Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XIV
Camargo ia sentar-se à mesa quando lhe entregaram a carta de Estácio; leu-a para si, mas a filha leu-a nos olhos dele. Uma aura de bem-aventurança desrugou a fronte do médico; seus lábios - cousa pasmosa! - abriram-se num sorriso franco, sorriso que chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Tomásia lhe ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido à mulher, e os dous pais chamaram a filha à sala. Eugênia ouviu a notícia sem baixar os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o casamento.
- Sim? - perguntou Camargo, simulando espanto.
Eugênia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia não acreditar no espanto do pai. Este pegou nas mãos da filha e puxou-a para si.
- Assim, pois, meu anjo - disse ele -, casas-te por tua livre vontade? Estácio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho como o melhor modelo da terra.
- O mais consciencioso pelo menos - acudiu D. Tomásia, satisfeita e vaidosa do louvor do marido -. Há de ser boa esposa, modesta, solícita e econômica.
- Econômica, sem avareza - emendou Camargo -. A riqueza não deve ser dissipada, mas é certo que impõe obrigações imprescindíveis, e seria da maior inconveniência viver a gente abaixo de seus meios. Não farás isso nem cairás no extremo oposto; procura um meio-termo, que é a posição do bom senso. Nem dissipada, nem miserável.
Dona Tomásia concordou com esta explicação do marido, enquanto Eugênia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a mínima atenção. O pensamento estava em Andaraí; ela via já na imaginação a cerimônia do consórcio, as carruagens, o apuro do noivo, a sua própria graça, a coroa de flores de laranjeira, que a havia de adornar; enfim talhava já o vestido branco e pregava as rendas de Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do gênero humano. Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe imprimiu na testa o seu segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há de lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria provavelmente no dia em que ela casasse.
- Sabes que te amo, Eugênia? - disse Camargo olhando para ela.
- Papai!
Camargo não pôde dizer mais nada. O amor, um instante expansivo, volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estivera. A satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para saborear-se. Foi então que Eugênia passou às mãos de D. Tomásia. A mulher do Dr. Camargo via aquele casamento com olhos diferentes do marido. O que ela sobretudo via eram as vantagens morais da filha. Sentou-a ao pé de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes, que Eugênia interrompia de quando em quando, com exclamações de obediência filial:
- Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe há de ver!...
Dona Tomásia sentia-se feliz. O rosto, cuja expressão era vulgar, tinha naquela ocasião alguma cousa que o tornava sublime. Ela fez que a filha se lhe sentasse no regaço; e esta, sentindo que a molestava, deixou-se lentamente cair de joelhos, ficando entre os dela, a olhar para ela.
Camargo, entretanto, já não era daquele mundo. Passeava de um para outro lado, com as mãos para trás, a morder a ponta do bigode. De quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era só maquinalmente; o seu olhar baço indicava que ele ia mergulhado em profundas cogitações.
Naquele homem céptico, moderado e taciturno, havia uma paixão verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugênia: era a sua religião. Concentrara esforços e pensamentos em fazê-la feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessário fosse, a violência, a perfídia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira igual sentimento; não amou a mulher; casou porque o matrimônio é uma condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Vale; mas essa mesma amizade que o ligara ao pai de Estácio nunca recebera a contraprova do sacrifício; aliás apareceria em toda a sinceridade a natureza do médico. Ele só conhecia os afetos, por assim dizer, caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intempéries da vida. Nas relações morais dos homens possuía somente o troco miúdo da polidez; a moeda de ouro dos grandes afetos nunca lhe entrara nas arcas do coração. Um só existia ali: o amor de Eugênia.
