Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XVI
Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa, a olhar para as folhas da trepadeira, que do lado de fora viera a subir pela muralha da varanda e a debruçar-se enfim do parapeito para dentro. A carta ficara aberta sobre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, olhava para esta, sem ousar falar-lhe.
Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da inteligência humana. Pode dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da graça feminil. Mendonça o sentiu, contemplando o busto de Helena e a casta ondulação da espádua e do seio, cobertos pela cassa fina do vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do lugar em que ficava, Mendonça via-lhe o perfil correto e pensativo, a curva mole do braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ela trazia. A atitude convinha à beleza melancólica de Helena. O rapaz olhava para ela sem movimento nem voz.
A tarde expirava; a cor verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto cinzento-escuro que precede a cor fechada da noite. A própria noite desceu, e um escravo entrou na varanda a acender as duas lâmpadas que pendiam do teto. Esta circunstância acordou a moça, e bastou-lhe voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estácio a alguns passos de distância.
- Estava aí? - perguntou Helena, estremecendo.
- Dona Úrsula não voltou - respondeu Mendonça com timidez -; não quis interromper a leitura que a senhora fazia.
- A leitura? A leitura acabou há muito tempo.
- Mas também se lê de cor.
Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.
- Não sei ler de cor - disse ela, erguendo-se e saindo da varanda.
Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera ele tão grave que a pudesse ofender? Repetiu as próprias palavras e não lhes achou sentido mau. Certo, porém, de que a molestara, ali ficou aborrecido de si mesmo, desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicável. Após alguns instantes, resolveu entrar também. Entrou; Helena não estava nem na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Úrsula com o Dr. Matos e o coronel-major. Dali passou à sala de visitas. Helena não o viu entrar; estava mergulhada numa poltrona com a cabeça nas mãos. Comovido, deteve-se alguns instantes a contemplá-la; depois caminhou para ela e falou-lhe.
Helena ergueu a cabeça.
- Perdoe-me - disse ele -, se alguma cousa lhe disse que a magoou. Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou triste por isso?
A moça cravou nele um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu logo. Mendonça adotou o melhor dos alvitres naquela ocasião; inclinou-se e recuou para sair. Helena chamou-o; ele aproximou-se outra vez, com um ar de tão doce resignação que lisonjearia o mais levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; ele apertou-a e teve ímpetos de a beijar uma e muitas vezes, triunfando naquele único instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena mostrou-lhe o trecho da carta em que Estácio se referia a ele; falaram dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assunto que exclusivamente preocupava o moço. Ele saiu dali sem haver dito nada de seu coração. Chegando à rua, achou-se poltrão e ridículo, disse mil nomes feios a si próprio; enfim, prometeu declarar tudo a Helena no dia seguinte.
No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se à capela a ouvir a missa do padre Melchior. Acabada a cerimônia, não seguiu para casa, com D. Úrsula, mas foi ter à sacristia, onde o padre acabava de tirar os paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estácio, nessa manhã, pedira a Helena que lha deixasse ver.
- Falam sempre ao coração as letras dos amigos - dissera ele.
Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de curiosidade que de afeto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o sentido e as palavras; e, sendo longa a epístola, longo foi o tempo que ele despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe a figura austera, a serenidade religiosa. A sacristia era pequena; duas altas janelas deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flores da chácara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado os ninhos, donde saíam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol da manhã. Ao pé daquele quadro exterior de alegria e verdura, a sacristia tinha certo ar melancólico e severo, que lançava n'alma o esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se cativar desse sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entre aquelas paredes desataviadas, diante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras vivas do Criador.
Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a à moça.
- Já respondeu? - perguntou ele.
- Já; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo.
Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de menores dimensões. O estilo era afetuoso, mas muito menos exuberante que o da carta de Estácio. Ela contava-lhe, em suas feições gerais, a vida que ali passavam, desde que ele partira, as ocupações de cada dia e as distrações da noite.
Vivemos - dizia a moça - como podem viver duas criaturas que sabem a afeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não esquecido - nem ingrato. O padre Melchior, algum dos vizinhos, e o Dr. Mendonça são as nossas visitas habituais. Você sabe o que vale o padre; é a mais bela alma que Deus mandou ao mundo. Os vizinhos são afáveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa afeição e confiança. Disse-lhe o que você me escreveu; ele riu, como homem seguro de escapar à punição.
