Romance

Helena

1876

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.

No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.

O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.

A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.

A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").

Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

dezembro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

XVIII

- Helena - disse Estácio no dia seguinte, logo que pôde falar a sós à irmã -, sabes por que vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.

- É verdade.

- É verdade?

- Até ao ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por mim só nada posso decidir; mas não creio que você se oponha de nenhum modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?

Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estácio ficou algum tempo a olhar para a água.

- Não entendo - disse ele enfim.

- Por quê?

- Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor único e forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu coração, é caso não vulgar e muita vez justificável. Mas que este casamento seja para ela felicidade, confesso que não o poderei entender nunca.

- Recusa então o seu consentimento?

- Não recuso; desejo compreender.

- Nada mais simples - retorquiu a moça.

- Ah!

- Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extinto naquele tempo, mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas fantasias, uma vez ao menos? A fantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso desposar um homem digno, que me ame. Não casar foi algum tempo o meu desejo; não o é hoje, desde que você, titia e o padre Melchior ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e os melhores afetos de seu coração.

- De maneira que te sacrificas a um desejo nosso?

- Quando fosse sacrifício, fá-lo-ia de boa cara; mas não é.

- Não se trata de um sacrifício repugnante e odioso; entretanto, cumpre examinar o que perdes. Dizes que a fantasia passou; não creio, Helena, não creio que ela passasse. Tu amas decerto; amas violentamente alguém; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e inimigo...

Helena quis interrompê-lo.

- Ouve - continuou Estácio -. Esse sentimento, se vier a extinguir-se e se for substituído pela afeição que criares a teu marido, não te fará desventurosa; mas supõe que não morre esse amor, qual será a tua situação?

- Tudo isso é um castelo no ar - disse Helena sorrindo -; eu amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido.

Estácio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no rosto plácido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão silenciosa. Os dela, firmes e tranquilos cruzavam o olhar com os dele. Estácio conhecia já o domínio que a moça exercia sobre si mesma; a tranquilidade não o convenceu. Assim pensava, assim o disse, sem rebuço.

- Por que razão negaria eu a verdade? - retorquiu Helena.

Estácio ergueu os ombros.

- Supondo que você tenha razão - tornou ela -, não deverei casar nunca?

- Não digo isso; mas há dous caminhos para a felicidade, além de Mendonça.

- Não os vejo.

- Esse amor misterioso será realmente sem esperança? Nada há definitivo no mundo, nem o infortúnio nem a prosperidade. O que a tua imaginação supõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou oculto...

- Adivinho o segundo caminho - atalhou Helena -; não casando agora, posso vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como ele.

- Parece-te absurdo isso?

- Não, mas é uma loteria: perco um bem certo por outro duvidoso. O jogador não faz cálculo diferente. Essa felicidade pode não vir; eu contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me deveras; senti-o desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino que os dous me oferecem. Esta é a razão e a realidade; o mais é ilusão e fantasia.

Enquanto ela falava, Estácio, que tirara o chapéu de chile, ocupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa carreira de formigas, conduzindo as mais delas trechos de folhas verdes. Com um galho seco, Estácio distraía-se em perturbar a marcha silenciosa e laboriosa dos pobres animais. Fugiam todas, umas para o lado da terra, outras para o lado da água, enquanto as restantes apressavam a jornada na direção do domicílio. Helena arrancou-lhe o galho da mão; Estácio pareceu acordar de largas reflexões; ergueu-se, deu alguns passos e voltou a ela.

- Helena - declarou ele -, não creio nada do que você me diz; você sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever opor-me a semelhante cousa...

Helena ergueu-se também.

- Mendonça começa a ser o fruto proibido - observou ela, sorrindo -, é o meio seguro de o fazer amado.

A moça afastou-se na direção da casa. Estácio viu-a desaparecer por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e comparou-as às próprias ideias, também necessitadas de que um galho invisível as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões, lembrou-lhe o padre; Estácio atravessou a chácara, saiu à rua e dirigiu-se à casa de Melchior.

Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, a algumas braças da residência de Estácio. Tinha duas salas o prédio, janelas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A da frente abria entre duas janelas de venezianas. A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de jacarandá, com livros grossos in quarto e in folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso e pouco mais.

Na ocasião em que Estácio ali entrou, Melchior passeava de um para outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, porque o padre amava contemplar os grandes espíritos do passado, quando não encarava os mistérios do futuro. Naquele corpo mediano havia uma águia cativa. Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, vivendo a vida retrospectiva ou profética, doce e misteriosa volúpia das almas solitárias. Melchior era um solitário; sem embargo das relações sociais, que ele cultivava, amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou estranho a todas as cousas do seu século.

