Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XX
A visita de Estácio não causou nenhum espanto a Mendonça; ele a esperava com a confiança das índoles ingênuas e avessas ao ódio. Não era crível que um amigo de longos anos dormisse sobre a injustiça de um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estácio procurou o pretendente de Helena.
Entrou naturalmente em casa de Mendonça sem expansão nem secura. A entrevista foi breve e cordial; houveram-se os dous com afetuosa dignidade. Estácio explicou os escrúpulos, declarou-se contente com a aliança. O contentamento podia existir; todavia, a manifestação foi parca e seca. Houve mais calor e expansão quando ele lhe pediu que desse vida feliz à irmã.
- Será para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada - disse ele -. Não tivemos o mesmo berço, vivemos nossa infância debaixo de teto diferente, não aprendemos a falar pelos lábios da mesma mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pai recomendou-a à nossa família, e ela correspondeu ao sentimento que ditou essa última vontade.
Mendonça não respondeu nada; refletira, durante a noite, nas palavras que ouvira a Estácio no dia anterior - palavras que bem podiam ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem do casamento. Helena viria a amá-lo, talvez; mas desde logo lhe levava para casa a chave da independência. Mendonça recuou. Quando o padre Melchior o soube, não pôde conter um gesto de admiração; mas, se louvou o escrúpulo, não aprovou a resolução, que vinha derrubar tudo.
- Não tapará nunca a boca aos maus - disse o padre -; eles acharão meio de envenenar-lhe a generosidade.
- Paciência! - tornou o moço -. É menor esse perigo. Se casar, dirão que faço uma operação vantajosa; talvez a família o suponha; talvez ela própria o pense.
Helena teve notícia dos receios do pretendente, e da resolução a que parecia inclinar o coração. Perguntou-lhe se era verdade. Mendonça afirmou que sim. Ela contemplou-o longamente, sem dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com efusão; ele persistiu.
No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de faceirice. A moça o percebeu, nem por isso deixou de crer na sinceridade do rapaz. Tentou dissuadi-lo; e, posto nada alcançasse nos primeiros minutos, estava certa de que venceria o derradeiro obstáculo. Teria os olhos mais hábeis e felizes que os lábios do padre. Foi o que ela disse ao capelão.
- Tomo à minha conta efetuar este casamento - continuou Helena.
- Resolvida a tudo?
- A tudo.
- Mas, se ele insistir...
- Se ele insistir, vencê-lo-ei, ou por um modo ou por outro. Uma moça que quer ser noiva vale por um exército; eu sou um exército.
- Muito bem! Contudo, sua dignidade...
- Oh! Em último caso abro mão da herança.
- Era capaz disso? - perguntou Melchior.
- Se era capaz? Desejo-o até - disse a moça com veemência.
E acrescentou em tom mais brando:
- Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a mínima desconfiança.
Tal era a situação dous dias depois da volta de Estácio. O casamento podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao desinteresse de Helena. Dona Úrsula aprovou tudo com efusão e amor, nada sabendo das incertezas e contradições dos últimos dias.
Na noite desse dia, Estácio escreveu para Cantagalo dando notícias suas. Do casamento de Helena falou pouco, quase nada. Tudo o descontentava; tanto o que ele fizera e dissera, sem proveito, como o desenlace da situação. Não soubera opor-se com eficácia, nem aplaudir oportunamente.
Posto fosse tarde, o sono teimava em fugir-lhe, e ele velou até muito além da meia-noite. Ocupado, sem dúvida, em adormecer organizações menos sensíveis e existências menos complicadas, o sono fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas da manhã, Estácio acordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quase toda a família dormia. Estácio desceu; o único escravo que achou levantado preparou-lhe uma xícara de café. Não tendo ainda chegado os jornais, bebeu-a sem a leitura do costume.
Quem sabe por que fios tênues se prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estácio ouviu o som longínquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a suposição deu-lhe ideia de ir caçar, foi buscar a espingarda, proveu-se de pólvora e chumbo, e saiu.
Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuído naquela manhã, ou porque a mão estivesse menos firme, ou porque a vista andasse menos segura. Estácio caminhara longo tempo sem pensar no fim que o levava; ia absorto, alheio ao lugar e às cousas. Fez algumas tentativas de caça. Quando cansou de errar, consultou o relógio e viu que não era cedo. Tinha o braço cansado de suster a espingarda; só então reparou que não trouxera um pajem consigo. Dispôs-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de núpcias. Depois desceu, em caminho para casa.
Vinha descendo com a espingarda debaixo do braço, os olhos no chão, a passo lento, apesar de ser tarde. De uma vez que ergueu os olhos, viu um caso estranho, que lhe fez deter o passo. Um pouco abaixo, saía, de trás de uma casa velha, o pajem de Helena, conduzindo a mula e a égua. Estácio não soube que pensar daquilo; cedendo ao impulso, que não pôde dominar, deu um salto por cima da cerca de espinhos, agachou-se e esperou o resto.
O resto não se demorou muito. Assomou à porta da frente a figura de Helena. Depois de olhar cautelosamente para um e outro lado, saiu e montou a égua; o pajem cavalgou a mula e os dous desceram a trote.
Estácio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo, apertava o primeiro objeto que achou debaixo das mãos: era a cerca de espinhos. A dor fê-lo voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe, cavalgavam Helena e o pajem. Logo que os viu desaparecer, Estácio saltou de novo à estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direção à casa donde vira sair a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul que Helena cumprimentara de longe, alguns meses antes, e não esquecera de reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos anos dele. Estas circunstâncias, antes indiferentes, apareciam-lhe agora como outros tantos artigos de um libelo.
O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a caliça das paredes e das colunas ia caindo, e o esqueleto de tijolo estava a nu, em mais de um lugar. Alguma erva mofina brotava a custo junto às paredes, cobrindo com folhas descoloridas o chão desigual e úmido. Por baixo de uma das janelas havia um banco de pau, gretado pelo tempo, com as bordas roliças de longo uso. Tudo ali respirava penúria e senilidade.
"Não", dizia Estácio consigo, "não é este o asilo de um Romeu de contrabando. Mora aqui alguma família pobre, que a caridade engenhosa de Helena vem afagar de longe em longe".
A solução do enigma pareceu-lhe tão natural que o moço resolveu parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para trás. Mas a suspeita é a tênia do espírito; não perece enquanto lhe resta a cabeça. Estácio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquilo era, e voltou sobre seus passos. Para entrar ali era necessário um motivo ou pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater à porta.
XXI
Poucos instantes esperou Estácio. Veio um homem abrir-lhe a porta; era o mesmo que ele vira ali uma vez. Entre ambos houve meio minuto de silêncio, durante o qual nem Estácio se lembrou de dizer o que queria, nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.
- Que desejava? - disse enfim o dono da casa.
- Um favor - respondeu Estácio, mostrando-lhe a mão ferida -. Ia a cair há pouco; procurando amparar-me, numa cerca de espinhos, feri-me, como vê. Podia dar-me um pouco d'água para lavar este sangue e...
- Pois não - interrompeu o outro -. Queira sentar-se aí no banco, ou se prefere, entrar... É melhor entrar - concluiu, abrindo-lhe caminho.
Em qualquer outra ocasião, Estácio teria recusado o convite, porque o espetáculo da pobreza lhe repugnava aos olhos saturados de abastança. Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu uma das janelas para dar mais alguma luz, ofereceu ao hóspede a melhor cadeira e foi por um instante ao interior.
Estácio pôde então examinar, à pressa, a sala em que se achava. Era pequena e escura. A parede, pintada a cola já de longa data, tinha em si todos os sinais do tempo; primitivamente de uma só cor, a pintura apresentava agora uma variedade triste e desagradável. Aqui o bolor, ali uma greta, acolá o rasgão produzido por um móvel; cada acidente do tempo ou do uso dava àquelas quatro paredes o aspecto de um asilo da desgraça. A mobília era pouca, velha, mesquinha e desigual. Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma cômoda e uma marquesa, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sobre a mesa um vaso de louça com flores, e na parede dous pequenos quadros cobertos de escumilha encardida; tais eram as alfaias da sala. Só as flores davam ali um ar de vida. Eram frescas, colhidas de pouco. Atentando nelas, Estácio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer uma acácia plantada em sua chácara. Quando a suspeita germina na alma, o menor incidente assume um aspecto decisivo. Estácio sentiu um calafrio.
Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a cor da parede e o aspecto senil da casa. Estácio ergueu-se.
- Deixe-se estar - disse o desconhecido.
- Estou perfeitamente bem.
- Nesse caso, faça o favor de chegar à janela.
A bacia foi posta na janela; o desconhecido quis lavar ele próprio a mão do hóspede; o moço não lho consentiu.
- Ao menos - disse o dono da casa - há de consentir que a enxugue. Eu entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento caseiro para aplicar.
Estácio aceitou o oferecimento. O dono da casa abriu a toalha e começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Úrsula pôde então examiná-lo à vontade.
Era um homem de trinta e seis a trinta e oito anos, forte de membros, alto e bem proporcionado. Uma cabeleira espessa e comprida, de um castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quase tocar nos ombros. Os olhos eram grandes, e geralmente quietos, mas riam, quando sorriam os lábios, animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia naquela cabeça - salvo as suíças - certo ar de tenor italiano. O pescoço, cheio e forte, surgia dentre dous ombros largos, e, pela abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, podia Estácio ver-lhe a alva cor e a rija musculatura. Vestia pobre, mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e colete de brim pardo. O vestuário, disparatado e mesquinho, não diminuía a beleza máscula da pessoa; acusava somente a penúria de meios.
Quando acabou de lavar os arranhões de Estácio - eram pouco mais do que isso -, propôs-se a ir buscar um pedaço de pano. Estácio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que trazia, e o dono da casa completou o sumário curativo.
- Pronto! - disse ele -. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, será conveniente aplicá-lo. Toda a cautela é pouca; convém evitar alguma inflamação.
- Obrigado - respondeu Estácio -. Realmente, vim dar-lhe uma maçada, sem grande necessidade, talvez...
- Por quê?
- Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa.
- Mora perto?
- Um pedaço abaixo.
- Foi conveniente curar já; nenhuma precaução é inútil em cousa nenhuma da vida.
- Máxima de prudência - observou Estácio, procurando sorrir.
- Que só aprende tarde quem a não traz na massa do sangue - replicou o outro, suspirando.
A não ser indiscreto ou falador, era difícil levar a conversa por diante. O favor estava feito, o assunto, esgotado. Restava agradecer, despedir-se e sair. Estácio, entretanto, tinha necessidade de mais tempo; queria arrancar àquele homem uma palavra menos indiferente à situação, ou conhecer-lhe, se fosse possível, o caráter e os costumes. Para isso havia, talvez, um meio; contrafazer-se, empregar maneiras estranhas às suas, apegar-se à ocasião por todas as bordas. Estácio determinou-se a isso, confiando o resto ao acaso. Voltou à cadeira e sentou-se.
- Consente que descanse um pouco? Estou fatigadíssimo.
- Não pelo que caçou - disse o desconhecido, rindo.
- Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador, e tenho, não obstante, a mania de atirar aos pássaros.
- Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de cousas? Eu fui vítima desse defeito mortal.
- Ah! - exclamou Estácio com certa entonação interrogativa.
O dono da casa sorriu levemente, mas não pareceu molestá-lo a curiosidade do hóspede; talvez mesmo não desejasse outra cousa.
- É verdade - disse ele -; devo a minha atual penúria ao erro de teimar em cousas estranhas à minha índole e aptidão, estranhas e totalmente opostas...
- Há de perdoar-me - interrompeu Estácio, com um ar de familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual -; eu creio que um homem forte, moço e inteligente não tem o direito de cair na penúria.
- Sua observação - disse o dono da casa sorrindo - traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhã antes de sair para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da miséria, e a máxima de que todo o homem pode, com esforço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre parecer uma grande verdade à pessoa que estiver trinchando um peru... Pois não é assim; há exceções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o homem, como supõe, e uma cousa, a que uns chamam mau fado, outros, concurso de circunstâncias, e que nós batizamos com o genuíno nome brasileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fruto de seus mais hercúleos esforços. Césare sua fortuna! Toda a sabedoria humana está contida nestas quatro palavras.