Pena é que você tenha de se demorar aí tanto tempo; mas, se alguma esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da demora. É verdade que você não é médico; mas há aí outra doente, para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Por que razão me não escreveu Eugênia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na véspera de ser minha cunhada. Se estivéssemos mais perto, ia puxar-lhe as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver ocasião de emprestar-me os seus dedos, aplique-lhe o castigo, declarando-lhe o delito cometido e o juiz que a sentenciou.
O que você diz da vida solitária é muito justo, mas impraticável. Os amigos não nos iriam ver; e poderíamos nós dispensá-los? Tal é a opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio-termo de Andaraí; nem estamos fora do mundo, nem no meio dele. O ruído externo pode ter os efeitos de que você fala; mas ele é às vezes preciso para aturdir e distrair o espírito. Também a solidão tem suas dores, e fundas; também ela abala o coração. Nem um extremo nem outro.
A carta continha alguns períodos mais, não muitos; três ou quatro vezes falava em Eugênia, com tamanha insistência que punha em relevo o silêncio a tal respeito conservado por Estácio; falava-lhe da beleza da noiva, do casamento próximo, do amor que os faria felizes, e da ventura que ambos dariam a todos os seus.
Quando o padre acabou de ler a resposta, abriu os braços a Helena; depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante alguns segundos.
- Toda a sua alma está nesse escrito - disse ele -; vejo aí a reflexão e o afeto. Tanto melhor! Há contudo uma lacuna: não transmite a seu irmão as minhas saudades; há também uma excrescência: louva méritos que não possuo. Embora! Mande-a...
- Escreverei duas linhas mais.
- Pois sim. Diga-lhe que se apresse, porque estou velho e posso morrer antes.
- Oh! - protestou Helena.
Melchior olhou para ela silenciosamente.
- Crê que Estácio seja feliz? - perguntou ele enfim.
- Creio.
- Também eu.
Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre.
- Por que se não casa também? - disse ele.
- Eu?
- Decerto. Pode ser que muito breve, talvez...
- Talvez nunca.
Melchior franziu a testa; a fisionomia, de ordinário meiga, tornou-se severa, como a consciência dele. O padre tinha uma das mãos de Helena entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam romper; como subjugados por um mistério, receava cada um deles que o outro lho lesse na fronte; instintivamente desviaram os olhos.
Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a espontaneidade, e o padre reassumiu o gesto usual, com essa dissimulação que é um dever, quando a sinceridade é um perigo.
- Vamos lá - disse ele -; ninguém pode decidir o que há de fazer amanhã; Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais que transcrevê-las na terra.
- É verdade! - confirmou ela com um gesto de cabeça, e sem erguer os olhos.
- Amanhã - continuou o padre - o acaso - isso a que os incrédulos chamam acaso, e que é a deliberação da vontade infinita - lhe apontará um homem digno da senhora, e seu coração lhe dirá: é este; e o suspiro desalentado de hoje converter-se-á num olhar de graças ao céu. Ora, o que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto que eu possa casá-los...
- Oh! Mas não vai morrer amanhã - interrompeu Helena.
- Estou velho, minha filha; estes cabelos brancos são já a neve desse mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta anos. A morte pode colher-me um dia próximo...
- Vamos almoçar - disse Helena sorrindo.
Saíram da sacristia, atravessaram a capela, e penetraram na chácara. Na ocasião em que iam transpor a porta da capela, viram Mendonça entrar em casa. Melchior estacou e olhou para Helena. Esta ia como acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ela lhe declarou que não se casaria talvez nunca, ficara-lhe gravado na memória, como um enigma, que talvez receava decifrar. Poucos minutos eram passados; contudo, ela pôde refletir, e coligir os elementos de uma resolução. Detendo-se, com o padre, à porta da capela, viu também entrar Mendonça. Os olhos da moça e do padre interrogaram-se de novo, mas desta vez nenhum deles os desviou.
- Vê aquele homem? - perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido?
- Excelente, decerto - disse vivamente Melchior -; caráter, educação, sentimentos...
- Tem ainda uma virtude particular: ama-me.
- Sei.
- Ele lho disse?
- Não, mas vê-se. É sabido de todos os que frequentam esta casa. A probabilidade do casamento é objeto de comentários, e a opinião geral é que ele se fará dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma cousa?
- Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros?
- Acho; consulte, porém, seu coração.
- Já consultei.
- Neste único instante?
- Nada menos.