Naquela ocasião lia. Vendo assomar à porta o vulto de Estácio, Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o afavelmente.

- Vim interrompê-lo - disse Estácio -; mas era preciso.

Melchior depôs o livro sobre a mesa redonda que havia no meio da sala, marcando a lauda com uma velha estampa. Depois sentaram-se ao pé de uma das janelas laterais. Estácio não se atreveu a dizer logo o motivo que o levara ali; mas de sua própria hesitação deduziu Melchior qual era ele.

- Era preciso? - repetiu o padre.

- Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo, confio em seu conselho e discrição. Como deseja a felicidade de minha família, buscou facilitar o casamento de Helena e Mendonça...

- Contando com a sua aprovação - explicou o padre.

- Hesito em dá-la.

- Por quê?

Estácio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe propunha, ao que Melchior respondeu, referindo singelamente a verdade.

- É certo que o não ama ardentemente - concluiu ele -, mas aceita-o, aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.

- Há uma dificuldade, padre-mestre; é que ela ama a outro.

Melchior empalideceu; o olhar escrutador, como o de um juiz, cravou-se imóvel e afiado no rosto de Estácio. A fronte severa do moço não se alterou, nem seus olhos baixaram à terra.

- Ama a outro - continuou ele -; paixão violenta, mas sem esperança, e tão real quão misteriosa. Uma ou duas vezes aludiu a ela; nada mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, desviou daí o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei, porém, que ama, e casar com outro em tais circunstâncias dá dous inconvenientes igualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o homem que interiormente elegeu, e leva para a casa do marido um sentimento de pesar e de remorso. Parece-lhe isso tolerável?

- Não há remorso, não há pesar onde não há esperança, redarguiu o padre. Helena aceita o Mendonça por espontânea vontade; e conheço-a tanto que não acho já possível que ela recuse.

- Salvo o meu consentimento.

- É claro; mas por que o não daria?

- Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou o coração. Talvez ela ache impossível aquilo que é simplesmente difícil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezessete anos.

- Valem por vinte e cinco.

- Pode ser; mas convém não aceitar de coração leve uma condescendência ou um capricho, ou qualquer outro motivo oculto que a inspira nesta resolução.

- Que motivo seria?

- Eu sei! Talvez a suspeita de que estimássemos vê-la afastar-se de casa.

- Não a calunie; Helena tem perfeita ciência e consciência dos afetos que a rodeiam e da estima em que é tida. Suas objeções não valem nada diante da declaração que ela própria fez. Não compliquemos uma situação simples e definida.

Melchior proferiu estas palavras com voz branda, mas em tom firme; Estácio não se animou a responder logo. Voltou, porém, ao primeiro argumento; depois, aventurou uma objeção nova.

- Mendonça é bom coração - disse ele -; mas não possui as qualidades que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca exercerá sobre ela a influência que deve ter um marido. Entre os dous inverte-se a pirâmide. Mas isto, ao menos, se destruía uma das condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O perigo maior é outro; é vir ele a perder a estima da mulher. Nesse caso, que lhe daríamos nós a ela? Um casamento aparente e um divórcio real.

Não olhava para ele o padre, mas para fora, com uns olhos dolorosos e o gesto impaciente. Quando ele acabou, fitou-o com resolução; disse que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, mas com o que ela própria escolhera de sua vontade livre; casamento que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de família, Estácio podia opor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem convinha isso ao interesse de Helena nem ao próprio interesse da família.

Estácio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e pensativo.

No fim de alguns segundos, o padre foi a ele.

- Vá contar tudo à sua tia - disse -; aprove sua irmã, casá-los-ei a todos no mesmo dia.

- Pois bem - disse Estácio, como concluindo um raciocínio interior -; consinto em que Helena se case, mas procuremos outro marido. Mendonça, não; há de ser outro. Vou casar-me também; receberei todas as semanas; algum rapaz aparecerá que a mereça e de quem ela venha a gostar seriamente... É a minha última resolução.

XIX

No momento em que Estácio proferia estas palavras, transpunha Mendonça a porta do jardim do capelão. Preocupado com a frieza de Estácio, lembrara-lhe falar a Melchior e pedir-lhe conselho. Melchior ia responder ao sobrinho de D. Úrsula, quando ouviu rumor de passos na areia do jardim.

