Romance

Helena

1876

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.

No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.

O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.

A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.

A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").

Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

dezembro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

XIII

Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de que estava a cair de sono, mas realmente para dar à natureza o tributo de suas lágrimas. O desespero comprimido tumultuava no coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta, soltou um grito e lançou-se de golpe à cama, a chorar e a soluçar.

A beleza dolorida é dos mais patéticos espetáculos que a natureza e a fortuna podem oferecer à contemplação do homem. Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortúnio se houvessem desencadeado sobre ela. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, entrecortava o pranto com exclamações soltas, enrolava no pescoço os cabelos deslaçados pela violência da aflição, buscando na morte o mais pronto dos remédios. Colérica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido; e o jovem seio, livre de sua casta prisão, pôde à larga desafogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vagidos de sua dor.

Calar somente, não adormecê-la, porque ela aí lhe ficou, companheira daquela noite cruel, para velarem ambas. Quando os olhos cansaram, e foram mais intervalados os soluços, Helena jazeu imóvel no leito, com o rosto sobre o travesseiro, fugindo com a vista à realidade exterior. Uma hora esteve assim, muda, prostrada, quase morta, uma hora longa, longa, longa, como só as tem o relógio da aflição e da esperança.

Quando a tormenta pareceu extinta, a moça sentou-se na cama e olhou vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se trôpega ao quarto de vestir; ali parou diante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo mesma. Uma das janelas estava aberta; Helena foi ali aspirar um pouco do ar da noite. Esta era clara, tranquila e quente. As estrelas tinham uma cintilação viva que as fazia parecer alegres. Helena enfiou um olhar por entre elas como procurando o caminho da felicidade. Esteve à janela cerca de meia hora; depois entrou, sentou-se e escreveu uma carta.

A carta era longa, escrita a golfadas, sem nexo nem ordem; continha muitas queixas e imprecações, ternura expansiva de mistura com um desespero profundo; falava daqueles que, tendo nascido sob a influência de má estrela, só têm felicidades intermitentes e mutáveis; dizia que para ela a própria felicidade era um gérmen de morte e dissolução - ideia que repetia três vezes, como se tal observação fosse o transunto de suas experiências certas. A carta falava também de um homem, cujo egoísmo de pai não conhecia limites, e que a todo o transe queria que a filha desposasse uma grande riqueza e uma grande posição - "homem", dizia ela, "que me viu a princípio com olhos avessos, pela diminuição que eu trazia à herança". No fim dizia que havia naquelas linhas muito de obscuro e incompleto, que oportunamente contaria tudo, mas que desde já podia dar a triste notícia de que lhe era forçoso abster-se de sair.

Helena releu o escrito e meditou longo tempo sobre ele; acrescentou ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os à vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta, mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera à primeira, e só então recorreu ao remédio melhor de uma alma ulcerada e pia: rezou. A prece é a escada misteriosa de Jacó: por ela sobem os pensamentos ao céu; por ela descem as divinas consolações.

Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas às mãos da madrugada. O sono fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso repousar. Assim mesmo vestida, atirou-se sobre o leito. Não dormiu, não se pode dizer que dormisse; ficou ali num estado que não era vigília nem sono, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os olhos, pareceu acordar de um sonho; a imaginação recompôs as fases todas do acontecimento da véspera. Depois suspirou, e ficou longo tempo a olhar para o chão, com a fixidez trágica e solene da morte.

- Era justo! - murmurava de quando em quando.

Levantou-se enfim; levantou-se abatida e cansada. Viu-se ao espelho; a descor da face e a linha roxa que lhe circulava as pálpebras dificilmente podiam deixar de impressionar a família. Helena disfarçou como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais verossímil: o cansaço da véspera e a insônia de toda uma noite. A explicação não achou obstáculo no ânimo da tia e do irmão. Somente o padre Melchior, presente a ela, fitou na moça um olhar dubitativo, que a obrigou a baixar os cílios.

Se Helena padecia, o lugar de Estácio não era ao pé dela? Assim pensou o sobrinho de D. Úrsula, que em todo esse dia resolveu não sair de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distraí-la, pediu-lhe que fosse repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena obedeceu às instruções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete, onde se ocupou em examinar e colecionar alguns papéis. Era o dia marcado para solicitar de Eugênia o consentimento matrimonial, e ele não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava ele, ora relendo as páginas de sua predileção, ora mandando saber se dormia sossegada, ora contemplando o desenho com que ela o presenteara na véspera. Sentia-se tão feliz naquela aurora do ano!

Pouco antes do jantar, ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou que a irmã aparecesse à porta. Vinha como fora; mas a Estácio pareceu que efetivamente o descanso e o sono lhe haviam restaurado as forças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto. Helena parou e Estácio foi ter com ela, travou-lhe da mão, fê-la entrar.

