Helena
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Helena, terceiro romance publicado por Machado de Assis, saiu pela primeira vez em livro em 1876. Em 1905, veio à luz a segunda edição, ainda em vida do autor, o que, em princípio, a tornaria o texto a partir do qual se deveria fazer a preparação de edições fidedignas do romance.
No entanto, por causa de uma gralha na impressão da primeira edição, logo na primeira frase do primeiro capítulo, a segunda edição consagrou, para as futuras, a data de abril de 1859 para a morte do conselheiro Vale, acontecimento que desencadeia toda a trama do romance. Na verdade, o ano só pode ser 1850, tal como está na primeira edição, embora o quadrante esquerdo inferior do algarismo zero, nessa edição, esteja mal impresso, quase apagado, e daí seja possível deduzir a origem do erro que se perpetuou em quase todas as edições seguintes. A data que Helena põe no desenho que oferece a Estácio no capítulo XI, julho de 1850, o comprova, indicando também que toda a ação se desenrola nesse ano.
O relato desse equívoco serve, quanto mais não seja, para indicar que, no trabalho de estabelecimento de textos literários, não pode haver regras fixas e que o melhor será sempre compulsar mais de uma edição. Assim, o procedimento aqui adotado foi tomar como fonte a primeira edição e, sempre que foram encontradas discrepâncias, consultar também a segunda (1905), a da Comissão Machado de Assis, de 1975, e a preparada por José Galante de Sousa e supervisionada por Adriano da Gama Kury, publicada em coedição pela Garnier (Belo Horizonte) e pelas Edições Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro), em 1988.
A narrativa de Helena é de terceira pessoa onisciente, mas, como ocorre em outros romances de Machado, aqui e ali o narrador aflora no texto por meio de um pronome pessoal de primeira pessoa ou de um verbo flexionado, como em: "Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso [...]" (cap. V; itálicos nossos). Tal procedimento conduz, quase naturalmente, ao que se convencionou chamar de autoconsciência narrativa, ou seja, intromissões do narrador no próprio relato, alertando o leitor para este ou aquele fato, chamando sua atenção para este ou aquele desdobramento da história, para este ou aquele procedimento técnico. É o que ocorre, por exemplo, em: "Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena" (cap. VII, itálicos nossos); ou em: "[Helena] ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono (cap. XII; itálicos nossos). Esse procedimento, comum nos contos e romances de Machado de Assis (Quincas Borba é pródigo em exemplos) pode servir, paradoxalmente, a dois propósitos opostos: por um lado, chama a atenção para o livro como artefato, como algo que não é a realidade, levando o leitor a refletir que não está diante de uma janela aberta para o real e, sim, de uma obra de arte construída por um escritor; por outro, reforça a verossimilhança, quando o narrador finge não saber o que se esconde por trás das atitudes das personagens, como acontece na vida real, em que nunca podemos ter certeza do que pensam ou sentem as pessoas com quem convivemos.
A grande especificidade de Helena é, seguramente, o fato de o enredo ter no romance uma importância talvez inigualada no conjunto da obra machadiana, prendendo o leitor até o desenlace da trama, na qual se misturam uma boa dose de romantismo e uma espécie de desmentido dos determinismos naturalistas.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. Períodos da história do Brasil ("Primeiro Reinado") bem como instituições ("Câmara dos Deputados") tiveram seus nomes escritos com inicial maiúscula. Pronomes de tratamento foram abreviados e grafados com maiúscula inicial ("Sr.", "Dr.", "D."), exceto quando em início de frase. Procuramos respeitar certas peculiaridades da linguagem machadiana como, por exemplo, o uso de "até ao" ou "até à", hoje em desuso no português do Brasil, mas comum em Portugal ainda no século XXI ("Helena estava de pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página".); ou o emprego do modo indicativo depois de "talvez" ("Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração."); ou o uso da grafia antiga de algumas palavras, desde que ainda consignadas nos principais dicionários brasileiros ("céptico", "gérmen"); ou, ainda, a utilização do pronome pessoal oblíquo "lhe" como sujeito do infinitivo, quando o uso gramaticalmente preconizado é o de "o" ("mas a segurança da moça logo lhe deixou ver [...]").
