Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
VI
Chegando a casa, achou Estácio remédio ao mau humor. Era uma carta de Luís Mendonça, que dous anos antes partira para Europa, donde agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, anunciando-lhe que dentro de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor companheiro de aula. Havia entre eles certos contrastes de gênio. O de Mendonça era mais folgazão e ativo. Quando este partiu para Europa, quis que o antigo colega o acompanhasse, e o próprio conselheiro opinara nesse sentido. Estácio recusou pelo receio de que, sendo diferente o espírito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao sacrifício de hábitos e preferências de um deles.
A notícia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D. Úrsula. Dona Úrsula estava então na sala de costura, relendo algumas páginas do seu Saint-Clair, encostada a uma mesa. Do outro lado, ficava Helena, a concluir uma obra de crochet.
- Titia - disse ele -, dou-lhe uma novidade agradável para mim.
- Que é?
- O Mendonça chegou a Pernambuco, está aqui dentro de pouco tempo.
- O Mendonça?
- Luís Mendonça.
- O que foi para a Europa, sei. Há quanto tempo?
- Dous anos.
- Dous anos! Parece que foi ontem.
- Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que devo ir também à Europa, quanto antes. Querem ir?
- Eu? - disse D. Úrsula, marcando a página do livro com os óculos de prata que até então conservara sobre o nariz -. Não são folias para gente velha. Daqui para a cova.
- A cova! - exclamou Helena -. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me há de enterrar primeiro?
- Menina! - exclamou D. Úrsula em tom de repreensão.
Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de verdadeira simpatia que ouvia a D. Úrsula. Bem o compreendeu esta; e talvez a mortificou aquela espontaneidade do coração. Mas era tarde. Não podia recolher a palavra, não podia sequer explicá-la.
- Que tal virá o teu amigo? - perguntou ela ao sobrinho -. Era bom rapaz antes de ir; um pouco tonto, apenas.
- Há de vir o mesmo - respondeu Estácio -; ou ainda melhor. Melhor decerto, porque dous anos mais modificam o homem.
Estácio fez aqui um panegírico do amigo, intercalado com observações da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o chá. Dona Úrsula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o crochet na cestinha de costura.
- Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochet? - perguntou ela ao irmão, caminhando para a sala de jantar.
- Não?
- Não, senhor; fiz um furto.
- Um furto!
- Fui procurar um livro na sua estante.
- E que livro foi?
- Um romance.
- Oh! - exclamou Estácio -. Esse livro...
- Esquisito, não é? Quando percebi que o era, fechei-o e lá o pus outra vez.
- Não é livro para moças solteiras...
- Não creio mesmo que seja para moças casadas - replicou Helena rindo e sentando-se à mesa -. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo...
- Imagino! - interrompeu D. Úrsula.
- O desejo de aprender a montar a cavalo - concluiu Helena.
Estácio olhou espantado para a irmã. Aquela mistura de geometria e equitação não lhe pareceu suficientemente clara e explicável. Helena soltou uma risadinha alegre de menina que aplaude a sua própria travessura.
- Eu lhe explico - disse ela -; abri o livro, todo alastrado de riscos que não entendi. Ouvi porém um tropel de cavalos e cheguei à janela. Eram três cavaleiros, dous homens e uma senhora. Oh! Com que garbo montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco anos, alta, esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa cauda do vestido caída a um lado. O cavalo era fogoso; mas a mão e o chicotinho da cavaleira quebravam-lhe os ímpetos. Tive pena, confesso, de não saber montar a cavalo...
- Quer aprender comigo?
- Titia consente?
Dona Úrsula levantou os ombros com o ar mais indiferente que pôde achar no seu repertório. Helena não esperou mais.
- Escolha você o dia.
- Amanhã?
- Amanhã.
Estácio costumava dar um passeio a cavalo quase todas as manhãs. O do dia seguinte foi dispensado; começariam as lições de Helena. Antes disso, porém, escreveu Estácio à filha de Camargo uma carta recendente a ternura e afeto. Pedia-lhe desculpa do que se passara na véspera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lhe dissera mais de uma vez, com o mesmo estilo, se não com as mesmas palavras. A carta dissipou-lhe a última sombra de remorso. Antes que ela chegasse ao seu destino, reconciliara-se ele consigo mesmo. O portador saiu para o Rio Comprido, e ele desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pé do qual estava situada a cavalariça. Naquele lado da casa corria a varanda antiga, onde a família costumava às vezes tomar café ou conversar nas noites de luar, que ali penetrava pelas largas janelas. Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.
