Romance

Helena

1876

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.

No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.

O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.

A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.

A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").

Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

dezembro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

IX

Naquela mesma noite, D. Úrsula, que não havia de todo melhorado, adoeceu deveras. A família, mal convalescida da perda do velho chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso, exposta a novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu princípio a rigoroso tratamento.

Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez patenteou-se em todo o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Úrsula, atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os remédios e o pouco alimento que esta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a resistência que a natureza confiou especialmente às mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era ele ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, colocado provisoriamente no quarto contíguo, para ir espreitar a mucama que, em seu lugar, acompanhava a enferma. As prescrições do médico, era ela que as recebia e cumpria. A voz seca e dura com que Camargo lhe falava não era própria a torná-lo amável e aceito; mas Helena cerrava os ouvidos à antipatia do homem para só obedecer ao médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos fenômenos da doença, nem podia achar quem melhor os observasse e referisse; força lhe era aceitá-la. Assim, essas duas pessoas, que se repeliam e detestavam, iam de acordo, desde que se tratava da vida de um terceiro.

O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A ordem das cousas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de D. Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a dispersar.

De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos, colhidos à pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio atento e laborioso.

A doença durou cerca de vinte dias. Afinal, venceu a própria natureza de D. Úrsula, robusta apesar dos anos. A convalescença começou; com ela volveu a satisfação da família. O papel de Helena não estava acabado; diminuía, contudo, e Estácio interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ela recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.

Havia no coração de D. Úrsula uma fonte de ternura, que Helena devia tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicação, em tal crise, foi a vara misteriosa daquela Horeb. A afeição da tia era até então frouxa, voluntária e deliberada. Depois da moléstia, avultou espontânea. A experiência do caráter da moça dera esse resultado inevitável. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou fortemente o que tantas circunstâncias anteriores pareciam separar. Não o ocultou a irmã do conselheiro; já não tinha acanhamento nem reserva, as palavras subiam do coração à boca sem atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.

No dia em que ela pôde sair do quarto pela primeira vez, Helena deu-lhe o braço e levou-a até à sala de costura e das reuniões íntimas. Estácio amparou-a do outro lado. Ali chegando, foi ela sentada numa poltrona. Estácio abriu um pouco a janela, para penetrar, além da luz, um pouco de ar. Dona Úrsula respirou à larga, como lavando o pulmão com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estácio aproximara-se; aquela manifestação encheu-o de júbilo.

- Bem merecido beijo! - exclamou ele -. Helena foi um anjo em todo este tempo.

- Bem sei - retorquiu D. Úrsula -; foi um verdadeiro anjo, foi mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Pode ser que a medicina tenha ajudado a cura, mas o principal mérito é só teu.

Helena abraçou a convalescente.

- Estácio - disse esta -, agradece à tua irmã, como eu fiz.

Estácio inclinou-se para Helena, a fim de lhe pousar na fronte o casto ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena, desviando o busto, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e disse:

- Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um aperto de mão e o afeto de todos.

Estácio apertou-lhe a mão, e sentiu-lha trêmula. Aquele movimento de castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais bela. Uma criatura tão ciosa de si mesma, que nem admitia a carícia do irmão, não era digna de honrar o nome da família?

A convalescença de D. Úrsula foi lenta, e não a houve mais rodeada de cuidados e atenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante sozinha, e inventaram toda a sorte de recreio com que pudessem distraí-la: jogos de família ou leitura, música ou simples palestra íntima. Uma vez, lembraram-se de representar, só para ela, uma comédia de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que tomaram parte Eugênia Camargo e mais três moças da vizinhança. Foi a primeira vez que a ouviram cantar. O sucesso não podia ser mais completo. Como o aplauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triunfo, fazendo-a executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estácio, que quase não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e disse-lho. Helena esquivou-se à alusão; mas, insistindo ele:

- Não há nada que admirar - disse ela -; Eugênia toca perfeitamente; era justo que também fosse aplaudida. Se há arte no que fiz, parece-me que é a mais singela do mundo. O melhor modo de viver em paz é nutrir o amor-próprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugênia nem precisa disso; tem a primazia da beleza. Veja se há criatura mais deliciosa.

Estácio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de duas moças e dous rapazes. Eugênia, pelo braço de um deles, estava de pé, ouvindo sem atender as palavras que ali diziam, porque os olhos inquietos derramavam-se-lhe por toda ela e pela sala. Admirava-se e espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; mas Estácio quisera-a mais inconsciente, menos preocupada do efeito que produzia.