- Deveras? - disse Melchior, derramando um olhar de paternal ternura no rosto sério de Helena.
- Não digo que o ame desde já; mas a afeição que ele me tem refletirá em meu coração, e eu virei a amá-lo. O que importa saber é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria superior.
- Ainda bem! Contudo, repare que vai contrair uma obrigação perpétua, e que um contrato destes não pode ser deliberado em poucos instantes.
- Oh! Nesse ponto a minha ignorância sabe mais do que a sua teologia. Que são minutos e que são meses? Paixões de largos anos, chegando ao casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo ódio, quando menos pela indiferença. O amor não é mais que um instrumento de escolha; amar é eleger a criatura que há de ser companheira na vida, não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, porque essa pode esvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos casamentos, logo após os anos da paixão? Uma afeição pacífica, a estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar mais do que isso.
- Não gosto de tanta reflexão em tão verde idade - replicou benevolamente Melchior -; todavia, encanta-me esse raciocínio que, ao cabo de tudo, pode ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é pouco tempo; reflita ainda vinte e quatro horas.
- Nem um instante mais - insistiu Helena -. Minhas reflexões são lentas ou súbitas: ou cinco minutos ou um ano; escolha.
- Pois reflita cinco minutos - replicou o padre sorrindo.
- Já lá vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada disto falaria, se não fossem as qualidades notáveis desse moço; e para acrescentar que a ele me liga certa simpatia de gênios... é talvez a semente do amor.
Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Úrsula e Mendonça, este a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se imediatamente.
- Padre-mestre - disse D. Úrsula -, demorou-se tanto que cuidei... tivesse ideia de me arrebatar Helena.
- Estive-a ouvindo de confissão - respondeu Melchior.
- E pôde absolvê-la?
- Decerto.
- Mas com grande penitência, não?
- A mais fácil de todas - acudiu Helena, olhando para o padre.
- Oh! Então é que os pecados são leves! - concluiu D. Úrsula -. Não lhe parece?
Estas últimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na ocasião em que todos caminhavam para a mesa. Mendonça não respondeu nada. Contra o costume, falava pouco - menos ainda que na véspera e nos dias anteriores. Dona Úrsula via a diferença mas não a compreendia.
- Não quero saber que pecados confessou - disse ela sentando-se -; estou certa de que o maior deles não levaria ninguém ao purgatório.
- Veja o que é uma tia indulgente - observou Helena a Mendonça, sentando-se ao seu lado.
Preocupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chácara, Melchior pouca atenção prestou a princípio ao filho do comerciante. Analisava as circunstâncias do momento e pesava a responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que adotasse. Após um longo diálogo com a consciência, o velho sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado de Helena. Viu-os conversar. Ela mostrava-se graciosa, solícita e atenta, como uma esposa amante; ele parecia enamorado da voz e das falas da donzela; como que um clarão interior lhe desvendara à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarizado com Helena, tratado por ela com esquisita atenção, era contudo a primeira vez que ela lhe falava, não como a um confidente amigo, mas como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um olhar submisso, uma atenção continuada, fizeram essa diferença, que antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos.
No fim do almoço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada de raiz; ele aceitava aquele casamento como um presente do céu. Apenas entrados na sala, travou as mãos de um e outro e lhes disse, com voz comovida:
- Prometem não zangar-se comigo?
- Por quê? - interrogou Mendonça com os olhos.
Helena baixara os seus.
- Prometem?
- Padre-mestre... - começou Mendonça sem poder concluir a frase.
O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia romper o silêncio; fê-lo com solenidade:
- Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho. Quando duas criaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao coração que não ousa falar. O senhor ama esta menina; leio-lhe nos olhos o sentimento que o arrasta para ela; são dignos um do outro. Se é a timidez que lhe fecha os lábios, eu sou a voz da verdade e do amor infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutá-lo.
Ouvindo estas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a fortuna lhe chegava às mãos, quando ele menos esperava, mas até escolhera um caminho desusado e estranho. A realidade confundia-se ali com o sonho. A presença de um terceiro era suficiente motivo para acanhar os mais resolutos; acrescia a veste sacra do sacerdote, que dava àquilo um ar de solenidade e consagração. Mendonça recobrou, enfim, o uso dos sentidos; a resposta única e eloquente foi estender a mão a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simpleza e naturalidade.