- Aí vem o noivo - disse ele.

Estácio deu dous passos para pegar no chapéu; reconsiderou e foi sentar-se ao pé da mesa redonda. Havia ali um exemplar das Escrituras. Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos Provérbios, leu este versículo: "Quem quer abrir mão de seu amigo, busca-lhe as ocasiões; ele será coberto de opróbrio". Envergonhado, voltou a folha. Mendonça entrara na sala. Não contava com Estácio, mas estimou vê-lo ali.

- Venha - disse Melchior -, tratávamos justamente do seu casamento.

Estácio lançou ao padre um olhar de exprobração. O padre não o viu, olhava para Mendonça, que imediatamente lhe respondeu:

- Não venho cá para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso confidente, desejo constituí-lo meu conselheiro e diretor.

- Antes de tudo, sou advogado de sua causa - disse Melchior -; estava expondo agora as vantagens dela.

Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:

- Rejeitas ou aceitas o noivo? - perguntou ele.

Posto entre a espada e a parede, Estácio não soube logo que respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receoso de encontrar a vista dos dous. O silêncio era pior que a resposta; e nem o caso nem as pessoas permitiam tão grande pausa. Estácio fechou de golpe o livro e ergueu-se.

- Discutia somente as vantagens do casamento - disse ele.

- E qual é a tua opinião?

- Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só essa, nem é a principal; o voto, em todo caso, é a favor do casamento. A principal razão é o teu próprio crédito.

- Meu crédito?

- Helena pode vir a amar-te como lhe mereces; a verdade é que não sente ainda hoje igual paixão à tua; foi o padre-mestre que mo disse. Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão, e eu creio que a flor do sentimento é muito mais própria no canteiro do matrimônio...

- Há muita flor nesse ramalhete de retórica - interrompeu benevolamente o padre -. Falemos linguagem singela e nua. Não creia literalmente o que lhe diz este filósofo - prosseguiu ele, voltando-se para Mendonça -; ele gosta de ambos e quer vê-los felizes; é o próprio zelo que lhe faz falar assim. Numa palavra, deseja que o senhor a conquiste, depois de campanha formal...

Mendonça respondeu ao capelão com um sorriso pálido, que lhe arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e frio. O rosto ficara carregado e pensativo; a língua de Estácio tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a simpatia de Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado capital, não lhe ocorrera que, a olhos estranhos, podia parecer que o fim exclusivo era a riqueza da moça. Estácio rompera o véu a essa probabilidade. Uma só palavra desfizera a ilusão de poucos dias.

- Vamos lá - disse o padre -, abracem-se como irmãos.

Nenhum deles se mexeu. Melchior sentiu toda a gravidade da situação; viu perdidos os esforços, desfeita a união assentada, um abismo cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveio outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper. Quando acabou:

- O Estácio tem razão - disse Mendonça -; meu crédito padecerá, desde que alguém se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma preocupação das preferências de D. Helena. Ela me desobrigará, em troca da palavra que lhe restituo.

A frase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estácio olhava para ele e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz interior parecia dizer-lhe: "Sonâmbulo, abre os olhos, tem consciência de tuas ações; teu abraço enforca; teus escrúpulos fazem-te odioso; tua solicitude é pior do que a cólera." Viu o mancebo cortejar o padre; deteve-o pelo braço.

- Onde vais? - disse ele.

- Vou aonde me leva o pundonor - disse singelamente Mendonça.

- Pobres rapazes! - exclamou o padre -. São dous estouvados, nada mais; um quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre e franca resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em presença de um sacerdote. Estouvados, disse eu? São mais do que isso: são dous dementes. Ora, como só eu tenho juízo e consequente autoridade, digo que nem um há de sair assim desenganado, nem o outro há de recusar a aquiescência que lhe peço em nome de seu finado pai.

Estácio estremeceu, Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o golpe excedia a necessidade. Mendonça não quereria dever a esposa à evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o Melchior, quando viu Estácio estender a mão ao amigo, mão que este recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estácio com essa mesma repulsa do pretendente? O certo é que lhe disse, sem a menor sombra de hesitação:

- Meu zelo foi talvez excessivo; a intenção é boa e pura. Que posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será o remate das minhas aspirações. Prometes fazê-la feliz?

- Não prometo nada - disse Mendonça -, o casamento é já impossível. Tu abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo, mas não me exponho à língua dos maus.