- Há cem belezas como aquela - disse ele.

- Estácio! - exclamou Helena com ar de repreensão.

- A beleza é como a bravura; vale mais se não a metem à cara dos outros.

- Você é um ingrato!

Naquela noite ficou mais patente que nunca a preponderância ganha por Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a diretora ouvida e obedecida. Dona Úrsula cedera, em poucas semanas, o que lhe negara durante meses.

Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguira ela apressar o casamento de Estácio? Estácio continuava a hesitar, a recuar, a adiar; pedia tempo para refletir. Ia agora menos ao Rio Comprido, os dias, quase todos, eram desfiados no remanso da família. Mas Helena insistiu tanto que ele prometeu fazer o solene pedido no primeiro dia do ano.

Estácio não havia esquecido a carta lida pela irmã; entretanto, por mais que a espreitasse e estudasse, nada descobria que lhe fizesse supor afeição encoberta. Nenhum dos homens que iam ali - e eram poucos - parecia receber de Helena mais do que a cortesia comum. Dona Úrsula, a quem ele incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras que esta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve resposta mais decisiva.

A promessa de ir pedir Eugênia, fê-la Estácio na segunda semana de dezembro, em uma noite sem visitas, que eram as melhores noites para ele. No dia seguinte de manhã, erguendo-se tarde, soube que Helena saíra a cavalo.

- Sozinha?

- Com o Vicente.

Vicente era o escravo que, como sabemos, se afeiçoara, primeiro que todos, a Helena; Estácio designara-o para servi-la. A notícia do passeio não lhe agradou. O tempo andava com o passo do costume, mas à ansiedade do mancebo afigurava-se mais longo. Estácio chegava à janela, ia até ao portão da chácara, com ar de aparente indiferença, que a todos iludia, a começar por ele próprio. Numa das vezes em que voltou à casa, achou levantada D. Úrsula; falou-lhe; D. Úrsula sorriu com tranquilidade.

- Que tem isso? - disse ela -. Já uma vez saiu a passeio com o Vicente e não aconteceu nada.

- Mas não é bonito - insistiu Estácio -. Não está livre de um ato de desatenção.

- Qual! Toda a vizinhança a conhece. Demais, Vicente já não é tão criança. Tranquiliza-te, que ela não tarda. Que horas são?

- Oito!

- Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que já ouço um tropel...

Os dous estavam na sala de jantar; passaram à varanda, e viram efetivamente entrar no terreiro Helena e o pajem. Helena deu um salto e entregou a rédea de Moema ao pajem que acabava de apear-se. Depois subiu a escada da varanda. Ao colocar o pé no primeiro degrau, deu com os olhos no irmão e na tia. Fez-lhes um cumprimento com a mão, e subiu a ter com eles.

- Já de pé! - exclamou abraçando D. Úrsula.

- Já, para lhe ralhar - disse esta sorrindo -. Que ideia foi essa de bater a linda plumagem? É a segunda vez que você se lembra de sair sem o urso do seu irmão.

- Não quis incomodar o urso - replicou ela voltando-se para Estácio -. Tinha imensa vontade de dar um passeio, e Moema também. Apenas hora e meia.

Aquele dia foi o de maior tristeza para a moça. Estácio passou quase todo o tempo no gabinete; nas poucas ocasiões em que se encontraram, ele só falou por monossílabos, às vezes por gestos. De tarde, acabado o jantar, Estácio desceu à chácara. Já não era só o passeio de Helena que o mortificava; ao passeio juntava-se a carta. Teria razão a tia em suas primeiras repugnâncias? Como ele fizesse essa pergunta a si mesmo, ouviu atrás de si um passo apressado e o farfalhar de um vestido.

- Está mal comigo? - perguntou Helena com doçura.

Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a cólera do mancebo. Voltou-se; Helena estava diante dele, com os olhos submissos e puros. Estácio refletiu um instante.

- Mal? - disse ele.

- Parece que sim. Não me fala, não se importa comigo, anda carrancudo... Seria por eu sair de manhã?

- Confesso que não gostei muito.

- Pois não sairei mais.

- Não; pode sair. Mas está certa de que não corre nenhum perigo indo só com o pajem?

- Estou.

- E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?