Como sempre, uma das maiores dificuldades é a pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, é comum aos escritores de língua portuguesa no século XIX. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; [...]"); bem como as vírgulas em cujo uso percebemos um gesto estilístico ("O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido."). Diante da inconsistência no emprego / não emprego de vírgula depois de locuções adverbiais, às vezes dentro de um mesmo período, optamos por deixar como está nas edições consultadas ("De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava."). Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Pelo mesmo motivo, assinalamos as elipses verbais com vírgula ("Tinha as feições duras e frias, os olhos, perscrutadores e sagazes, [...]").
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana. Pelo mesmo motivo, em "terra", mesmo quando o substantivo designa o planeta, foi mantida a inicial minúscula.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
IV
As primeiras semanas correram sem nenhum sucesso notável, mas ainda assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de hesitação, de observação recíproca, um tatear de caracteres, em que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar posição. O próprio Estácio, não obstante a primeira impressão, recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o procedimento de Helena.
Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com igual interesse e gosto, frívola com os frívolos, grave com os que o eram, atenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nela a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um acordo de virtudes domésticas e maneiras elegantes.
Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da família. Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava correntemente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordados, e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e resignação - não humilde, mas digna -, conseguia polir os ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis.
Pouco havia ganho no espírito de D. Úrsula; mas a repulsa desta já não era tão viva como nos primeiros dias. Estácio cedeu de todo, e era fácil; seu coração tendia para ela, mais que nenhum outro. Não cedeu, porém, sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espírito da irmã afigurou-se-lhe a princípio mais calculada que espontânea. Mas foi impressão que passou. Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos de uma família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali trazida por um ato de generosidade. Mas também a estes venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vê-la desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de dezesseis anos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à filha do seu senhor. Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera; faltando-lhe os gozos próprios do afeto - a familiaridade e o contato -, condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala.
As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitação de D. Úrsula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor - tarefa em que se esmerou superando os obstáculos na família; o resto viria de si mesmo.
Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era capelão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns anos antes uma capelinha na chácara, onde muita gente da vizinhança ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta anos o padre; era homem de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabelos, e uns olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta e grave, austero sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecera a família do conselheiro algum tempo depois do consórcio deste. Descobriu a causa da tristeza que minou os últimos anos da mãe de Estácio; respeitou a tristeza, mas atacou diretamente a origem. O conselheiro era homem geralmente razoável, salvo nas cousas do amor; ouviu o padre, prometeu o que este lhe exigia, mas foi promessa feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escritura. Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as ocasiões graves, e o voto de Melchior pesava em seu espírito. Morando na vizinhança daquela família, tinha ali o padre todo o seu mundo. Se as obrigações eclesiásticas não o chamavam a outro lugar, não se arredava de Andaraí, sítio de repouso após trabalhosa mocidade.
Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de Andaraí, mencionaremos ainda o Dr. Matos, sua mulher, o coronel Macedo e dous filhos.
O Dr. Matos era um velho advogado que, em compensação da ciência do direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitáveis de meteorologia e botânica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da política. Era impossível a ninguém queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das estações, a diferença dos climas, influência destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as marés e a pororoca. Ele falava com igual abundância das qualidades terapêuticas de uma erva, do nome científico de uma flor, da estrutura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio às paixões da política, se abria a boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e conservadores - os quais todos lhe pareciam abaixo do país. O jogo e a comida achavam-no menos céptico; e nada lhe avivava tanto a fisionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Estas prendas faziam do Dr. Matos um conviva interessante nas noites que o não eram. Posto soubesse efetivamente alguma cousa dos assuntos que lhe eram mais prezados, não ganhou o pecúlio que possuía professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito, que ignorou até a morte.
A esposa do Dr. Matos fora uma das belezas do Primeiro Reinado. Era uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro ardera aos pés da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era verdade a primeira parte do boato. Nem os princípios morais, nem o temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse repelir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez iludiu os malévolos; daí o sussurro, já agora esquecido e morto. A reputação dos homens amorosos parece-se muito com o juro do dinheiro: alcançado certo capital, ele próprio se multiplica e avulta. O conselheiro desfrutou essa vantagem, de maneira que, se no outro mundo lhe levassem à coluna dos pecados todos os que lhe atribuíam na terra, receberia dobrado castigo do que mereceu.
O coronel Macedo tinha a particularidade de não ser coronel. Era major. Alguns amigos, levados de um espírito de retificação, começaram a dar-lhe o título de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal foi compelido a aceitar, não podendo gastar a vida inteira a protestar contra ele. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sobre o pecúlio da experiência, possuía imaginação viva, fértil e agradável. Era bom companheiro, folgazão e comunicativo, pensando sério quando era preciso. Tinha dous filhos, um rapaz de vinte anos, que estudava em São Paulo, e uma moça de vinte e três, mais prendada que formosa.
Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se consolidada. Dona Úrsula não cedera de todo, mas a convivência ia produzindo seus frutos. Camargo era o único irreconciliável; sentia-se, através de suas maneiras cerimoniosas, uma aversão profunda, prestes a converter-se em hostilidade, se fosse preciso. As demais pessoas, não só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam às boas com a filha do conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e gestos eram o assunto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscências um fio biográfico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguém tirava elementos que pudessem construir a verdade ou uma só parcela que fosse. A origem da moça continuava misteriosa; vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia atribuir o nascimento de Helena a um amor ilustre ou romanesco - hipóteses admissíveis, e em todo o caso agradáveis a ambas as partes.
V
Por esse tempo resolveu Estácio dar um passo decisivo. Ligado por amor à filha de Camargo, desde antes da morte do conselheiro, hesitara sempre em pedi-la ao pai, diferindo a resolução para quando fosse propício o ensejo. A condição não era fácil, porque o sentimento que ele nutria em relação a Eugênia tinha alternativas de tibieza e fervor. A causa disso pode crer-se estava também em seu coração; mas principalmente residia nela. Num dos primeiros dias de agosto, assentara Estácio de ir solicitar de Eugênia autorização para fazer oficialmente o pedido. Assim disposto, dirigiu-se à casa de Camargo.
Mal o avistou de longe, desceu Eugênia à porta do jardim. O chapelinho de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do sol - eram três horas da tarde -, tornavam mais bela a figura da moça. Eugênia era uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do céu fluminense. Agora mesmo, se o leitor lhe descobrir o perfil em camarote de teatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, compreenderá - através de um quarto de século - que os contemporâneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graças que então alvoreciam com o frescor e a pureza das primeiras horas.
Era de pequena estatura; tinha os cabelos de um castanho escuro, e os olhos grandes e azuis, dous pedacinhos do céu, abertos em rosto alvo e corado; o corpo, levemente refeito, era naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até com arte, não possuía o dom de alcançar os máximos efeitos com os meios mais simples.
Estácio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que lhe ia sair dos lábios, era justamente o pedido que o levava ali. Mas Eugênia deteve-lha, mostrando o anel que a madrinha, fazendeira de Cantagalo, lhe mandara na véspera. Era uma opala magnífica, a tal ponto que Eugênia dividia os olhos entre o namorado e ela. Esta simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. Tomásia os esperava. A mãe de Eugênia sabia combinar o decoro com os desejos de seu coração; não seria obstáculo aos dous namorados; infelizmente, a presença de duas visitas veio destruir o cálculo dos três. Estácio espreitava uma ocasião de pedir a Eugênia a autorização que desejava; até ao jantar não se lhe deparou nenhuma.
Desceram todos ao jardim. Dona Tomásia entreteve uma das visitas; Camargo foi mostrar à outra a sua coleção de flores. Estácio e Eugênia afastaram-se cautelosamente dos dous grupos, a pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquele dia. A flor existia; Eugênia colheu-a e deu a Estácio.
- Não vá perdê-la; há de entregá-la a Helena da minha parte. Diga-lhe que estou com muitas saudades.
Estácio colocou a flor na botoeira.
- Vai cair! - disse Eugênia -. Quer que pregue um alfinete?
Estácio não teve tempo de responder, porque a filha de Camargo, tirando um alfinete do cinto, prendeu o pé da flor, gastando muito mais tempo do que o exigia a operação. A moça não era míope; todavia aproximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve ímpetos de lhe beijar os cabelos, e seria a primeira vez que seus lábios lhe tocassem.
- Pronto! - disse ela -. Diga a Helena que é a flor mais bonita do nosso jardim. Sabe que eu gosto muito de sua irmã?
- Acredito.
- Suponho que é minha amiga; há de sê-lo com certeza. Oh! Eu preciso muito de uma amiga verdadeira!
- Sim?
- Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão desgostos, como Cecília... Se soubesse o que ela me fez!
- Que foi?
Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas particularidades por não interessar ao nosso caso, bastando saber que a razão capital da divergência entre as duas amigas fora uma opinião de Cecília acerca da escolha de um chapéu.