O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, e uma facilidade de elocução que Estácio mal lhe podia supor. Era aquilo uma comédia ou a expressão da verdade? Estácio olhou fixamente para ele, como a querer penetrá-lo. Ao mesmo tempo, ouviu-se um rumor na parte da casa que ficava além da sala. Estácio voltou a cabeça com um gesto de desconfiança. A porta abriu-se e apareceu uma preta velha trazendo nas mãos uma bandeja. A criada estacou a meio caminho.
- Põe em cima da mesa - disse o dono da casa -. Todo o meu almoço - continuou ele, voltando-se para Estácio -; almoço parco e higiênico. Ousarei oferecer-lho?
Estácio fez um gesto negativo, e dispôs-se a sair.
- Já! Não é meu intento despedi-lo; almoçarei conversando. Vivo tão solitário que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto.
Estácio aceitou sem dificuldade o convite; sentou-se defronte do homem, ao pé da mesa, e assistiu ao almoço, que não podia ser mais escasso: um pão, duas hóstias de queijo duro e uma chávena de café. O que mais valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que ostentava aos olhos de um estranho a simplicidade de seus hábitos.
- Não é refeição de príncipe - dizia ele -, mas satisfaz todas as ambições de um estômago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a sala de jantar; a cozinha é contígua; além, ficam duas braças de quintal; para lá do quintal... o infinito da indiferença humana.
E depois de um silêncio:
- Não digo bem - emendou ele -; nem sempre acho indiferença. Meu trabalho não me dá mais do que escasso pão de cada dia; mas tenho algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as de mãos caridosas e puras.
Dizendo isto, o desconhecido esgotou a chávena, e reclinou-se sobre a cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estácio refletiu nas últimas palavras, e um raio de esperança veio rasgar-lhe a nuvem que lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O filho do conselheiro sacou do bolso um charuto e ofereceu ao dono da casa.
- Obrigado - disse este.
- Não fuma?
- Já fumei; hoje economizo esse vício. Nem por isso faço mais lentamente a digestão.
- Mora só?
- Só.
- Não tem família?
- Nenhuma.
- Há de achar-me singularmente indiscreto...
- Não; suponho que a sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.
- Acertou; o senhor inspira-me simpatia. E se eu conhecesse algumas dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...
- Dar-me-ia, por intermédio delas, o seu óbolo?
- Se o não ofendesse...
- Não ofendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde já que o não faça às escondidas...
Estácio fez um gesto de assentimento.
- Não é orgulho - continuou o dono da casa -; é um resto de pudor que a pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obséquio, um simples dever de vizinho... Pareceria que o senhor mo pagava com um benefício. O benefício seria menos espontâneo de sua parte e menos agradável para mim. Agradável não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor facilmente compreenderá o que quero dizer.
- Entendeu-me mal; o meu óbolo não seria na espécie a que o senhor alude. Tenho amigos e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor posição...
O desconhecido refletiu um instante.
- Aceitaria? - perguntou Estácio.
- Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale. Eu vexar-me-ia eternamente de dever qualquer melhora da sorte ao cumprimento de um dever de caridade.
- Já me não admira a vida pobre que tem tido.
- Excessivo escrúpulo, talvez?...
- Escrúpulo desarrazoado.
- Antes demais que de menos.
- Nem de menos nem demais; mas só a porção justa.
- A porção varia, conforme as necessidades morais de cada um. Mas eu mesmo, que lhe estou a falar, nem sempre tive esta virtude intratável; e porventura alguma vez fraqueei...
A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos lábios, e os olhos caíram naquela atonia que exprime uma grande concentração de espírito. Era ocasião de interrogá-lo diretamente ou sair. Estácio preferiu o último alvitre.
- Não o quero demorar mais - disse o dono da casa, quando o mancebo proferiu as palavras de despedida -. Já é tarde e sua mãe talvez esteja ansiosa...