Já ali estava Helena. Dona Úrsula emprestara-lhe um vestido de amazona com que algumas vezes montara, antes da morte do irmão. O vestido ficava-lhe mal; era folgado demais para o talhe delgado da moça. Mas a elegância natural fazia esquecer o acessório das roupas.
- Pronta! - exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da escada.
- Oh! Isso não vai assim! - respondeu Estácio -. Não suponha que há de montar já hoje como a moça que ontem viu passar na estrada. Vença primeiramente o medo...
- Não sei o que é medo - interrompeu ela com ingenuidade.
- Sim? Não a supunha valente. Pois eu sei o que ele é.
- O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas do outro mundo. Até à idade de dez anos era incapaz de penetrar numa sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possível que uma pessoa morta voltasse à terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma cousa. Lavei o meu espírito de semelhante tolice, e hoje era capaz de entrar, de noite, num cemitério... E daí talvez não: os corpos que ali dormem têm direito de não ouvir mais um só rumor de vida.
Estácio chegara ao último degrau da escada. As derradeiras palavras ouviu-as ele com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial de pedra.
- Quem lhe ensinou essas ideias? - perguntou ele.
- Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem: trazem-se no coração. Senhor geômetra - continuou brandindo caprichosamente o chicote -, veja se transcreve em algum compêndio estas figuras de minha invenção, e ande cavalgar comigo.
Com um movimento rápido travou da cauda do vestido, e caminhou para diante. Estácio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dous sentimentos diferentes: a afeição que o prendia à irmã, e a estranha impressão que ela lhe fazia sentir. Quando chegou à porta da cavalariça, viu aparelhados dous animais, o cavalo de seus passeios da manhã, e a égua que a tia cavalgava uma ou outra vez.
- Que é isso? - disse ele -. Por ora vamos a algumas indicações somente, aqui no terreiro.
- Justamente! - respondeu a moça.
Um escravo, que ali estava, trouxe um tamborete. Estácio aproximou-se de Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da égua.
- Como se chama? - perguntou ela.
- Moema.
- Moema! Ora espere... é um nome indígena, não é?
Estácio fez um sinal afirmativo. Helena tinha um pé sobre o tamborete; repetiu ainda o nome da égua, como quem refletia sobre ele, sem que o irmão percebesse que não era aquilo mais do que um disfarce. De repente, quando ele menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no selim. A égua alteou o colo, como vaidosa do peso. Estácio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correção do movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquilo. Helena inclinou-se para ele.
- Fui bem? - perguntou sorrindo.
- Não podia ir melhor; mas o que me admira...
As patas de Moema interromperam a reflexão do moço. A cavaleira brandira o chicotinho, e o animal saíra a trote largo pelo terreiro fora. Estácio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como para tomar a rédea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou ver que ela não fazia ali os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde saíra.
- Que tal? - disse ela logo que estacou -. Terei jeito para a equitação?
- Criança!
- Que é isso? Já aprendeu? - interveio D. Úrsula, do alto da varanda, aonde acabava de chegar.
- Estava caçoando conosco - disse Estácio -. Vê como sabe montar?
- Ela sabe tudo - murmurou D. Úrsula entre dentes.
Estácio montou no cavalo. Consultou o relógio; eram sete horas e meia.
- Permite que o acompanhe? - perguntou Helena.
- Com uma condição - disse ele -; é que há de ter juízo. Não quero temeridades; a égua é aparentemente mansa, convém não brincar com ela. Já vejo que você é capaz de muitas cousas mais...
- Prometo ir pacificamente.
Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de rédea ao animal e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã, fresca. Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a égua, instigada por ela, adiantava-se alguns passos ao cavalo; Estácio repreendia a irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudência, gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ela conduzia o animal.
- Não me dirá você - perguntou ele - por que motivo, sabendo montar, pedia-me ontem lições?
- A razão é clara - disse ela -; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um cálculo.
