Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
VIII
Dona Úrsula tinha já confiado ao velho capelão a proposta de Camargo. Consultado por Estácio, respondeu o padre:
- Consulte as suas forças e a responsabilidade do cargo, e escolha.
- Já escolhi - disse Estácio -; pedia-lhe conselho para apoiar melhor a minha própria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? Decidi que não aceito a candidatura. A vida política é turbulenta demais para o meu espírito. Estou pronto para a ação, mas não há de ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar à Câmara, além de algumas prerrogativas e um papel acessório? Eu só me meteria na política se pudesse oficiar; mas ser apenas sacristão...
- Entre o oficiante e o sacristão - observou Melchior - está o pregador, que é cargo nobre e influente.
- Mas o tema do sermão, padre-mestre? - retorquiu Estácio rindo -; falta-me o tema.
Dona Úrsula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público em favor do sobrinho, viu naquelas razões um pretexto ou uma puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o sobrinho para que refletisse maduramente, antes de qualquer resposta definitiva. Estácio prometeu como prometera ao médico, por simples condescendência; mas sobretudo para pôr termo ao assunto e ir saber a causa do sorriso quase imperceptível que viu roçar os lábios de Helena. A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janelas; Estácio foi até ali.
- Adivinhei, pelo seu sorriso - disse ele -, que tudo isto lhe parece pueril, e que eu faço bem em não aceitar o que se me oferece.
Helena olhou um pouco espantada para ele, mas respondeu com tranquilidade:
- Pelo contrário, penso que deve aceitar. Além de haver consentimento de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugênia.
Era a primeira vez que Helena aludia ao amor de Estácio, e fazia-o por modo encoberto e oblíquo. Estácio escapou dessa vez à regra de todos os corações amantes: resvalou pela alusão e discutiu gravemente o assunto da candidatura. Era pesado demais para cabeça feminina; Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam no ar, e Estácio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.
Durante dous dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página, colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliófilo. Helena ajudava-o nesse trabalho - um pouco parecido com o de Penélope -, porque a ordem estabelecida ao meio-dia era às vezes alterada às duas horas, e restaurada na seguinte manhã. Estácio, entretanto, não ficava todo entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado com que ela o auxiliava. Helena parecia não andar; o vulto resvalava silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo às indicações do irmão, ou pondo em experiência uma ideia sua. Estácio parava às vezes fatigado; ela continuava imperturbavelmente o serviço. Se ele lhe fazia algum reparo, a moça respondia erguendo os ombros ou sorrindo, e prosseguia. Então Estácio segurava-lhe nos pulsos e exclamava rindo:
- Sossega, borboleta!
Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na intimidade mais doce, e que a recíproca afeição ia excluindo toda a preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as proporções de voto preponderante.
No terceiro dia, D. Tomásia e Eugênia foram jantar a Andaraí. Eugênia estava nesse dia mais sisuda e dócil que nunca; dissera-se que trazia a alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que ele. Estácio sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Puderam falar sozinhos, mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas para lhes deixar a solidão. Foi ela quem recordou a proposta política do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este fizera a D. Tomásia. O desejo de Eugênia era pela afirmativa; e Estácio, receoso de despertar os caprichos adormecidos da moça, frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em reconsiderar o assunto.
- Deputado! - exclamava Eugênia com os olhos no céu.
Estácio acompanhou Eugênia e D. Tomásia na carruagem que as levou ao Rio Comprido. O dia fora mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e palreira como um regresso de romaria. Os cavalos mostravam-se tão lépidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o caminho, com desgosto de Eugênia.
Voltando a Andaraí, Estácio trazia a alma pura de todas as más impressões que lhe deixavam usualmente as visitas à casa de Camargo. Nenhum dissentimento houvera naquele dia. Eugênia parecia modificada. Em casa esperava-o, porém, uma desagradável notícia: a tia sentira-se incomodada pouco depois que ele saíra e recolhera-se ao quarto. O caso afligiu-o, mas não tardou a aparecer Helena, que o tranquilizou, dizendo-lhe que D. Úrsula tinha apenas uma forte dor de cabeça, já diminuída com o emprego de um remédio caseiro.