Estácio limitou-se a olhar para ele em cheio, dizendo:
- Se alguma vez resolver dar de mão a seus escrúpulos, mande procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andaraí pela casa do conselheiro Vale...
O desconhecido, em cujo rosto Estácio esperou ver um sinal qualquer de abalo ou surpresa, conservou-se impassível e risonho. Curvou-se em sinal de agradecimento; e como Estácio hesitasse em estender-lhe a mão, ele meteu as suas nas algibeiras.
- Talvez nos vejamos ainda - disse Estácio já fora da porta.
- Sim?
- Passeio algumas vezes por estes lados.
- Nem sempre estou em casa; mas, ainda estando, conservo fechadas as portas. Quando quiser descansar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.
Estácio afastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; ele não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, achava-se no meio de uma selva escura, a igual distância da estrada reta - diritta via - e da fatal porta, onde temia ser despojado de todas as esperanças. Nada sabia, nada conjecturava; eram tudo novas dúvidas e oscilações. O homem com quem acabava de conversar parecia-lhe sincero; a pobreza era autêntica, sensível a nota de melancolia que, por vezes, lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava ali a realidade e começava a aparência? Vinha de tratar com um infeliz ou um hipócrita? Estácio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação suspeitos e irrespondíveis. Repelia com horror a ideia do mal: custava-lhe a aceitar a ideia do bem; e a pior das angústias - a dúvida - continha-o todo e agitava-o em suas mãos felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de pérolas de suor; ao ofego da marcha apressada juntava-se o da violenta comoção. Estácio não via os objetos que ia costeando, nem as pessoas que lhe passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o despertasse.
Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a espingarda. A demora causara alguma inquietação à família; logo que as duas senhoras souberam de seu regresso, correram a recebê-lo, ficando D. Úrsula a uma janela, e descendo Helena até meio caminho. A aparição súbita da moça, a alegria e o amor, que pareciam impeli-la, a perfeita ingenuidade do gesto, tudo produziu nele a necessária reação - reação de um instante, mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estácio apertou as mãos da moça com energia. Um fluido sutil percorreu as fibras de Helena, e aquele rápido instante teve toda a doçura de uma reconciliação.
Estácio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem as ideias, compará-las, extrair uma conjectura, pelo menos, e verificá-la ou desmenti-la. Mas, nem a tia nem a irmã haviam almoçado, à espera dele, e forçoso lhe foi acompanhá-las na satisfação de uma necessidade que não sentia. Durante o almoço, Estácio procurou observar Helena - trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma cousa traía nessa ocasião, eram as alegrias inefáveis da família. Ela própria servia por suas mãos a Estácio e D. Úrsula; inexcedível na atenção com que sabia repartir-se entre os convivas, não o era menos no carinho, e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorância do mal, e o sorriso era o das almas cândidas. Poder-se-ia atribuir àquela criatura de dezessete anos corrupção e hipocrisia? Estácio envergonhou-se de tal ideia; sentiu as vertigens do remorso.
Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estácio buscou dominar a situação. Ele não ia ao ponto de supor em Helena a completa perversão dos sentimentos; o limite do mal que se lhe podia atribuir, era o de uma culposa leviandade. Se, em vez de um ato leviano, fosse aquilo um simples estratagema de caridade, Helena não mereceria menos uma advertência; mas a pureza da intenção salvava tudo, e a paz da família, não menos que o seu decoro, se restabeleceria inteira. Estácio examinou um por um todos os indícios de culpabilidade e de inocência; buscou sinceramente os elementos de prova; não esqueceu um só argumento de indução. Nesse trabalho despendeu longo tempo, sem resultado apreciável, pela razão de que, se a sentença era difícil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a dignidade e a afeição balouçava incerto.
Quase à hora do jantar, Estácio, que não saíra uma só vez do gabinete, chegou a uma das janelas, e viu atravessar a chácara a mais humilde figura daquele enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o pajem. O pajem apareceu-lhe como uma ideia nova; até aquele instante não cogitara nele uma só vez. Era o confidente e o cúmplice. Ao vê-lo, recordou-se de que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquele escravo. A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a cólera cedeu à angústia e ele sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lágrima.
Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.