- Não se enganaram meus olhos - disse o padre -. Ama-a, e pode dar-lhe a felicidade que lhe desejo a ela. Também Helena o fará venturoso, não? - perguntou ele, voltando-se para a moça.
- Mas é isto um sonho? - perguntou enfim Mendonça.
- A vida não é outra cousa - retorquiu o capelão -; velho pensamento e velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradável e não árido ou triste. Prometem-me que se farão felizes?
- Não ambiciono outra cousa - disse o rapaz -; será o meu cuidado e a minha glória.
- Seu amor - continuou Melchior - é mais forte que o de Helena; eu consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem entusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar; é um sentimento brando e singelo, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá a violência do outro e os dous sentimentos se completarão pela virtude especial de cada um.
Esta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradável aos dous. Helena estimou que ele nem lisonjeasse as ilusões de Mendonça, nem a desse como aceitando indiferente e estouvada o casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre um indício da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco oferecido, com a certeza de multiplicá-lo. O caráter de Melchior e a veneração que mereciam suas virtudes eram fianças de veracidade e davam ao ato singelo que ali se passava um forte cunho de santidade e elevação. Não era uma vulgar declaração de amor, sujeita às variações do espírito ou do interesse, mas verdadeiros esponsais em que a religião era inspiradora e testemunha.
XVII
Aquele dia foi marcado no calendário de Mendonça com letras de ouro e cetim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Ele viveu essas horas todas num estado de sonambulismo e êxtase. Tencionava referir tudo à mãe, logo que entrou em casa ao meio-dia; mas não se atreveu, porque ele mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas asas de uma quimera. De noite voltou a Andaraí; achou em Helena o mesmo modo afetuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, nenhuma contemplação namorada; um meio-termo que o continha a ele próprio, e não era menos aprazível ao coração. A nova situação era, entretanto, sensível, porque os vigilantes de fora trocaram entre si olhares cheios de graves descobertas; um deles, o coronel-major, chegou a proferir uma alusão, que os interessados fingiram não perceber.
Quando Mendonça chegou a casa nessa noite, ia mais que nunca cheio de comoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas aí entrou, pareceu-lhe transformada por uma vara mágica; viu-a povoada de seres fantásticos e rutilantes, que iam e vinham do céu à terra e da terra ao céu. A cor deste era única entre todas as da paleta do divino cenógrafo. As estrelas, mais vivas que nunca, pareciam saudá-lo de cima com ventarolas elétricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e despeito. Asas invisíveis lhe roçavam os cabelos, e umas vozes sem boca lhe falavam ao coração. Os pés como que não pousavam no solo; ia extático e sem consciência de si. Era aquele o galhofeiro de há pouco? O amor fizera esse milagre mais.
Um dos teatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que aliás expirava de parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de apalpar a realidade das cousas, tão quimérico se lhe afigurava tudo o que se passara desde manhã.
Um espectador, o filho do coronel-major, viu-o a alguma distância e foi sentar-se ao pé dele.
- O senhor que tem melhor vista - disse o acadêmico -, desengane-me; aquela moça que ali está, naquele camarote, não é a andorinha viajante?
- A andorinha viajante? - repetiu Mendonça, olhando para ele -; que quer dizer esse nome?
- É a alcunha da irmã de Estácio. Será ela que está ali, com uma senhora idosa?
- Mas por que lhe chamam assim?
- Eu sei! Naturalmente porque sai à rua todos os dias. Na verdade, é um passear! Mal amanhece, lá vai trepada no cavalinho, com o pajem atrás...
- Quem lhe pôs essa alcunha?
- As alcunhas são como as mofinas: não têm autor.
Caíra o pano; Mendonça despediu-se ali mesmo e saiu. Na rua repetiu mentalmente as palavras do jovem acadêmico. Ao cabo de alguns minutos, sorriu; compreendera que, apenas suspeitada a sua felicidade, já a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os ombros, resoluto a suportar tranquilo essa lívida companheira do êxito.
Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvera a ocupá-lo exclusivamente. Só, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos daquele dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com alguém, escreveu uma longa carta a Estácio, narrando-lhe toda a história do seu coração, as esperanças e a pronta realização delas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exuberante. O estilo era irregular, a frase, incorreta; mas havia ali a eloquência e a sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia dar ao amigo, logo que ela lhe chegasse às mãos, levando a notícia de que os vínculos atados na aula iam apertar-se na família.