No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia sossegadamente, Estácio abriu uma das janelas do quarto e relanceou os olhos pela chácara. A alguns passos de distância, entre duas laranjeiras, viu Helena a ler atentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas quatro laudas escritas. Seria alguma mensagem amorosa?
Esta ideia molestou-o muito. Afastou-se da janela, conchegou as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página. Ali chegando, deu dous passos, tornou a parar, volveu ao princípio da carta, para a ler de novo, não já depressa, mas repousadamente. Estácio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, à qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciúme. A ideia de que Helena podia repartir o coração com outra pessoa desconsolava-o, ao mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a explicou ele, nem tentou investigá-la; sentiu-lhe somente os efeitos, e ficou ali sem saber que faria. Duas vezes saiu da janela para ir ter com a irmã, mas recuou de ambas, refletindo que a curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez tirania. Ao cabo de alguns minutos de hesitação, saiu do quarto e dirigiu-se à chácara.
Quando ali chegou, Helena passeava lentamente, com os olhos no chão. Estácio parou diante dela.
- Já fora de casa! - exclamou em tom de gracejo.
Helena tinha a carta na mão esquerda; instintivamente a amarrotou como para escondê-la melhor. Estácio, a quem não escapou o gesto, perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa.
- Nota verdadeira - disse ela, alisando tranquilamente o papel, e dobrando-o conforme recebera -; é uma carta.
- Segredos de moça?
- Quer lê-la? - perguntou Helena, apresentando-lha.
Estácio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A inocência não teria mais puro rosto; a hipocrisia não encontraria mais impassível máscara. Estácio contemplava-a, a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta fazia-lhe cócegas; o olhar ambicionava ser como o da Providência, que penetra nos mais íntimos refolhos do coração. Vieram, entretanto, dizer a Helena que D. Úrsula lhe pedia fosse ter com ela. Estácio ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquérito mental sobre a procedência da misteriosa missiva. Um indício havia de que podia conter alguma cousa secreta; era o gesto com que ela a escondeu. Mas não podia ser de alguma antiga companheira do colégio, que lhe confiava segredos seus? Estácio abraçou com alvoroço esta hipótese. Depois, ocorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de algum idílio de colégio, em que Helena fosse protagonista, idílio vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, que tinha ele com isso?
Fazendo esta última reflexão, Estácio sacudiu do espírito o assunto e seguiu a examinar as novas obras da chácara, entre as quais figurava um vasto tanque. Já ali estavam os operários; ia começar o trabalho do dia. Estácio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação, Estácio retificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que aliás dous dias antes mandara remover; enfim, recomendou a rega de uma planta, ainda úmida da água que o feitor lhe deitara nessa manhã.
Dona Úrsula não estava de todo boa, mas pôde almoçar à mesa comum. O sobrinho apareceu aborrecido, a sobrinha, triste; o diálogo foi mastigado como o almoço. No fim deste, recebeu Estácio uma carta de Eugênia. Era uma tagarelice meio frívola, meio sentimental, mistura de risos e suspiros, sem objeto definido a não ser pedir-lhe que escrevesse se não pudesse ir vê-la.
Acabava ele de ler a carta, quando Helena lhe apareceu à porta do gabinete. Não a escondeu; lembrou-lhe mostrá-la à irmã, na esperança de que esta, pagando-lhe com igual confiança, lhe mostrasse a sua. Helena percorreu com os olhos a carta de Eugênia e esteve algum tempo silenciosa.
- Permite-me um conselho? - perguntou ela.
E como Estácio respondesse com um gesto de assentimento:
- Vá ter com Eugênia, solicite licença para ir pedi-la a seu pai, e conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? Dela creio poder afirmar que sim; de você...
- De mim?
- Penso que é mais duvidoso; ou você é mais hábil. Há de ser isso. Naturalmente parece-lhe fraqueza amar - isto é, a cousa mais natural do mundo, a mais bela não direi a mais sublime. Os homens sérios têm preconceitos extravagantes. Confesse que ama, que não é indiferente a esse sentimento inexprimível que liga, ou para sempre, ou por algum tempo, duas criaturas humanas.
