Dona Úrsula não pensava; olhava para a carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma conclusão que seu próprio espírito não podia deduzir dos acontecimentos. Estácio ficara desorientado; em vão procurava um fio de dedução entre as ideias; a revelação nova era uma complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração testamentária de seu pai? Se o não era, como explicar a audácia de semelhante invenção? Ele não podia discernir o que era favorável a Helena, nem ousava afirmar o que lhe era adverso.
No meio daquela família, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava a superioridade da morte sobre alguns lances terríveis da vida. Se o óbito de Helena tomara o lugar da carta, a dor seria violenta, mas o irremediável desfecho e o consolo da religião teriam contribuído para sarar a alma dos que ficassem e converter o desespero de alguns dias na saudade da vida inteira. Em vez disso, estava ele, talvez, diante de um destino aniquilado; via um abismo possível entre corações que a vontade de um morto vinculara. Qualquer que fosse a veracidade da carta, o resultado era talvez esse.
Melchior foi dali ter com Helena, para alcançar mais detida explicação do que acabava de ler. Ela ergueu-se quando o viu, e pareceu reviver ao contemplar o gesto benévolo com que ele lhe falou. Um longo suspiro de alívio rompeu-lhe do coração: os braços caíram sobre os ombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou enfim - um minuto - das dores que a afligiam.
- Perdoaram-me? - disse ela.
- Hão de perdoar; conte-me tudo.
- Oh! Não posso, não sei; sei que é meu pai.
O capelão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na posição em que os deixara. Interrogaram-no com os olhos.
- Nada - disse ele -. O coração dela não possui nesta ocasião a necessária força para responder a quanto se lhe devia perguntar; demais, não saberá tudo. Temos a primeira confissão da verdade...
- Da verdade? - interrompeu melancolicamente Estácio -. Quem sabe se é verdade o que lemos nesse papel?
- É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; mas eu incumbo-me de ir buscá-los.
- Iremos ambos.
Dona Úrsula quis dissuadir o sobrinho de ir à casa do homem, causa dos desastres da família, não tanto porque lhe parecia que entre Estácio e ele nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo porque ela precisava de alguém que a acompanhasse em tão graves circunstâncias. Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Úrsula.
- Irei eu só - disse ele -; depois conduzi-lo-ei até cá, se for preciso.
- Não posso esperar - insistiu Estácio -; preciso falar a esse homem, ouvi-lo, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o decoro da família exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração goteja sangue...
Era impossível dissuadi-lo: Melchior tratou somente de o moderar. De resto, a crise era violenta; cumpria resolvê-la sem demora nem hesitação O padre animou D. Úrsula, e saiu acompanhado de Estácio, cujo coração, convalescido do primeiro abalo, deixava as regiões da dúvida para entrar na atmosfera da verdade - pelo menos da esperança. Quaisquer que fossem as consequências da nova revelação, vinha esta como um bálsamo, após tão dolorosas comoções; era um rasgão azul no céu tempestuoso daqueles dias. Ia ele pensando assim, ou antes sentindo - porque o pensamento não ousava regê-lo desde que a vida inteira do moço se lhe concentrara no coração.
Chegando à frente da casa, Estácio desviou os olhos; custava-lhe encará-la, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se esta enfim, e a figura do dono da casa apareceu aos dous. Vendo-os, empalideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. Estácio foi direito ao fim.
- Suponho que se lembra de mim? - disse ele.
- Perfeitamente.
- Sabe que motivo nos traz à sua casa?
- Não, senhor.
- Confessa a autoria desta carta?
Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto afirmativo.
- Pretende que Helena é sua filha - disse o moço depois de um instante -. Confirma verbalmente o que escreveu?
- Helena é minha filha.
Melchior interveio:
- Há um ano, falecendo, o meu velho amigo conselheiro Vale reconheceu Helena, por uma cláusula testamentária; recomendava à família que a tratasse com afeto e carinho e designava o colégio em que ela estava sendo educada. O fato do reconhecimento e as circunstâncias que apontou dão toda a veracidade à palavra do morto. Que prova apresenta o senhor em contrário a ela?
- Nenhuma - disse Salvador -; não tenho prova de nenhuma natureza.
- Na falta de provas - prosseguiu o capelão -, poderia dizer-nos como supor da parte do conselheiro uma falsificação, tratando-se de disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa estranha na família?
Salvador sorriu amargamente.
- Suponha - disse ele - que eu havia iludido a confiança do conselheiro e que ele acreditava ser pai de Helena.
- Era isso?
- Não era. Na posição em que nos achamos, já não há lugar para meias palavras. Força é referir tudo. Dez minutos apenas.
Os três sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a persistência e a curiosidade naturais da ocasião. Salvador esteve alguns instantes calado; enfim, voltou-se para o capelão.
- Estimo - disse ele - que o senhor padre viesse; sua caridade temperará a legítima indignação deste moço; e eu farei as declarações indispensáveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de Helena.
- Queira falar - disse secamente Estácio.