- Estás melhor? - perguntou.

- Estou boa.

- Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Essas festas prolongam-se, e fatigam, sobretudo as pessoas franzinas...

Helena ergueu os ombros.

- Anda sentar-te um pouco.

- Primeiro há de responder-me a uma cousa.

- Que é?

- Que dia é hoje? - perguntou ela.

- Ano-bom.

- Lembra-se do que me prometeu?

- Perfeitamente. Vês estes papéis? - disse ele mostrando sobre a secretária uma porção de papéis classificados e postos por ordem -. Ocupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas contas, que o procurador há de trazer amanhã. Depois, irei...

Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação.

- Não - disse ela -; não há de ir depois, há de ir hoje mesmo. Que têm as contas com a autorização que deve pedir a Eugênia? Vá logo de noite. Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de excelente agouro. Dará um ano feliz.

- Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias - respondeu Estácio, depois de um silêncio -; mas não tenho dúvida em fazê-lo já. Uma vez preenchida a formalidade...

- Pedi-la-á imediatamente ao pai.

- Não!

- Por quê?

- Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos. Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se eternamente. Quero sondar o meu próprio espírito, e...

- Mas tudo isso é uma extravagância! - interrompeu Helena sentando-se na borda da rede em que Estácio costumava ler -. Pretenderá você recuar depois de lhe falar, a ela?

- Oh! Não! Mas, uma vez que caminho para solução tão grave, não há inconveniente em ir pé ante pé. Admiras-te? - perguntou ele, vendo que a irmã fazia um gesto de impaciência.

- Zango-me.

- Mas...

- Você é insuportável. Falta ao que prometeu.

- Já disse que hei de cumprir.

- Não recuará?

- Não.

- Irá pedi-la hoje mesmo?

- A ela.

- A ela e ao pai.

- Ao pai escreverei uma carta.

- Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento será...

- Quando convier ao Dr. Camargo.

- Antes do fim do mês.

- Tão cedo!

- Dou-lhe mês e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vê-los casados, tanto por você como por ela, coitada! Que o ama tanto...

- Crês? - perguntou vivamente Estácio.

- Se creio! Posso afirmá-lo. Não será amor como você quisera que fosse, mas é o amor que ela lhe pode dar, e é muito... Está dito! Palavra?

Estácio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou.

- Vou confiar todo o meu destino à cabeça mais leve do universo - disse Estácio, com os olhos fitos no chão -. Não é de seu coração que me queixo; mas de seu espírito, que nunca deixou as roupas da infância. Demais, à medida que me aproximo da hora solene, sinto que me repugna o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! Tão cheios os meus dias...

Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estácio refletiu longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava moralmente obrigado a pedir Eugênia, desde que seus corações se tinham aberto um para o outro, celebrando um contrato, que ele só não podia romper. A consciência rebelou-se contra as irresoluções do coração, e a decisão foi curta.

Naquela mesma noite, ouviu Eugênia a esperada palavra. A alegria que se lhe derramou nos olhos foi imensa e característica. Um pouco mais de recato não era descabido em tal ocasião. Não houve nenhum; o primeiro ato da mulher foi uma meninice. Eugênia ignorava tudo, até a dissimulação do sexo. Concedendo a mão a Estácio, não era uma castelã que entregava o prêmio, mas um cavaleiro que o recebia com alvoroço e submissão.

Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito à cidade eterna do matrimônio. Estácio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr. Camargo, pedindo-lhe a mão de Eugênia, carta seca e digna, como as circunstâncias a pediam. Antes de a remeter, mostrou-a a Helena, que recusou lê-la. Não a leu, nem lhe pegou. Ele teve-a alguns instantes na mão, sem se atrever a dá-la ao escravo que esperava por ela. Por fim, deitou-a sobre a secretária.

- Amanhã - disse ele sorrindo para Helena.

Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo.

- Leva à casa do Sr. Dr. Camargo - ordenou a moça -. Não tem resposta.

XIV

Camargo ia sentar-se à mesa quando lhe entregaram a carta de Estácio; leu-a para si, mas a filha leu-a nos olhos dele. Uma aura de bem-aventurança desrugou a fronte do médico; seus lábios - cousa pasmosa! - abriram-se num sorriso franco, sorriso que chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Tomásia lhe ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido à mulher, e os dous pais chamaram a filha à sala. Eugênia ouviu a notícia sem baixar os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o casamento.

- Sim? - perguntou Camargo, simulando espanto.

Eugênia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia não acreditar no espanto do pai. Este pegou nas mãos da filha e puxou-a para si.

- Assim, pois, meu anjo - disse ele -, casas-te por tua livre vontade? Estácio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho como o melhor modelo da terra.

- O mais consciencioso pelo menos - acudiu D. Tomásia, satisfeita e vaidosa do louvor do marido -. Há de ser boa esposa, modesta, solícita e econômica.