"Ou por algum tempo!", repetiu mentalmente Estácio.
E estas quatro palavras, tão naturais e tão comuns, tinham ares de uma revelação nova no estado de espírito em que ele se achava. Se Helena tivesse propósito de lhe lançar a perplexidade na alma, não empregaria mais eficaz conceito. Seria na verdade aquele amor, tão travado de desânimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu próprio coração, uma afeição destinada a perecer no ocaso da primeira lua matrimonial?
- Pois sim - concordou ele, ao cabo de alguns instantes -, é verdade. Eugênia não me é indiferente; mas, poderei estar certo dos sentimentos dela? Ela mesma poderá afirmar alguma cousa a tal respeito? Há ali muita frivolidade que me assusta; ilude-a, talvez, uma impressão passageira.
- Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto de partida. O marido fará a mulher. Convenho que Eugênia não tem todas as qualidades que você desejaria; mas, não se pode exigir tudo: alguma cousa é preciso sacrificar, e do sacrifício recíproco é que nasce a felicidade doméstica.
As reflexões eram exatas; por isso mesmo Estácio as interrompeu. O filho do conselheiro achava-se numa posição difícil. Caminhara para o casamento com os olhos fechados; ao abri-los, viu-se à beira de uma cousa que lhe pareceu abismo, e era simplesmente um fosso estreito. De um pulo poderia transpô-lo; mas, se não era irresoluto nem débil, tinha ele acaso vontade de dar esse salto?
Insistindo Helena, prometeu ele que nessa tarde iria visitar Camargo. De tarde desabou um temporal violento. A força do vento e da trovoada abrandou; mas a chuva continuou a cair com a mesma violência; era impossível ir ao Rio Comprido. Estácio estimou aquele obstáculo; era melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colher algum desgosto junto a ela.
De pé, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via cair as grossas toalhas de água. Ao lado estava sentada Helena, não alegre, mas taciturna e melancólica.
- É tão bom ver chover quando estamos abrigados! - exclamou ele. Tenho lá na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que tem você?
- Estou pensando nos que não têm abrigo ou o têm mau; nos que não têm, neste momento, nem tetos sólidos nem corações amigos ao pé de si.
A voz da moça era trêmula; uma lágrima lhe brotou dos olhos tão rápida que ela não teve tempo de a dissimular. Surpreendida nessa manifestação de sensibilidade, inexplicável talvez para o irmão, ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalização da lágrima, e o gracejo tinha ares de responso. Estácio não se iludiu; nada daquilo era claro, ou era tão claro como a carta. O olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera tempo de se tranquilizar, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar com os dedos na vidraça.
IX
Naquela mesma noite, D. Úrsula, que não havia de todo melhorado, adoeceu deveras. A família, mal convalescida da perda do velho chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso, exposta a novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu princípio a rigoroso tratamento.
Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez patenteou-se em todo o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Úrsula, atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os remédios e o pouco alimento que esta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a resistência que a natureza confiou especialmente às mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era ele ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, colocado provisoriamente no quarto contíguo, para ir espreitar a mucama que, em seu lugar, acompanhava a enferma. As prescrições do médico, era ela que as recebia e cumpria. A voz seca e dura com que Camargo lhe falava não era própria a torná-lo amável e aceito; mas Helena cerrava os ouvidos à antipatia do homem para só obedecer ao médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos fenômenos da doença, nem podia achar quem melhor os observasse e referisse; força lhe era aceitá-la. Assim, essas duas pessoas, que se repeliam e detestavam, iam de acordo, desde que se tratava da vida de um terceiro.
O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A ordem das cousas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de D. Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a dispersar.
De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos, colhidos à pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio atento e laborioso.
A doença durou cerca de vinte dias. Afinal, venceu a própria natureza de D. Úrsula, robusta apesar dos anos. A convalescença começou; com ela volveu a satisfação da família. O papel de Helena não estava acabado; diminuía, contudo, e Estácio interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ela recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.