Mas esse mesmo amor, aliás violento, escravo e cego, era uma maneira que o pai tinha de amar-se a si próprio. Entrava naquilo uma soma larga de fatuidade. Menos graciosa, Eugênia seria, talvez, menos amada. Ele contemplava-a com o mesmo orgulho com que o joalheiro admira o adereço que lhe saiu das mãos. Era a ternura do egoísta; amava-se na própria obra. Caprichosa, rebelde, superficial, Eugênia não teve a fortuna de ver emendados os defeitos; antes foi a educação que lhos deu. Dos lábios de Camargo nunca saiu a expressão corretiva; nenhum de seus atos revelou esse procedimento vigilante e diretor, que é a nobre atribuição da paternidade. Se a índole da filha fosse má, a cumplicidade do pai fá-la-ia péssima.
Não era, felizmente; o coração conhecia as doçuras da bondade; a rebeldia era um hábito, não um vício nativo. A própria frivolidade foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra as complacências do pai. Esta era a explicação também da fascinação que exercia nela o tumulto exterior da vida. Quase se pode dizer que ela não conhecera o vestido curto; a modista a desmamou; uma contradança foi a sua primeira comunhão.
Não era fácil dar a Eugênia a felicidade que o pai ambicionava e a que mais lhe apetecia a ela. Posto não fosse perdulário, eram poucos os haveres do médico, de modo que à filha não podia caber pecúlio suficiente a satisfazer todas as veleidades. Ele espreitou durante longo tempo um noivo, armando com algum dispêndio a gaiola em que o pássaro devia cair. No dia em que percebeu a inclinação de Estácio, fez quanto pôde para prendê-lo de vez. Esperou muitos meses a iniciativa de Estácio; e quando ela lhe entrou a fugir para a região das cousas problemáticas, suspeitou a influência de Helena. Já era muito que esta moça diminuísse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era demais. Camargo não hesitou um instante, foi direito ao fim. O resultado confirmou-lhe a suspeita.
O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidara na carreira política de Estácio, como um meio de dar certo relevo público ao da filha, e, por um efeito retroativo, a ele próprio, cuja vida fora tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugênia se confinasse no repouso doméstico, entre a horta e a álgebra, a ambição de Camargo padeceria imenso. Vimo-lo apresentar a Estácio a maçã política; recusada a princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente aceita com a noiva. Esta dupla vitória foi o momento máximo da vida do médico. Ele ouvia já o rumor público; sentia-se maior - antegostava as delícias da notoriedade -, via-se como que sogro do Estado e pai das instituições.
- Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de Daniel - suspirou Estácio na ocasião em que cedeu às instâncias de Camargo.
- Seu talento amansará os leões - acudiu este.
Assentou-se logo ali que o casamento seria celebrado na primeira semana de março. Os dous meses de intervalo foram destinados às formalidades eclesiásticas e ao preparo do enxoval. Estácio aceitou tudo sem objeção. Dona Úrsula e Helena aprovaram o plano. A primeira acrescentou uma cláusula: os noivos viriam morar com elas em Andaraí.
O padre Melchior, consultado sobre o casamento, deu-lhe inteira aprovação, e só lhe pareceu que o prazo era longo demais. A efusão com que abraçou Estácio, as palavras de aplauso que lhe disse impressionaram vivamente o mancebo.
- Desejava muito este casamento? - perguntou ele.
- Muito! Seu pai há de aprová-lo no céu!
Até os mortos conspiravam contra ele; Estácio aceitou resolutamente o destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna, transpôs os limites do costume, para se mostrar quase infantil; D. Úrsula não cabia em si de contente; Helena parecia colher naquele casamento a sua própria felicidade. Era a bem-aventurança universal que Estácio ia comprar a troco de um vínculo eterno.