- Econômica, sem avareza - emendou Camargo -. A riqueza não deve ser dissipada, mas é certo que impõe obrigações imprescindíveis, e seria da maior inconveniência viver a gente abaixo de seus meios. Não farás isso nem cairás no extremo oposto; procura um meio-termo, que é a posição do bom senso. Nem dissipada, nem miserável.

Dona Tomásia concordou com esta explicação do marido, enquanto Eugênia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a mínima atenção. O pensamento estava em Andaraí; ela via já na imaginação a cerimônia do consórcio, as carruagens, o apuro do noivo, a sua própria graça, a coroa de flores de laranjeira, que a havia de adornar; enfim talhava já o vestido branco e pregava as rendas de Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do gênero humano. Daquele sonho foi despertada pelo pai, que lhe imprimiu na testa o seu segundo beijo. O primeiro, como o leitor se há de lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria provavelmente no dia em que ela casasse.

- Sabes que te amo, Eugênia? - disse Camargo olhando para ela.

- Papai!

Camargo não pôde dizer mais nada. O amor, um instante expansivo, volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estivera. A satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para saborear-se. Foi então que Eugênia passou às mãos de D. Tomásia. A mulher do Dr. Camargo via aquele casamento com olhos diferentes do marido. O que ela sobretudo via eram as vantagens morais da filha. Sentou-a ao pé de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes, que Eugênia interrompia de quando em quando, com exclamações de obediência filial:

- Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe há de ver!...

Dona Tomásia sentia-se feliz. O rosto, cuja expressão era vulgar, tinha naquela ocasião alguma cousa que o tornava sublime. Ela fez que a filha se lhe sentasse no regaço; e esta, sentindo que a molestava, deixou-se lentamente cair de joelhos, ficando entre os dela, a olhar para ela.

Camargo, entretanto, já não era daquele mundo. Passeava de um para outro lado, com as mãos para trás, a morder a ponta do bigode. De quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era só maquinalmente; o seu olhar baço indicava que ele ia mergulhado em profundas cogitações.

Naquele homem céptico, moderado e taciturno, havia uma paixão verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugênia: era a sua religião. Concentrara esforços e pensamentos em fazê-la feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessário fosse, a violência, a perfídia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira igual sentimento; não amou a mulher; casou porque o matrimônio é uma condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Vale; mas essa mesma amizade que o ligara ao pai de Estácio nunca recebera a contraprova do sacrifício; aliás apareceria em toda a sinceridade a natureza do médico. Ele só conhecia os afetos, por assim dizer, caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intempéries da vida. Nas relações morais dos homens possuía somente o troco miúdo da polidez; a moeda de ouro dos grandes afetos nunca lhe entrara nas arcas do coração. Um só existia ali: o amor de Eugênia.

Mas esse mesmo amor, aliás violento, escravo e cego, era uma maneira que o pai tinha de amar-se a si próprio. Entrava naquilo uma soma larga de fatuidade. Menos graciosa, Eugênia seria, talvez, menos amada. Ele contemplava-a com o mesmo orgulho com que o joalheiro admira o adereço que lhe saiu das mãos. Era a ternura do egoísta; amava-se na própria obra. Caprichosa, rebelde, superficial, Eugênia não teve a fortuna de ver emendados os defeitos; antes foi a educação que lhos deu. Dos lábios de Camargo nunca saiu a expressão corretiva; nenhum de seus atos revelou esse procedimento vigilante e diretor, que é a nobre atribuição da paternidade. Se a índole da filha fosse má, a cumplicidade do pai fá-la-ia péssima.

Não era, felizmente; o coração conhecia as doçuras da bondade; a rebeldia era um hábito, não um vício nativo. A própria frivolidade foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra as complacências do pai. Esta era a explicação também da fascinação que exercia nela o tumulto exterior da vida. Quase se pode dizer que ela não conhecera o vestido curto; a modista a desmamou; uma contradança foi a sua primeira comunhão.

Não era fácil dar a Eugênia a felicidade que o pai ambicionava e a que mais lhe apetecia a ela. Posto não fosse perdulário, eram poucos os haveres do médico, de modo que à filha não podia caber pecúlio suficiente a satisfazer todas as veleidades. Ele espreitou durante longo tempo um noivo, armando com algum dispêndio a gaiola em que o pássaro devia cair. No dia em que percebeu a inclinação de Estácio, fez quanto pôde para prendê-lo de vez. Esperou muitos meses a iniciativa de Estácio; e quando ela lhe entrou a fugir para a região das cousas problemáticas, suspeitou a influência de Helena. Já era muito que esta moça diminuísse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era demais. Camargo não hesitou um instante, foi direito ao fim. O resultado confirmou-lhe a suspeita.