Havia no coração de D. Úrsula uma fonte de ternura, que Helena devia tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicação, em tal crise, foi a vara misteriosa daquela Horeb. A afeição da tia era até então frouxa, voluntária e deliberada. Depois da moléstia, avultou espontânea. A experiência do caráter da moça dera esse resultado inevitável. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou fortemente o que tantas circunstâncias anteriores pareciam separar. Não o ocultou a irmã do conselheiro; já não tinha acanhamento nem reserva, as palavras subiam do coração à boca sem atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.
No dia em que ela pôde sair do quarto pela primeira vez, Helena deu-lhe o braço e levou-a até à sala de costura e das reuniões íntimas. Estácio amparou-a do outro lado. Ali chegando, foi ela sentada numa poltrona. Estácio abriu um pouco a janela, para penetrar, além da luz, um pouco de ar. Dona Úrsula respirou à larga, como lavando o pulmão com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estácio aproximara-se; aquela manifestação encheu-o de júbilo.
- Bem merecido beijo! - exclamou ele -. Helena foi um anjo em todo este tempo.
- Bem sei - retorquiu D. Úrsula -; foi um verdadeiro anjo, foi mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Pode ser que a medicina tenha ajudado a cura, mas o principal mérito é só teu.
Helena abraçou a convalescente.
- Estácio - disse esta -, agradece à tua irmã, como eu fiz.
Estácio inclinou-se para Helena, a fim de lhe pousar na fronte o casto ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena, desviando o busto, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e disse:
- Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um aperto de mão e o afeto de todos.
Estácio apertou-lhe a mão, e sentiu-lha trêmula. Aquele movimento de castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais bela. Uma criatura tão ciosa de si mesma, que nem admitia a carícia do irmão, não era digna de honrar o nome da família?
A convalescença de D. Úrsula foi lenta, e não a houve mais rodeada de cuidados e atenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante sozinha, e inventaram toda a sorte de recreio com que pudessem distraí-la: jogos de família ou leitura, música ou simples palestra íntima. Uma vez, lembraram-se de representar, só para ela, uma comédia de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que tomaram parte Eugênia Camargo e mais três moças da vizinhança. Foi a primeira vez que a ouviram cantar. O sucesso não podia ser mais completo. Como o aplauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triunfo, fazendo-a executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estácio, que quase não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e disse-lho. Helena esquivou-se à alusão; mas, insistindo ele:
- Não há nada que admirar - disse ela -; Eugênia toca perfeitamente; era justo que também fosse aplaudida. Se há arte no que fiz, parece-me que é a mais singela do mundo. O melhor modo de viver em paz é nutrir o amor-próprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugênia nem precisa disso; tem a primazia da beleza. Veja se há criatura mais deliciosa.
Estácio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de duas moças e dous rapazes. Eugênia, pelo braço de um deles, estava de pé, ouvindo sem atender as palavras que ali diziam, porque os olhos inquietos derramavam-se-lhe por toda ela e pela sala. Admirava-se e espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; mas Estácio quisera-a mais inconsciente, menos preocupada do efeito que produzia.
- Há cem belezas como aquela - disse ele.
- Estácio! - exclamou Helena com ar de repreensão.
- A beleza é como a bravura; vale mais se não a metem à cara dos outros.
- Você é um ingrato!
Naquela noite ficou mais patente que nunca a preponderância ganha por Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a diretora ouvida e obedecida. Dona Úrsula cedera, em poucas semanas, o que lhe negara durante meses.
Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguira ela apressar o casamento de Estácio? Estácio continuava a hesitar, a recuar, a adiar; pedia tempo para refletir. Ia agora menos ao Rio Comprido, os dias, quase todos, eram desfiados no remanso da família. Mas Helena insistiu tanto que ele prometeu fazer o solene pedido no primeiro dia do ano.
Estácio não havia esquecido a carta lida pela irmã; entretanto, por mais que a espreitasse e estudasse, nada descobria que lhe fizesse supor afeição encoberta. Nenhum dos homens que iam ali - e eram poucos - parecia receber de Helena mais do que a cortesia comum. Dona Úrsula, a quem ele incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras que esta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve resposta mais decisiva.