Mendonça foi buscar o chapéu e dispôs-se a sair, não obstante a intervenção de Melchior, que procurou trazê-lo a sentimentos de reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma resolução digna e firme, que era impossível dobrar naquele momento. Quando Mendonça lhe estendeu a mão em despedida, ele apertou-lha com ternura e esperança. Estácio tentou ainda retê-lo; foi inútil; Mendonça saiu dali sem rancor, mas sem pesar. O coração sangrava-lhe, a consciência ia contente.

Melchior foi até à porta, a despedir-se de Mendonça. Quando este saiu, ele voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o sobrinho de D. Úrsula. O moço desviou os olhos.

- Viu? - perguntou o padre -. Não sei qual seja a sua resolução; mas prometo-lhe que serei como Maomé - Deus me perdoe! -: ainda que veja o sol à minha direita e a lua à minha esquerda, não deixarei de executar o meu desígnio. Vá ter com sua família; deixe-me alguns instantes com o meu breviário.

Estácio não pode resistir à intimação do sacerdote; não achou uma palavra para lhe dizer. Saiu aturdido, desconsolado, colérico. Na rua e na chácara, ia pensando na cena daquela última hora, e parecia apenas reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a inteligência, chamava em seu auxílio todas as forças da realidade; olhava para o chão, suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pé no meio de lembranças tão desconcertadas, ele viu claramente o resultado de suas ações: perdia um amigo de longos anos e abdicava a direção da família, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se esta lhe agradecesse a resistência, Estácio dar-se-ia por bem pago de tudo Não era em seu favor que ele conspirara? Este pensamento levantou-lhe o ânimo; tivesse a aprovação de Helena, pouco lhe importaria o resto.

Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passara em casa de Melchior. Ouviu-a comovida; no fim reprovou tudo o que ele fizera.

- Mendonça é já o fruto proibido - concluiu a moça -; começo a amá-lo. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adorá-lo-ei...

- Chegamos ao capricho! - exclamou ele -. É o fundo do coração de todas as mulheres.

Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu ao quarto, travou de uma pena e escreveu um bilhetinho. A tinta secou primeiro que duas grossas lágrimas caídas no papel; mas as lágrimas secaram também. Antes de fechar o bilhete, desceu Helena a mostrá-lo ao irmão.

Quando a moça entrou no gabinete, Estácio ia ter com ela. Tinha resolução assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa feição o casamento, não havia mais que o aprovar e celebrar. Encontraram-se na porta; Estácio recuou para dentro.

- Helena - disse ele -, faça-se a tua vontade.

- Consente?

Estácio fez um gesto afirmativo.

- Não basta isso - tornou a moça -; Mendonça não voltará cá depois do que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete.

Estácio abriu o bilhete; continha estas poucas palavras: "Venha hoje a Andaraí; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o exige". Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que estava escrito e o que não estava. Helena desarmava os escrúpulos de Mendonça, tirando à futura união qualquer suspeita de interesse. Leu e fechou lentamente o papel.

- Aprova? - perguntou a moça.

- Assim, pois - disse o moço tristemente -, a tua felicidade exige que esse homem venha cá, que te cases com ele, que nos fujas? Não te basta a família, a afeição de nossa tia, a minha própria afeição? Estes meses de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante, sacrificados aos pés do primeiro homem que te apraz escolher e seguir? No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova, alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa família completou-se: nossos corações receberam um sentimento último. Pensávamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh! Helena, melhor fora não ter vindo!

Helena quis responder, a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe, ainda uma vez, que o enviasse e saiu.

De tarde apareceu Melchior; ia tranquilo e resoluto a dar um golpe decisivo. Estácio rendeu-se, antes que ele falasse.

- Padre-mestre - disse o moço logo que o viu -, a reflexão venceu-me; faça-se a vontade de todos.

- Fala de coração?

- De coração.

- Pois bem, seja completo - tornou o padre -. Sou ministro de uma religião que condena o orgulho. Não há desar em curar as feridas de um amigo: vá ter com o seu amigo; traga-o a esta casa, como irmão.

- Irei amanhã.

- Não; vá hoje mesmo.

A noite caiu logo; Estácio foi dali vestir-se. Não tendo enviado o bilhete de Helena, meteu-o na algibeira para entregá-lo ele próprio; depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgá-lo, conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, à semelhança de mariposa indiscreta, parecia atraída pela luz; resistiu, resistiu algum tempo; enfim chegou o bilhete à vela e queimou-o.

A+
A-