"Vem quanto antes", dizia ele ao terminar a missiva; "tenho ânsia de abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fará o mais feliz dos homens!"
Quando essa carta chegou a Cantagalo, Estácio voltava de uma pequena excursão que fizera com o pai de Eugênia. Conheceu a letra do sobrescrito; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. A impressão foi tão visível que Camargo lhe perguntou de que se tratava.
- Recebo uma notícia que me obriga a partir amanhã - disse ele.
- Negócio grave?
- Grave.
- Ainda assim, nesta ocasião...
- Que tem? D. Clara pode ainda resistir à morte alguns dias; e, posto que a minha ausência não prejudique nada do fato a que aludo, contudo é mister que me informe e providencie.
- Algum negócio relativo ao inventário? - aventurou Camargo, que nada conhecia mais grave que o dinheiro.
- Justamente - respondeu maquinalmente Estácio.
Camargo consolou a filha do desgosto que lhe causava a partida do noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assuntos práticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No dia seguinte de manhã, partiu Estácio na direção da Corte, não sem prometer que voltaria, se a moléstia ou qualquer outro motivo obrigasse a família a demorar-se em Cantagalo.
Ninguém esperava por ele em Andaraí. Entrando na chácara - era de noite -, viu Estácio que a sala que ficava no ângulo esquerdo da frente da casa estava alumiada e tinha gente. A sala ficava ao rés-do-chão e as janelas estavam abertas. Parou a pouca distância, e pôde distinguir o coronel-major e o Dr. Matos jogando o gamão; a mulher do advogado falava a D. Úrsula e Melchior, em um dos lados; do outro estava assentada Helena, tendo Mendonça diante de si.
Estácio deu volta aos fundos da chácara, e entrou pela varanda. Os escravos que o viram chegar, deram sinal da novidade, com vozes de alegria, que, aliás, não chegaram até às pessoas da sala. Estas só souberam do recém-chegado quando ele assomou à porta. A satisfação de o ver foi geral e sincera em todos. Estácio distribuiu abraços e apertos de mão. Melchior, que se deixara ficar de lado, foi o último com quem falou.
- O Dr. Camargo veio? - perguntou D. Úrsula ao sobrinho, logo depois que este cumprimentara a todos.
- Não - respondeu Estácio -, a doente não pode escapar, mas ainda a deixei com vida.
- Imagino a impaciência dos herdeiros.
Esta observação filosófica do coronel-major não teve nenhum efeito. Melchior, que a reprovara interiormente, fez mudar a conversa, informando-se da família de Camargo. Estácio deu todas as notícias que podiam interessar; depois, falou de alguns incidentes da viagem; enfim, retirou-se por alguns minutos.
Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram juntos e juntos entraram no quarto.
- Agora que estamos sós - perguntou Mendonça -, houve por lá alguma cousa?
- Nada.
- Tanto melhor!
Um escravo entrou no quarto, a fim de servir a Estácio; Mendonça, ansioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas indicações.
- Recebeste a minha carta? - disse ele.
- Recebi.
- Não esperavas por ela, aposto...
- Não.
- Como eu não esperava escrevê-la. Estás aborrecido?
- Estou cansado.
- Naturalmente - assentiu Mendonça, abrindo um livro que achou sobre a mesa e tornando-o a fechar.
O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quais Mendonça tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um cigarro e fumou. O escravo ajudava o senhor a mudar de roupa. Estácio continuava mortalmente calado; Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indiferentes, e o tempo não correu, andou com a lentidão que lhe é natural, quando trata com impacientes. Logo que Estácio se deu por pronto, e o escravo saiu, Mendonça voltou diretamente ao assunto que o preocupava.
- Estava ansioso por ver-te - disse ele -. Não nos é possível falar agora; não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um abraço de agradecimento pela felicidade...
- Parece que só esperavas a minha ausência?
- Creio que não. Já antes de seguires, começava a sentir alguma cousa nova, que vim a descobrir ser paixão violenta.
- Helena ama-te?
- Com igual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum afeto.
- Tratarei de consultá-la.
Mendonça não pôde continuar, porque Estácio descia a escada ao dar-lhe a última resposta. Mendonça desceu também. Na sala estavam ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janela conversava Helena com o padre. O chá foi logo servido e a conversa tornou-se geral, ainda que sem grande animação. Melchior falou menos que todos.