- Não sei se poderei obedecer. Nem sempre você poderá acompanhar-me; além disso, indo com o pajem, é como se fosse só; e meu espírito gosta, às vezes, de trotar livremente na solidão.

- Naturalmente a pensar de cousas amorosas... - acrescentou Estácio cravando os olhos interrogadores na irmã.

Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estácio sentou-se; Helena ficou de pé diante dele. Olharam um para outro sem proferir palavra; mas o lábio de Estácio tremera duas ou três vezes como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.

- Helena - disse ele -, você ama.

A moça estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, como assustada, e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:

- Muito! Muito! Muito!

Estácio empalideceu. A moça recuou um passo, e, trêmula, pôs o dedo na boca, como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava no rosto; Helena voltou as costas ao irmão e afastou-se rapidamente. Ao mesmo tempo, a sineta do portão era agitada com força, e uma voz atroava a chácara:

- Licença para o amigo que vem do outro mundo!

X

Estácio dirigiu-se ao portão. Abriu-o; um moço que ali estava entrou precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquela efusão, e não lhe foi difícil adivinhar quem era o recém-chegado.

A efusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa. Helena, que estava um pouco adiante deles, foi apresentada a Mendonça. Ao ouvir que era irmã de Estácio, Mendonça ficou espantado. Cortejou cerimoniosamente a moça, e os dous seguiram até à casa, onde pouco depois entrou Helena.

Mendonça era da mesma estatura que Estácio, um pouco mais cheio, ombros largos, fisionomia risonha e franca, natureza móbil e expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era, arrancado de fresco ao grand boulevard, ao Café Tortoni e às récitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva, cor de palha, e sobre o cabelo, penteado a capricho, pousava um chapéu de fábrica recente.

Estácio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer compreender o respeito e a afeição que ela de todos merecia. Helena adivinhou esse trabalho preparatório do irmão, logo que entrou na sala.

Mendonça divertiu a família uma parte da noite, contando os melhores episódios da viagem. Era narrador agradável, fluente e pinturesco, dotado de grande memória e certa força de observação. Espírito galhofeiro, achava facilmente o lado cômico das cousas e mais se comprazia em dizer os acidentes de um jantar de hotel ou de uma noite de teatro que em descrever as belezas da Suíça ou os destroços de Roma.

A visita durou pouco mais de hora. Estácio quis acompanhá-lo até à cidade; ele não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a chácara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos, como o lugar e a ocasião lhes permitiam. Mendonça, vendo que Estácio não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou.

- Falaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugênia...

- A filha do Camargo.

- Justo. Negócio roto?

- Quase terminado.

- Terminado... na igreja, suponho?

- Tal qual.

- Quando?

- Brevemente.

- Marido, enfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa conjugal, como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão.

- Talvez ambos.

- Creio que sim. Tudo depende do gosto de cada um. O casamento é a pior ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se é um anjo...

- É um anjo.

- Como todas as noivas. Feliz Estácio! Segues a carreira de tua vocação, enquanto que eu...

- Tu?

- Interrompo a minha, e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não sou capitalista, nem meu pai tampouco. Adeus, viagens!

- Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não serás o primeiro que a erre, sem que daí venha mal ao mundo.

- Pois arranja lá isso... Em todo caso não será tua irmã.

- Oh! Não - disse vivamente Estácio.

- Na verdade, é bonita; mas... se permites a franqueza de outrora, acho-lhe uma costela de desdém...

- Que ideia! É a mais afável criatura do mundo. Verás mais tarde; hoje estava, talvez, preocupada. Em todo o caso, não havias de querer que ela saltasse a dançar contigo na sala, de mais a mais sem música.

Mendonça acabava de acender um charuto; apertou a mão de Estácio e saiu. Estácio acordou de um sonho. A realidade pôs-lhe as mãos de chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena. Ansioso por saber o resto, entrou ele imediatamente em casa. A diligência foi estéril, porque a irmã se recolhera ao quarto. Estácio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o afligia, porque, dizia ele consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte de Helena, como irmão e chefe de família, indagar de seus sentimentos, e ordenar o que fosse melhor. Uma noite não era muito; contudo, a preocupação retardou-lhe o sono. A confissão súbita, lacônica e eloquente da irmã ficara-lhe no espírito, como se fora o eco perpétuo de uma voz extinta.