- Um cálculo?
- Profundo, hediondo, diabólico - continuou a moça sorrindo -. Eu queria passear algumas vezes a cavalo; não era possível sair só, e nesse caso...
- Bastava pedir-me que a acompanhasse.
- Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir que não sabia montar. A ideia momentânea de sua superioridade neste assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida...
Estácio sorriu do cálculo; logo depois ficou sério, e perguntou em tom seco:
- Já lhe negamos algum prazer que desejasse?
Helena estremeceu e ficou igualmente séria.
- Não! - murmurou -; minha dívida não tem limites.
Esta palavra saiu-lhe do coração. As pálpebras caíram-lhe e um véu de tristeza lhe apagou o rosto. Estácio arrependeu-se do que dissera. Compreendeu a irmã; viu que, por mais inocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas à má parte, e, em tal caso, o menos que se lhe podia arguir era a descortesia. Estácio timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ela e rompeu o silêncio.
- Você ficou triste - disse Estácio -; mas eu desculpo-a.
- Desculpa-me? - perguntou a moça erguendo para o irmão os belos olhos úmidos.
- Desculpo a injúria que me fez, supondo-me grosseiro.
Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições do mundo. Helena deu livre curso à imaginação e ao pensamento; suas falas exprimiam ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da experiência prematura, e iam direitas à alma do irmão, que se comprazia em ver nela a mulher como ele queria que fosse, uma graça pensadora, uma sisudez amável. De quando em quando faziam parar os animais para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um acidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam falando das desvantagens da riqueza.
- Valem muito os bens da fortuna - dizia Estácio -; eles dão a maior felicidade da terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais de uma hora ou quase.
O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dous cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes.
- Tem razão - disse Helena -: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é fazer muita cousa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade.
Estácio soltou uma risada.
- Você devia ter nascido...
- Homem?
- Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas. Nem estou longe de crer que o próprio cativeiro lhe parecerá uma bem-aventurança, se eu disser que é o pior estado do homem.
- Sim? - retorquiu Helena sorrindo -; estou quase a fazer-lhe a vontade. Não faço; prefiro admirar a cabeça de Moema. Veja, veja como se vai faceirando. Esta não maldiz o cativeiro; pelo contrário, parece que lhe dá glória. Pudera! Se não a tivéssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é também impaciência.
- De quê?
- Impaciência de correr por essa estrada da Tijuca fora, e beber o vento da manhã, espreguiçando os músculos, e sentindo-se alguma cousa senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre égua? - continuou a moça inclinando a cabeça até às orelhas do animal -; vai aqui ao pé de nós um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu inimigo...
- Helena! - interrompeu Estácio -; você é muito capaz de disparar a correr.
- E se fosse?
- Eu deixava-a ir, e nunca a traria em meus passeios. Você monta bem; mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsáveis, não só por sua felicidade, mas também por sua vida.
Helena refletiu um instante.
- Quer dizer - perguntou ela - que se eu fosse vítima de um desastre, não faltaria quem o imputasse à minha família?
- Justo.
- Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me lembrasse - é uma suposição -, se eu me lembrasse de deixar a vida por aborrecimento ou capricho, seria você acusado de me haver propinado o veneno? Não há melhor modo de me fazer evitar a morte.
- Deixemos conversas lúgubres, e voltemos para casa - interrompeu Estácio.
- Já!
- Raras vezes passo daqui; e não pense você que é perto.
- Parece-me que ainda agora saímos de casa. Vamos uns cinco minutos adiante? Sim?
Estácio consultou o relógio.
- Cinco minutos justos - disse ele.
- Até àquela casa que ali está com uma bandeira azul.
Havia, efetivamente, cerca de quatro minutos adiante, à esquerda da estrada, uma casa de insignificante aparência, sobre cujo telhado flutuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estácio conhecia a casa, mas era a primeira vez que via a bandeira.
Helena pediu-lhe a explicação daquele apêndice.
- Vá lá saber - disse o irmão rindo.
Helena deu de rédea à égua e adiantou-se alguns passos. Estácio apertou o animal e alcançou-a.