Surgiu, entretanto, um obstáculo temporário. A madrinha de Eugênia, a fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugênia adoeceu gravemente, menos ainda da moléstia que a acometeu que dos anos que lhe pesavam nos ombros. Era senhora rica, viúva, flanqueada por duas sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma vintena de afilhados. Já daqui se pode inferir a estreiteza das esperanças de Camargo. Posto que ele não tivesse nunca preterido os deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando à fazendeira todas as provas possíveis de um grande afeto, ainda assim era de recear que a última vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estrita justiça, ou, quando menos, de razoável equidade. Nestas circunstâncias, a viagem a Cantagalo era urgentíssima, e cumpria realizá-la à custa dos maiores incômodos. Todo o incômodo é aprazível quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança desse desenlace igualmente afetuoso e pecuniário. Resolveu ir com a família toda, e avisou por carta ao futuro genro.
Estácio estimou o obstáculo, mas não contou com o que ele trazia no bojo. Chegando ao Rio Comprido achou aflitos o médico e D. Tomásia; Eugênia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniência de corresponder, em ocasião tão grave, à afeição da madrinha; debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último suspiro da venerável senhora, sua mãe espiritual. Eugênia recusava a pés juntos.
Assistiu o noivo à última fase da luta entre os pais e a filha. Esta trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra, declarando que só iria à força. Estácio procurou chamá-la à razão, apoiando as reflexões do pai, sem alcançar mais do que ele. Enfim, Eugênia pôs uma condição à sua aquiescência:
- Irei, se o Dr. Estácio for conosco.
Camargo aprovou a condição in petto; verbalmente, opôs-se ao sacrifício. Estácio enfiara; posto entre a espada e a parede, já a viagem de Eugênia lhe parecia supérflua.
- Acompanha-nos? - insistiu a moça.
- Não é possível - acudiu o médico - tamanho incômodo por um simples capricho...
- Pois então não vou!
Dona Tomásia ficou um tanto vexada com a teima de Eugênia. Estácio mordia o lábio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente. Venceu-o o decoro; considerando Eugênia sua mulher, quis cortar por uma cena que lhe parecia ridícula.
- Acompanhá-los-ei - disse ele, sem entusiasmo.
A solução era favorável a todos; os três aceitaram de boa feição. Marcou-se a viagem para dous dias depois. Dona Úrsula, apesar dos bons olhos com que via o casamento, achou desnecessária a ida do sobrinho, mas não empreendeu dissuadi-lo. Helena aprovou tudo. Ele fez sentir às duas parentas a extensão do sacrifício, e esteve a ponto de retirar a palavra. Era tarde. A última noite passada em Andaraí foi cruel para ele; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sair no dia seguinte, logo cedo, ali mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida de alguns dias que lhe custou como se fora de anos. Prometeu, entretanto, que o regresso seria breve.
O que ele não podia prometer era conjurar o drama que se lhes preparava, drama que ia enfim desenvolver-se, intenso, funesto e irremediável - do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz doméstica, nem as glórias da vida pública.
XV
Estácio levantou-se ao amanhecer. Uma vez pronto, quis surpreender a tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu numa folha de papel estas simples palavras: "Até à volta; seis horas da manhã." Dobrou-a e foi pô-la sobre a mesa de costura de D. Úrsula. Dali passou à sala de jantar, depois à varanda. Aqui chegando, deu com os olhos em Helena, que o esperava ao pé da escada.
- Silêncio! - disse graciosamente a moça -. Não faça espantos, que pode acordar titia. Vim saber se você precisa de alguma cousa.
- De nada - respondeu Estácio comovido -. Mas que imprudência foi essa de se levantar tão cedo?
- Cedo! O sol não tarda a cumprimentar-nos. Adeus! Muitas recomendações a Eugênia. Não lhe falta nada, não é assim?
- Nada.
Estácio recebeu a mão que Helena lhe estendera e ficou a olhar para ela.
- Olhe que é tarde!
Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua; Estácio reteve-a.
- Se soubesses como me custa ir!
- São apenas alguns dias...
- Valem por meses, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me; eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudências, não saias a passeio enquanto eu estiver ausente.
- Adeus!
- Adeus!
Estácio quis dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda com a palavra que com o gesto, fê-lo recuar.