Nem por isso foi o primeiro que saiu; foi o último. Na chácara, dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a lua e as estrelas, senão para subir a região mais alta. O que disse ninguém o soube, mas o anjo das rogativas humanas porventura colheu em seu regaço os pensamentos do ancião, e os levou aos pés do eterno e casto amor.
XVIII
- Helena - disse Estácio no dia seguinte, logo que pôde falar a sós à irmã -, sabes por que vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.
- É verdade.
- É verdade?
- Até ao ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por mim só nada posso decidir; mas não creio que você se oponha de nenhum modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?
Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estácio ficou algum tempo a olhar para a água.
- Não entendo - disse ele enfim.
- Por quê?
- Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor único e forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu coração, é caso não vulgar e muita vez justificável. Mas que este casamento seja para ela felicidade, confesso que não o poderei entender nunca.
- Recusa então o seu consentimento?
- Não recuso; desejo compreender.
- Nada mais simples - retorquiu a moça.
- Ah!
- Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extinto naquele tempo, mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas fantasias, uma vez ao menos? A fantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso desposar um homem digno, que me ame. Não casar foi algum tempo o meu desejo; não o é hoje, desde que você, titia e o padre Melchior ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e os melhores afetos de seu coração.
- De maneira que te sacrificas a um desejo nosso?
- Quando fosse sacrifício, fá-lo-ia de boa cara; mas não é.
- Não se trata de um sacrifício repugnante e odioso; entretanto, cumpre examinar o que perdes. Dizes que a fantasia passou; não creio, Helena, não creio que ela passasse. Tu amas decerto; amas violentamente alguém; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e inimigo...
Helena quis interrompê-lo.
- Ouve - continuou Estácio -. Esse sentimento, se vier a extinguir-se e se for substituído pela afeição que criares a teu marido, não te fará desventurosa; mas supõe que não morre esse amor, qual será a tua situação?
- Tudo isso é um castelo no ar - disse Helena sorrindo -; eu amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido.
Estácio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no rosto plácido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão silenciosa. Os dela, firmes e tranquilos cruzavam o olhar com os dele. Estácio conhecia já o domínio que a moça exercia sobre si mesma; a tranquilidade não o convenceu. Assim pensava, assim o disse, sem rebuço.
- Por que razão negaria eu a verdade? - retorquiu Helena.
Estácio ergueu os ombros.
- Supondo que você tenha razão - tornou ela -, não deverei casar nunca?
- Não digo isso; mas há dous caminhos para a felicidade, além de Mendonça.
- Não os vejo.
- Esse amor misterioso será realmente sem esperança? Nada há definitivo no mundo, nem o infortúnio nem a prosperidade. O que a tua imaginação supõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou oculto...
- Adivinho o segundo caminho - atalhou Helena -; não casando agora, posso vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como ele.
- Parece-te absurdo isso?
- Não, mas é uma loteria: perco um bem certo por outro duvidoso. O jogador não faz cálculo diferente. Essa felicidade pode não vir; eu contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me deveras; senti-o desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino que os dous me oferecem. Esta é a razão e a realidade; o mais é ilusão e fantasia.
Enquanto ela falava, Estácio, que tirara o chapéu de chile, ocupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa carreira de formigas, conduzindo as mais delas trechos de folhas verdes. Com um galho seco, Estácio distraía-se em perturbar a marcha silenciosa e laboriosa dos pobres animais. Fugiam todas, umas para o lado da terra, outras para o lado da água, enquanto as restantes apressavam a jornada na direção do domicílio. Helena arrancou-lhe o galho da mão; Estácio pareceu acordar de largas reflexões; ergueu-se, deu alguns passos e voltou a ela.
- Helena - declarou ele -, não creio nada do que você me diz; você sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever opor-me a semelhante cousa...
Helena ergueu-se também.
- Mendonça começa a ser o fruto proibido - observou ela, sorrindo -, é o meio seguro de o fazer amado.
A moça afastou-se na direção da casa. Estácio viu-a desaparecer por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e comparou-as às próprias ideias, também necessitadas de que um galho invisível as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões, lembrou-lhe o padre; Estácio atravessou a chácara, saiu à rua e dirigiu-se à casa de Melchior.
Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, a algumas braças da residência de Estácio. Tinha duas salas o prédio, janelas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A da frente abria entre duas janelas de venezianas. A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobília, nenhuns adornos, uma estante de jacarandá, com livros grossos in quarto e in folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso e pouco mais.