- Não vá fazer tolices! - disse ele em tom de branda repreensão -. Aquilo é fantasia do morador, ou algum sinal de pássaros, ou qualquer outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a manhã, que está deliciosa.
Helena não atendeu à proposta do irmão e foi andando, a passo lento, na direção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o alpendre antigo que lhe corria na frente. As colunas deste estavam já lascadas em muitas partes, aparecendo, aqui e ali, a ossada de tijolo. A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, aparente ao menos. Quando eles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguém espreitava por ela, ficou sumido na sombra, porque ninguém de fora o viu.
Cerca de cinco braças adiante, Estácio resolveu definitivamente regressar, e Helena não opôs objeção nenhuma. Torceram a rédea aos animais e desceram.
- Não poderei falar à bandeira? - perguntou a moça -. Deixe-me ao menos dizer-lhe adeus.
Tinha já tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na direção da casa. Quis o acaso que a bandeira, até então quieta, se movesse ao sopro de uma aragem que passou.
- Vê como ela me respondeu? Não se pode ser mais cortês! - exclamou Helena rindo.
Estácio riu também da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Os olhos, cravados nas orelhas de Moema, não pareciam ver sequer o caminho que o animal seguia. Estácio, para arrancá-la ao silêncio, fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena respondeu distraidamente.
- Que tem você? - perguntou ele.
- Nada - disse ela -; ia... ia embebida naquela toada. Não ouve?
Ouvia-se, efetivamente, a algumas braças adiante, uma cantiga da roça, meio alegre, meio plangente. O cantor apareceu, logo que os cavaleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquele lugar. Era o preto, que pouco antes tinham visto sentado no chão.
- Que lhe dizia eu? - observou a irmã de Estácio -. Ali vai o infeliz de há pouco. Uma laranja chupada no capim e três ou quatro quadras é o bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar comprar o tempo. Nós poderíamos dizer o mesmo?
- Por que não?
A moça recolheu-se ao silêncio.
- Helena, isso que você acaba de dizer... Vamos, estamos sós; confesse alguma tristeza que tenha.
- Nenhuma - respondeu a moça -. Peço-lhe, entretanto, uma cousa.
- Diga.
- Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espírito esta verdade: é que sou uma pobre alma lançada num turbilhão.
Estácio ia pedir explicação mais desenvolvida daquelas últimas palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, e deitou a égua a correr. Estácio fez o mesmo ao cavalo; daí a alguns minutos entravam na chácara, ele aturdido e curioso, ela com a face vermelha e a bater-lhe violentamente o coração.
VII
Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter à varanda. Pisando o primeiro degrau, disse Estácio:
- Helena, explique-me suas palavras de há pouco.
- Quais?
E como Estácio levantasse os ombros, com ar de despeito, continuou Helena:
- Perdoe-me; a pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confissões; mas, neste caso, a confissão inteira seria imprudência maior. Se se tratasse de fatos, creia que a ninguém melhor podia confiá-los do que a você; mas por que motivo irei perturbar-lhe o espírito com a narração de meus sentimentos, se eu própria não chego a entender-me?
Estácio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam D. Úrsula dando as ordens daquele dia a dous escravos. Estácio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara à jovialidade de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma espécie de comediante que recebera da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vestuário. Dona Úrsula viu-a entrar risonha e ir a ela dar-lhe os costumados - bons dias -, que eram sempre um beijo - ou antes dous -, um na mão, outro na face.
- Demorei-me muito? - perguntou ela voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relógio que ficava do outro lado da sala -. Nove horas! Que passeio, senhor meu irmão!
Estácio olhava para ela silencioso e não lhe respondeu. Foram logo depois mudar de roupa, e o almoço reuniu a família. Dona Úrsula propôs, durante ele, algumas mudanças na disposição da chácara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Úrsula desceu à chácara com Estácio. As alterações foram ainda estudadas e combinadas no próprio terreno, com assistência do feitor. Logo que acabou a deliberação e que o projeto de D. Úrsula foi definitivamente assentado, Estácio reteve-a e lhe disse:
- Preciso falar-lhe um instante.
- Também eu.
- Quais são os seus sentimentos atuais em relação a Helena? Oh! Não precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são meras aparências. Não creio que seja absolutamente amiga dela; mas não pode negar que a antipatia desapareceu ou diminuiu muito.