O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidara na carreira política de Estácio, como um meio de dar certo relevo público ao da filha, e, por um efeito retroativo, a ele próprio, cuja vida fora tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugênia se confinasse no repouso doméstico, entre a horta e a álgebra, a ambição de Camargo padeceria imenso. Vimo-lo apresentar a Estácio a maçã política; recusada a princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente aceita com a noiva. Esta dupla vitória foi o momento máximo da vida do médico. Ele ouvia já o rumor público; sentia-se maior - antegostava as delícias da notoriedade -, via-se como que sogro do Estado e pai das instituições.

- Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de Daniel - suspirou Estácio na ocasião em que cedeu às instâncias de Camargo.

- Seu talento amansará os leões - acudiu este.

Assentou-se logo ali que o casamento seria celebrado na primeira semana de março. Os dous meses de intervalo foram destinados às formalidades eclesiásticas e ao preparo do enxoval. Estácio aceitou tudo sem objeção. Dona Úrsula e Helena aprovaram o plano. A primeira acrescentou uma cláusula: os noivos viriam morar com elas em Andaraí.

O padre Melchior, consultado sobre o casamento, deu-lhe inteira aprovação, e só lhe pareceu que o prazo era longo demais. A efusão com que abraçou Estácio, as palavras de aplauso que lhe disse impressionaram vivamente o mancebo.

- Desejava muito este casamento? - perguntou ele.

- Muito! Seu pai há de aprová-lo no céu!

Até os mortos conspiravam contra ele; Estácio aceitou resolutamente o destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna, transpôs os limites do costume, para se mostrar quase infantil; D. Úrsula não cabia em si de contente; Helena parecia colher naquele casamento a sua própria felicidade. Era a bem-aventurança universal que Estácio ia comprar a troco de um vínculo eterno.

Surgiu, entretanto, um obstáculo temporário. A madrinha de Eugênia, a fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugênia adoeceu gravemente, menos ainda da moléstia que a acometeu que dos anos que lhe pesavam nos ombros. Era senhora rica, viúva, flanqueada por duas sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma vintena de afilhados. Já daqui se pode inferir a estreiteza das esperanças de Camargo. Posto que ele não tivesse nunca preterido os deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando à fazendeira todas as provas possíveis de um grande afeto, ainda assim era de recear que a última vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estrita justiça, ou, quando menos, de razoável equidade. Nestas circunstâncias, a viagem a Cantagalo era urgentíssima, e cumpria realizá-la à custa dos maiores incômodos. Todo o incômodo é aprazível quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança desse desenlace igualmente afetuoso e pecuniário. Resolveu ir com a família toda, e avisou por carta ao futuro genro.

Estácio estimou o obstáculo, mas não contou com o que ele trazia no bojo. Chegando ao Rio Comprido achou aflitos o médico e D. Tomásia; Eugênia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniência de corresponder, em ocasião tão grave, à afeição da madrinha; debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último suspiro da venerável senhora, sua mãe espiritual. Eugênia recusava a pés juntos.

Assistiu o noivo à última fase da luta entre os pais e a filha. Esta trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra, declarando que só iria à força. Estácio procurou chamá-la à razão, apoiando as reflexões do pai, sem alcançar mais do que ele. Enfim, Eugênia pôs uma condição à sua aquiescência:

- Irei, se o Dr. Estácio for conosco.

Camargo aprovou a condição in petto; verbalmente, opôs-se ao sacrifício. Estácio enfiara; posto entre a espada e a parede, já a viagem de Eugênia lhe parecia supérflua.

- Acompanha-nos? - insistiu a moça.

- Não é possível - acudiu o médico - tamanho incômodo por um simples capricho...

- Pois então não vou!

Dona Tomásia ficou um tanto vexada com a teima de Eugênia. Estácio mordia o lábio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente. Venceu-o o decoro; considerando Eugênia sua mulher, quis cortar por uma cena que lhe parecia ridícula.

- Acompanhá-los-ei - disse ele, sem entusiasmo.

A solução era favorável a todos; os três aceitaram de boa feição. Marcou-se a viagem para dous dias depois. Dona Úrsula, apesar dos bons olhos com que via o casamento, achou desnecessária a ida do sobrinho, mas não empreendeu dissuadi-lo. Helena aprovou tudo. Ele fez sentir às duas parentas a extensão do sacrifício, e esteve a ponto de retirar a palavra. Era tarde. A última noite passada em Andaraí foi cruel para ele; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sair no dia seguinte, logo cedo, ali mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida de alguns dias que lhe custou como se fora de anos. Prometeu, entretanto, que o regresso seria breve.

O que ele não podia prometer era conjurar o drama que se lhes preparava, drama que ia enfim desenvolver-se, intenso, funesto e irremediável - do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz doméstica, nem as glórias da vida pública.

A+
A-