Na ocasião em que Estácio ali entrou, Melchior passeava de um para outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, porque o padre amava contemplar os grandes espíritos do passado, quando não encarava os mistérios do futuro. Naquele corpo mediano havia uma águia cativa. Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, vivendo a vida retrospectiva ou profética, doce e misteriosa volúpia das almas solitárias. Melchior era um solitário; sem embargo das relações sociais, que ele cultivava, amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou estranho a todas as cousas do seu século.
Naquela ocasião lia. Vendo assomar à porta o vulto de Estácio, Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o afavelmente.
- Vim interrompê-lo - disse Estácio -; mas era preciso.
Melchior depôs o livro sobre a mesa redonda que havia no meio da sala, marcando a lauda com uma velha estampa. Depois sentaram-se ao pé de uma das janelas laterais. Estácio não se atreveu a dizer logo o motivo que o levara ali; mas de sua própria hesitação deduziu Melchior qual era ele.
- Era preciso? - repetiu o padre.
- Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo, confio em seu conselho e discrição. Como deseja a felicidade de minha família, buscou facilitar o casamento de Helena e Mendonça...
- Contando com a sua aprovação - explicou o padre.
- Hesito em dá-la.
- Por quê?
Estácio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe propunha, ao que Melchior respondeu, referindo singelamente a verdade.
- É certo que o não ama ardentemente - concluiu ele -, mas aceita-o, aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.
- Há uma dificuldade, padre-mestre; é que ela ama a outro.
Melchior empalideceu; o olhar escrutador, como o de um juiz, cravou-se imóvel e afiado no rosto de Estácio. A fronte severa do moço não se alterou, nem seus olhos baixaram à terra.
- Ama a outro - continuou ele -; paixão violenta, mas sem esperança, e tão real quão misteriosa. Uma ou duas vezes aludiu a ela; nada mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, desviou daí o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei, porém, que ama, e casar com outro em tais circunstâncias dá dous inconvenientes igualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o homem que interiormente elegeu, e leva para a casa do marido um sentimento de pesar e de remorso. Parece-lhe isso tolerável?
- Não há remorso, não há pesar onde não há esperança, redarguiu o padre. Helena aceita o Mendonça por espontânea vontade; e conheço-a tanto que não acho já possível que ela recuse.
- Salvo o meu consentimento.
- É claro; mas por que o não daria?
- Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou o coração. Talvez ela ache impossível aquilo que é simplesmente difícil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezessete anos.
- Valem por vinte e cinco.
- Pode ser; mas convém não aceitar de coração leve uma condescendência ou um capricho, ou qualquer outro motivo oculto que a inspira nesta resolução.
- Que motivo seria?
- Eu sei! Talvez a suspeita de que estimássemos vê-la afastar-se de casa.
- Não a calunie; Helena tem perfeita ciência e consciência dos afetos que a rodeiam e da estima em que é tida. Suas objeções não valem nada diante da declaração que ela própria fez. Não compliquemos uma situação simples e definida.
Melchior proferiu estas palavras com voz branda, mas em tom firme; Estácio não se animou a responder logo. Voltou, porém, ao primeiro argumento; depois, aventurou uma objeção nova.
- Mendonça é bom coração - disse ele -; mas não possui as qualidades que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca exercerá sobre ela a influência que deve ter um marido. Entre os dous inverte-se a pirâmide. Mas isto, ao menos, se destruía uma das condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O perigo maior é outro; é vir ele a perder a estima da mulher. Nesse caso, que lhe daríamos nós a ela? Um casamento aparente e um divórcio real.
Não olhava para ele o padre, mas para fora, com uns olhos dolorosos e o gesto impaciente. Quando ele acabou, fitou-o com resolução; disse que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, mas com o que ela própria escolhera de sua vontade livre; casamento que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de família, Estácio podia opor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem convinha isso ao interesse de Helena nem ao próprio interesse da família.
Estácio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e pensativo.
No fim de alguns segundos, o padre foi a ele.
- Vá contar tudo à sua tia - disse -; aprove sua irmã, casá-los-ei a todos no mesmo dia.
- Pois bem - disse Estácio, como concluindo um raciocínio interior -; consinto em que Helena se case, mas procuremos outro marido. Mendonça, não; há de ser outro. Vou casar-me também; receberei todas as semanas; algum rapaz aparecerá que a mereça e de quem ela venha a gostar seriamente... É a minha última resolução.