Nem no dia seguinte, nem nos subsequentes alcançou o que esperava. Helena, ou evitava ficar a sós com ele, ou esquivava-se a maior explicação. Nos passeios matinais, que eram frequentes, procurou Estácio, mais de uma vez, tratar do assunto que o preocupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; depois dava de rédea à conversação e galopava na direção oposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço lograva trazê-la ao ponto de partida.

Um dia, a insistência de Estácio teve tal caráter de autoridade, que pareceu constranger e molestar Helena. Ela replicou com um remoque; ele redarguiu com uma advertência áspera. Iam ambos a pé, levando os animais pela rédea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estácio possuía estas duas cousas, a retratação do erro e a generosidade do perdão. Viu que cedera a um mau impulso, e confessou-o; mas, confessou-o com palavras tais que Helena travou-lhe da mão e lhe disse:

- Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-ia disparar por este caminho fora até ao fim do mundo ou até ao fim da vida.

- Helena!

- Oh! Não é vão melindre, é a própria necessidade da minha posição. Você pode encará-la com olhos benignos; mas a verdade é que só as asas do favor me protegem... Pois bem, seja sempre generoso, como foi agora; não procure violar o sacrário de minha alma. Não insista em pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em má hora...

- Mal pensadas? Pode ser; mas por isso é que são verdadeiras; se você tivesse tempo de as meditar, guardá-las-ia consigo, avara de seus segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudá-la a ser venturosa, destruir...

- É tarde! - interrompeu a moça, consultando o reloginho preso à cintura -. Vamos?

Estácio sorriu melancolicamente; ofereceu-lhe o joelho, ela pousou nele o pezinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos alegre do que costumava ser. Eles falavam, mas a palavra vinha aos lábios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma cólera, mas nenhuma animação. Assim correu aquele dia; assim correriam outros, se não fora a vara mágica de Helena. O natural influxo era tão forte que o irmão voltou desde logo às boas, sendo as melhores horas as que passava ao pé dela, a escutá-la e a vê-la, ambos contentes e felizes. O episódio da confissão vinha às vezes, como hóspede importuno, projetar entre eles o nebuloso perfil; mas o espírito de Estácio repelia-o, e a alegria da irmã fazia o resto.

Entretanto, graças ao amigo recém-chegado, o filho do conselheiro saiu um pouco de suas regras habituais, e começou a provar alguma cousa mais da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu esvaído ideal parisiense; havia nele o movimento, a agitação, a galhofa, que absolutamente faltavam a Estácio, e vieram dar-lhe à vida a variedade que ela não tinha. Alguns espetáculos e passeios, uma ou outra ceia alegre, tal foi o programa de uma parte ínfima da existência de Estácio. Para contrastar com ela, tinha ele as manhãs do Andaraí e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e à sua consciência, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade.

A influência de Mendonça estendeu-se à própria casa de Estácio. Mendonça gostava sobretudo da variedade no viver, não tolerava os mesmos prazeres nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha necessidade de os alternar frequentemente. Se fosse possível, era capaz de fazer-se monge durante um mês, antes do Carnaval, trocar o hábito por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os prelúdios da contradança. A fidelidade à moda custava-lhe um pouco, quando esta não ia a passo com a impaciência. Em sua opinião, o que distinguia o homem do cão era a faculdade de fazer que uma noite se não parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe oferecia a mesma variedade de recursos que Paris; tendo o gênio inventivo e fértil, não lhe faltaria meio de fugir à uniformidade dos hábitos.

O pior que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios. Filho de um comerciante, apenas remediado, não teria ele podido realizar a viagem à Europa, nas proporções largas em que o fez, a não ser a intervenção benéfica de uma parenta velha, que se incumbira de lhe ministrar os recursos de que ele carecesse durante aquela longa ausência. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem o pai queria criar-lhe hábitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um emprego público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que o emprego o não deslocasse da Corte.

Inquieto, amigo da vida ruidosa e fácil, inteligente sem largos horizontes, possuindo apenas a instrução precisa para desempenhar-se regularmente de qualquer comissão de certa ordem, Mendonça, com todos os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradável e aceito. Os defeitos eram antes do espírito que do coração. A variedade que ele pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas afeições, que eram geralmente inalteráveis e fiéis. Era capaz de sacrifício e dedicação; sobretudo se lhe não pedissem o sacrifício deliberado ou a dedicação refletida, mas aquele que exige uma circunstância imprevista e súbita.

Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da sociedade de que era centro a família de Estácio, quando ele ali fazia alguma aparição. Era o sal daquela terra. Não tinha a rijeza do figurino, nem o ar do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não lhe dissimulara a índole expansiva e franca. Acolhido como um filho, achava ali uma porção de casa. Que melhor aspecto podia ter a vida em tais condições, naquela família ligada por um sentimento de amor?

A noite do último dia do ano veio turvar a limpidez das águas.

XI

Naquele dia fazia anos Estácio, e D. Úrsula assentara receber algumas pessoas a jantar, e outras mais à noite, em reunião íntima. Ela e Helena tomavam a peito fazer que a pequena festa de família fosse digna do objeto. Estácio opinou pela supressão do sarau; mas era difícil alcançar a desistência de corações que o amavam.

Logo de manhã, como ele se levantasse cedo, encontrou Helena, que o convidou a segui-la à sala de costura.

- Quero dar-lhe o meu presente de anos - disse ela.

Ali entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andaraí, a mesma por onde eles costumavam passear, mas com algumas particularidades do primeiro dia. Dous cavaleiros, ele e ela, iam subindo a passo lento; ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho, uma data: 25 de julho de 1850.

Estácio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das linhas, a exação das circunstâncias locais, as impressões de uma hora fugitiva que o lápis da irmã tivera a arte de fixar no papel.

- Não podia fazer-me presente melhor - disse ele -; dá-me uma parte de si mesma, um fruto de seu espírito. E que fruto! Não há muita moça que desenhe assim. Era talvez por isso que você saía algumas vezes sozinha com o pajem?

Estácio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos lábios. O beijo acertou de cair na cabeça da cavaleira. Foi o original que corou.

- Andavam a gabar os meus talentos - disse Helena após um instante -; tive a vaidade de dar uma pequena amostra...

- Excelente amostra! Não acha, titia? - disse o moço a D. Úrsula, que nesse instante aparecera à porta, trazendo o seu presente, numa bocetinha de joalheiro.

Dona Úrsula não tinha, decerto, o instinto da arte; mas o amor da família lhe ensinara uma estética do coração, e essa bastou a fazê-la admirar o trabalho de Helena.

- Mas que digo eu todos os dias? - exclamou D. Úrsula -. Esta pequena sabe tudo!

- Quase tudo - emendou Helena -; ignoro, por exemplo, como lhes hei de agradecer...

- O quê, tontinha? - interrompeu a tia -. Algum disparate, naturalmente, impróprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.

Enquanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, Estácio mandou selar o cavalo e saiu. Queria comparar ainda uma vez o desenho de Helena com o sítio copiado. A fidelidade era completa, e o quadro seria absolutamente o mesmo, se se dessem algumas circunstâncias da primeira ocasião. Helena não ia ao lado dele; mas a vinte braças de distância flutuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estácio afrouxou o passo do cavalo, como saboreando as recordações da primeira manhã, quando Helena se lhe mostrara tão singularmente comovida. Volveu a refletir na situação dela, e na paixão que lhe confessara, dias antes, com tamanha veemência. Se se tratava de uma felicidade possível, embora difícil, Estácio prometeu a si mesmo alcançar-lha. Não era isso servir o sangue do seu sangue?

A casa do alpendre, até ali indiferente a Estácio, criava agora para ele um interesse especial. À medida que se aproximava, ia achando no edifício a fiel reprodução do desenho. Este não apresentava todas as particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições exteriores, como se fora feito diante do original.

A uma das janelas estava um homem, com a cabeça inclinada, atento a ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa atitude não era fácil examiná-lo; afigurava-se, entretanto, uma criatura máscula e bela. A duas braças de distância, o indivíduo levantou a cabeça, e cravou em Estácio um par de olhos grandes e serenos; imediatamente os retirou, baixando-os ao livro.

"Mal sabes tu, filósofo matinal", disse Estácio consigo, "mal sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bela mão do mundo!"

O filósofo continuou a ler, e o cavalo continuou a andar. Quando Estácio regressou daí a alguns minutos, achou somente a casa; o morador desaparecera; circunstância indiferente, que escapou de todo à atenção do moço. Nem ele pensava mais naquilo; o espírito trotava largo, à inglesa, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como ansiosos de chegar ao ponto de partida.

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