- Não - disse ela afastando-se -; as despedidas mais longas são as mais difíceis de suportar.
Recuou até à porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e entrou. Estácio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sair; depois subiu cautelosamente ao seu aposento. Ali sentou-se alguns minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as roupas de montar; colocou o chapelinho preto sobre os cabelos penteados à ligeira, e desceu. Na chácara esperava-a Vicente, com a égua ajaezada e pronta. Helena montou sem demora; o pajem cavalgou uma das duas mulas que havia na cavalariça e os dous saíram a trote na direção da casa do alpendre e da bandeira azul.
A casa estava ainda silenciosa; porta e janelas conservavam-se hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as pancadas progressivamente mais fortes. Ninguém lhe respondeu. Helena impaciente rodeou a casa; mas parece que achou igualmente fechadas as portas do fundo, porque volveu logo. Colou o ouvido à porta e esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esforço, tirou da algibeira um lápis e um pedacinho de papel; colocou o pé no degrau de tijolo e sobre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos, caminhou para a égua, montou e regressou a casa.
Vinha triste e pensativa. A égua, a passo vagaroso, não sentia o esforço da cavaleira, que a deixava ir, frouxa a rédea, inútil o chicote. O pajem levava os olhos na moça com um ar de adoração visível; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a cumplicidade, fumava um grosso charuto havanês, tirado às caixas do senhor.
Dona Úrsula não estava ainda levantada; Helena não lhe ocultou o passeio. O dia correu triste e solitário, como os seguintes, sem embargo da companhia que iam fazer às duas senhoras as pessoas mais íntimas. Mendonça, a quem Estácio as recomendara, era ali pontual; conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O padre Melchior prolongava visitas quotidianas. O mesmo sentimento ligava a todas as pessoas.
O mesmo era, e não único, porque outro e mais egoísta e pessoal veio ali viçar também. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a primeira. O relógio em que ele viu bater essa hora fatídica foram os olhos de Helena. Mendonça começava a amar. Estouvado, e não corrupto, atravessara o delírio dos primeiros anos sem perder a flor dos castos afetos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não animou o mancebo nem o repeliu; redobrou de confiança - dessa confiança que só se dá aos simples familiares, e que mostra claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de estranhos, a situação afigurava-se de perfeita concórdia. O coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Matos; o Dr. Matos proferiu um - latet anguis in herba - e ambos foram repartir o pão das conjecturas com a esposa do advogado, senhora muito perspicaz nos namoros de salão. A opinião dos três é que o casamento era cousa provável, e talvez certa. Um só obstáculo podia haver; eram os escrúpulos do pai de Mendonça. Esse mesmo obstáculo não existia, porquanto, além das qualidades estimáveis da moça, havia o reconhecimento legal e social, público e doméstico; acrescendo (observação do Dr. Matos) que duzentas e tantas apólices mereciam um cumprimento de chapéu e não davam lugar a cinco minutos de reflexão.
As primeiras cartas de Estácio chegaram uma tarde em que as duas senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as últimas gotas de café. Dona Úrsula, depois de pôr em atividade três mucamas para lhe irem procurar os óculos, levantou-se e foi ela própria à cata deles, com a sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era dirigida; estava sentada junto a uma das janelas, abriu-a e leu-a para si:
Quando esta carta te chegar às mãos, estarei morto, morto de saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os meus livros, os meus hábitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como agora que estou longe do que há mais caro neste mundo. Poucos dias lá vão, e já me parecem meses. Que seria se a separação não fosse tão limitada?
Na carta que escrevo a titia dou conta da nossa viagem e da saúde de todos. Dona Clara está, na verdade, à beira da morte; mas pode durar ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os últimos adeuses. A recepção que nos fez a família foi cordialíssima. Há aqui uma cunhada da enferma, um primo, três sobrinhos, outros parentes e vários afilhados. O primo é comendador e tenente-coronel; ele e os outros são a gente mais afável do mundo. Os homens da família são influências eleitorais; quando souberam da minha candidatura, ofereceram-me logo os seus serviços, com a cláusula única de que haja prévia recomendação do Rio de Janeiro. Agradeci o favor, com muita abundância d'alma, porque a tal candidatura, que não me seduzia nem seduz, não há remédio senão cuidar dela, de modo que o meu nome não padeça a injúria da derrota. Que te parece esta pontazinha de vaidade?