- Diminuiu, talvez.
- E com razão. Pensa que também eu não tive repugnâncias depois que ela aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem desaparecido - desapareceriam hoje de manhã.
- Como?
Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena. Dona Úrsula sorriu ironicamente.
- Não a impressiona isto? - perguntou Estácio.
- Não - respondeu D. Úrsula com decisão -; a frase de Helena é achada em algum dos muitos livros que ela lê. Helena não é tola; quer prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que começo a gostar dela; é dedicada, afetuosa, diligente; tem maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é naturalmente simpática. Já vou gostando dela; mas é um gostar sem fogo nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cansada. Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia prejudicar nas nossas relações é esse dito.
Estácio tomou calorosamente a defesa da irmã.
- O que eu lhe contei - disse ele - foram apenas as palavras. Não pude nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ela as proferiu, e a profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vê-la mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de dúvida, mas passou logo. Ela tem o poder de concentrar a amargura no coração; também a dor tem suas hipocrisias...
- Mas que dor? Que amargura? - interrompeu D. Úrsula -. A dor de ser legitimada? A amargura de uma herança?
Estácio protestou calorosamente contra aquele caminho que a tia dava às suas ideias; enfim pediu-lhe que interrogasse com cautela a irmã.
- Um homem - concluiu ele - é menos apto para obter tais confissões; uma senhora, respeitável e parenta, está mais no caso de lhe captar a confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?
- Pedes muito - respondeu D. Úrsula -. Verei se te posso dar metade disso. Era só o que tinhas para dizer?
- Só.
- Uma criancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me; trata-se...
- Não precisa dizer mais nada - interrompeu Estácio -, lá vem ele.
Camargo aparecera efetivamente a vinte passos de distância.
- Doutor - disse D. Úrsula, logo que este se aproximou deles -, chega um pouco fora de propósito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho, que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.
- Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me aprova.
- Completamente.
- Trata-se.... - disse Estácio.
- De uma conspiração; todos conspiramos em seu benefício.
Dona Úrsula retirou-se para casa; os dous ficaram sós. Uma vez sós, Camargo pousou a mão no ombro de Estácio, fitou-o paternalmente, enfim perguntou-lhe se queria ser deputado. Estácio não pode reprimir um gesto de surpresa.
- Era isso? - disse ele.
- Creio que não se trata de um suplício. Uma cadeira na Câmara! Não é a mesma cousa que um quarto no Aljube...
- Mas a que propósito...
- Esta ideia apoquentava-me há algumas semanas. Doía-me vê-lo vegetar os seus mais belos anos numa obscuridade relativa. A política é a melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrução, caráter, riqueza; pode subir a posições invejáveis. Vendo isso, determinei metê-lo na cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. Para facilitar-lhe o sucesso, entendi-me com duas influências dominantes. O negócio afigura-se-me em bom caminho.
Estácio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.
- Mas, doutor - disse ele depois de curto silêncio -, houve de sua parte alguma precipitação. Pelo menos, devia consultar-me. Do modo por que arranjou as cousas, quase me acho desobrigado de lhe agradecer a intenção. Quanto a aceitar, não aceito.
Camargo não perdeu a tramontana; deixou passar por cima da cabeça a primeira onda do desagrado, surgiu fora e insistiu tranquilamente:
- Vejamos as cousas com os óculos do senso comum. Em primeiro lugar, não creio que tenha outros projetos na cabeça...
- Talvez.
- Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A ciência é árdua e seus resultados fazem menos ruído. Não tem vocação comercial nem industrial. Me dita alguma ponte pênsil entre a Corte e Niterói, uma estrada até Mato Grosso ou uma linha de navegação para a China? É duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites únicos, alguns estudos de ciência e os aluguéis das casas que possui. Ora, a eleição nem lhe tira os aluguéis nem obsta a que continue os estudos; a eleição completa-o, dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A única objeção seria a falta de opinião política; mas esta objeção não o pode ser. Há de ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades públicas, e...
- Suponha - é mera hipótese - que tenho alguns compromissos com a oposição.
- Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na Câmara - embora pela porta dos fundos. Se tem ideias especiais e partidárias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe der a mão - se não for o seu - ficará consolado com a ideia de ter ajudado um adversário talentoso e honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande número de jovens políticos seguem, não uma opinião examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas afeições, a que os pais ou amigos imediatos honraram e defenderam, a que as circunstâncias lhe impõem. Daí vêm algumas legítimas conversões posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circunstâncias da origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnífico lírio saquarema ou luzia. Demais, a política é ciência prática; e eu desconfio de teorias que só são teorias. Entre primeiro na Câmara; a experiência e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que lado se deve inclinar.
- Entra-se na política - disse ele - por vocação legítima, ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. Nenhum desses motivos me impele a dobrar o cabo Tormentório...
- Da Boa Esperança - emendou Camargo rindo -; não suprima três séculos de navegação.
Estácio riu também. Depois falou ao médico da sua índole e ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia políticas, nem todas eram da mesma estatura. Os espíritos, disse ele, nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras espécies intermédias. A uns é necessário o horizonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo batem as asas e sobem a encarar o sol; outros contemplam-se com algumas longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. Estes eram os obscuros, e, na opinião dele, os mais felizes. Não seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que abrigaram a prole, a árvore em que pousaram são as testemunhas únicas e passageiras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os colhe, vão eles pousar no regaço comum da eternidade, onde dormem o mesmo perpétuo sono, tanto o capitão que subiu ao sumo estado por uma escada de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão ínfimas como seriam as do cabreiro; eram as do proprietário do campo que o capitão atravessasse. Um bom pecúlio, a família, alguns livros e amigos - não iam além seus mais arrojados sonhos.
Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.
- Meu caro Estácio - disse ele depois -, esse trocadilho de andorinhas e cabreiros é a cousa mais extraordinária que eu esperava ouvir a um matemático. Saiba que detesto igualmente a filosofia da obscuridade e a retórica dos poetas. Sobretudo, gosto que me respondam em prosa quando falo em prosa.
- Parece-lhe que poetei? - perguntou Estácio rindo.
- Despropositadamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã.
- Eu serei ideólogo.
- Não tem direito de o ser.
- Pois bem, deixe-me com as minhas matemáticas, as minhas flores, as minhas espingardas.
- Não! Há de intercalar tudo isso com um pouco de política.
Puxando-o familiarmente pela gola do paletó, Camargo fê-lo sentar ao pé de si, no banco que ali estava mais próximo. Depois falou. O novo discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma complacência de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da política, e não só as reais, mas as fictícias ou duvidosas, foram inventariadas, pintadas, douradas e iluminadas pelo médico. A palavra revelou um poder de evocação, uma veemência, uma energia, que ninguém era capaz de supor-lhe. O taciturno desabrochou tagarela. Para falar tanto e com tal força era preciso que o animasse um grande sentimento ou um grande interesse.
Estácio, lisonjeado com a afeição que ele lhe mostrava, não teve ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; adotou o alvitre de diferir a resposta para outra ocasião.
- Já lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou pronto a refletir, e a consultar o padre Melchior e Helena.
O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente, não passou o efeito de um sorriso sardônico e dissimulado. Interveio uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a extrair de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro Vale.
- Helena! - disse ele com alguma hesitação -. Que vem fazer sua irmã neste negócio?
- É um voto - redarguiu Estácio -; e menos leve do que lhe parece. Há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa harmonia com as suas outras qualidades feminis.
Entre as sobrancelhas de Camargo projetou-se uma longa ruga, e foi toda a expressão de seu espanto e desgosto. A resposta de Estácio revelara-lhe uma situação nova na família: o voto de Helena, consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Esta solução; que porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a previra o médico. Limitou-se a notá-la de si para si; e, terminando subitamente a conversa, disse:
- Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha opinião não é seu amigo. Em todo o caso, ninguém lhe poderá afirmar que não é a amizade, a longa amizade...
Estácio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe afetuosamente a mão. Tinham-se levantado. Era quase meio-dia; Camargo despediu-se ali mesmo; ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido. A política, na sua opinião, era uma noiva importuna; mas, se todos conspirassem a favor dela, não seria ele obrigado a desposá-la? A esta reflexão respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janela:
- Venha cá, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?