A promessa de ir pedir Eugênia, fê-la Estácio na segunda semana de dezembro, em uma noite sem visitas, que eram as melhores noites para ele. No dia seguinte de manhã, erguendo-se tarde, soube que Helena saíra a cavalo.
- Sozinha?
- Com o Vicente.
Vicente era o escravo que, como sabemos, se afeiçoara, primeiro que todos, a Helena; Estácio designara-o para servi-la. A notícia do passeio não lhe agradou. O tempo andava com o passo do costume, mas à ansiedade do mancebo afigurava-se mais longo. Estácio chegava à janela, ia até ao portão da chácara, com ar de aparente indiferença, que a todos iludia, a começar por ele próprio. Numa das vezes em que voltou à casa, achou levantada D. Úrsula; falou-lhe; D. Úrsula sorriu com tranquilidade.
- Que tem isso? - disse ela -. Já uma vez saiu a passeio com o Vicente e não aconteceu nada.
- Mas não é bonito - insistiu Estácio -. Não está livre de um ato de desatenção.
- Qual! Toda a vizinhança a conhece. Demais, Vicente já não é tão criança. Tranquiliza-te, que ela não tarda. Que horas são?
- Oito!
- Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que já ouço um tropel...
Os dous estavam na sala de jantar; passaram à varanda, e viram efetivamente entrar no terreiro Helena e o pajem. Helena deu um salto e entregou a rédea de Moema ao pajem que acabava de apear-se. Depois subiu a escada da varanda. Ao colocar o pé no primeiro degrau, deu com os olhos no irmão e na tia. Fez-lhes um cumprimento com a mão, e subiu a ter com eles.
- Já de pé! - exclamou abraçando D. Úrsula.
- Já, para lhe ralhar - disse esta sorrindo -. Que ideia foi essa de bater a linda plumagem? É a segunda vez que você se lembra de sair sem o urso do seu irmão.
- Não quis incomodar o urso - replicou ela voltando-se para Estácio -. Tinha imensa vontade de dar um passeio, e Moema também. Apenas hora e meia.
Aquele dia foi o de maior tristeza para a moça. Estácio passou quase todo o tempo no gabinete; nas poucas ocasiões em que se encontraram, ele só falou por monossílabos, às vezes por gestos. De tarde, acabado o jantar, Estácio desceu à chácara. Já não era só o passeio de Helena que o mortificava; ao passeio juntava-se a carta. Teria razão a tia em suas primeiras repugnâncias? Como ele fizesse essa pergunta a si mesmo, ouviu atrás de si um passo apressado e o farfalhar de um vestido.
- Está mal comigo? - perguntou Helena com doçura.
Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a cólera do mancebo. Voltou-se; Helena estava diante dele, com os olhos submissos e puros. Estácio refletiu um instante.
- Mal? - disse ele.
- Parece que sim. Não me fala, não se importa comigo, anda carrancudo... Seria por eu sair de manhã?
- Confesso que não gostei muito.
- Pois não sairei mais.
- Não; pode sair. Mas está certa de que não corre nenhum perigo indo só com o pajem?
- Estou.
- E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?
- Não sei se poderei obedecer. Nem sempre você poderá acompanhar-me; além disso, indo com o pajem, é como se fosse só; e meu espírito gosta, às vezes, de trotar livremente na solidão.
- Naturalmente a pensar de cousas amorosas... - acrescentou Estácio cravando os olhos interrogadores na irmã.
Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estácio sentou-se; Helena ficou de pé diante dele. Olharam um para outro sem proferir palavra; mas o lábio de Estácio tremera duas ou três vezes como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.
- Helena - disse ele -, você ama.
A moça estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, como assustada, e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:
- Muito! Muito! Muito!
Estácio empalideceu. A moça recuou um passo, e, trêmula, pôs o dedo na boca, como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava no rosto; Helena voltou as costas ao irmão e afastou-se rapidamente. Ao mesmo tempo, a sineta do portão era agitada com força, e uma voz atroava a chácara:
- Licença para o amigo que vem do outro mundo!