Mudemos de assunto, que este me aflige, e não quero filosofar sem ti, que és a minha companheira nestas vadiações de espírito. Aí não te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De manhã, dou o meu passeio equestre, como lá; mas que diferença! Quem vai a meu lado é o tenente-coronel, excelente homem, coração de pomba, com o defeito único e enorme de se não chamar D. Helena do Vale, a minha boa Helena, que lá está na Corte, a divertir-se sem seu irmão. Ele fala de tudo e muito: do café, do governo, das eleições, dos escravos, dos impostos. Eu ouço, que é o menos que posso fazer, e deixo-o ir sem interrupção. Às vezes, como que desconfiado, recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e ele encarrega-se de desenrolar o novelo. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez; confesso-te que é o que me pode distrair um pouco. Pensava ter perdido o costume; mas não perdi. A modéstia impede-me dizer mais.
A fazenda é vasta e a casa excelente. Não te direi que gosto da vida agrícola; não gosto, não me dou com ela. Mas viver num recanto como este, a dous passos do mato, a tantas léguas da rua do Ouvidor, isso creio que se dá com a minha índole. Consultaremos titia. Eu não sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que também para déspota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem consultar tuas preferências. Sou um Cromwell com tendências de frade; ou, por dizer tudo numa só palavra: sou um Lutero... muito inferior.
Pobre Helena! Já lá vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos o que tens feito. Andas muito triste? Passeias? Lês? Jogas? Tocas? Conta-me a tua vida o mais miudamente que puderes. Conta-me a vida de todos. Não me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a minha gravidade, e responderei que há uma puerilidade séria, e que os extremos se tocam. Quando assim não seja, a culpa é do céu, que me não deu uma irmã criança; agora é preciso que comecemos pela primeira fase da vida.
Deixei muito recomendado ao Mendonça que fosse à nossa casa com frequência. Não sei se ele se terá lembrado e cumprido a promessa que me fez. Se não tiver cumprido, hás de mandar-lhe dizer que eu o detesto e abomino; que ele é o maior traidor que o céu cobre; que tudo fica acabado entre mim e ele; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te parecer e pelo modo que te é usual.
Lembro-me de ti a propósito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o terreiro oferecia um aspecto bonito e característico. "Se ela estivesse aqui", disse comigo, "faria um magnífico desenho". Peguei de um lápis que trouxe, meia folha de papel, e quis reproduzir o panorama. Escrevi um problema algébrico! Foi um conselho que me deu o lápis: ninguém se meta a fazer aquilo que ignora. Eu ignorava o que era estar ausente da família; por que motivo me determinei a tentá-lo? Interrompi esta carta para receber o Dr. Fróis, que é o médico de D. Clara; veio ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é perdido, que a morte é certa; mas que a vida pode prolongar-se ainda por muitos dias. Vê que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses últimos dias da enferma pesam sobre mim como se fora o punho fechado do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciência do que se perde nem do que se vai ganhar? Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mês. Será o que Deus quiser. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só achei um Manual de medicina prática. Manda-me alguma cousa que me faça lembrar o Andaraí. Tira da estante oito ou dez volumes, à tua escolha. Manda também algum trabalho de agulha teu; quero mostrá-lo à cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes desenhar alguma cousa, à pressa, o tanque, a varanda ou qualquer outro lugar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar minhas saudades, que são imensas, imensas como este amor que tenho à minha família toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena; adeus, minha vida, adeus, ó mais bela e doce de todas as irmãs!
P.S. Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.