Estácio não escutou a história com a atenção que a moça desejara; limitou-se a ouvir a voz de Eugênia, que era na verdade angélica. Alguma cousa porém lhe ficou; e quando ela pôs termo às suas queixas:
- O que me parece - observou o sobrinho de D. Úrsula - é que não valia a pena brigar por tão pouca cousa...
- Pouca cousa! - exclamou Eugênia -. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e de mau gosto?
- Fez mal, se o disse; em todo o caso...
Estácio fez uma pausa e continuou a andar. Eugênia esperou que ele continuasse o que ia dizer; mas o silêncio prolongou-se mais do que era natural.
- Em todo o caso? - repetiu a moça erguendo para ele os olhos límpidos e curiosos.
- Eugênia - disse Estácio -, quer saber a verdadeira razão do mau sucesso de suas afeições? É deixar-se levar mais pelas aparências que pela realidade; é porque dá menos apreço às qualidades sólidas do coração do que às frívolas exterioridades da vida. Suas amizades são das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um chapéu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estéreis para as necessidades do coração.
- Jesus! - exclamou Eugênia, estacando o passo -; um sermão por tão pouca cousa! Se tivesse algum pedaço de latim, era o mesmo que estar ouvindo o padre Melchior.
Estácio não respondeu; contentou-se com erguer os ombros, e os dous continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do outro. A diferença é que o enfado de Eugênia se manifestava por um movimento nervoso de impaciência e despeito.
- Se o ofendi, perdoe-me - disse ela, com um leve tom de ironia.
- Oh! - exclamou ele, apertando-lhe a mão, como quem só esperava um pretexto para reatar a conversa interrompida.
- Talvez ofendesse - continuou a moça -; eu sei dizer as cousas como elas me vêm à boca, e parece que não são as mais acertadas...
- Não digo que o sejam sempre - replicou Estácio sorrindo -. Agora, pelo menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapéu? Não vale a pena esperdiçar afetos, Eugênia; sentirá mais tarde que essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miúdos nem despender em quinquilharias.
Eugênia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; sobretudo, não lhes sentiu a aplicação. O que a irritou mais foi o tom pedagogo de Estácio; estouvada e voluntariosa, não admitia que ninguém lhe falasse sem submissão ou a repreendesse por atos seus, que ela julgava legítimos e naturais. A insistência do moço foi o ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e comuns entre aqueles dous. Os de Eugênia não eram simples silêncios; seu espírito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; pelo contrário, irritava-se e traduzia a irritação por meio de pirraças e acessos de mau humor. Estácio viu murmurar, crescer e desabar a tempestade. A moça articulava algumas frases soltas, batia no chão com o pezinho mimoso, que por acaso esmagou uma pobre erva, alheia às divergências morais daquelas duas criaturas. Ora parava e desandava o caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as pálpebras trêmulas de cólera e um remoque nos lábios; comprazia-se em torcer a ponta da manga ou morder a ponta do dedo. Estácio, afeito a essas explosões, não lhes sabia remédio próprio: tanto o silêncio como a réplica eram ali matérias inflamáveis. Contudo, o silêncio era o menor dos dous perigos. Estácio limitava-se a ouvir calado, olhando à sorrelfa para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais belo quando a raiva o coloria. Uma terceira pessoa era a única esperança de pacificação; Estácio alongou o olhar pelo jardim em busca desse deus ex machina. Apareceu ele enfim sob a forma de um Carlos Barreto - estudante de medicina -, que cultivava simultaneamente a patologia e a comédia, mas prometia ser melhor Esculápio que Aristófanes. Mal os viu de longe, apertou o passo para o grupo.
- Vem gente, Eugênia - disse Estácio -; não demos espetáculos e... perdoe-me.
Eugênia ergueu os ombros, procurou com os olhos o intruso que daí a pouco lhes estendia a mão.
O céu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a Eugênia a agradável notícia de que trouxera a seu pai um convite para baile que daria no sábado próximo uma de suas parentas. A perspectiva do baile foi uma brisa salutar que dispersou o resto das nuvens; Eugênia sorriu. J'ai ri; me voilà désarmée, como na comédia de Piron. Vinte minutos depois, não havia em Eugênia vestígio da cena do jardim. Mas a ideia do casamento estava adiada.
O efeito foi agro e doce para Estácio. Estimando ver dissipada a cólera, doía-lhe que a causa fosse, não a própria virtude do amor, mas um motivo comparativamente fútil. A resolução de a consultar sobre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Saiu dali à noite, antes do chá, aborrecido e azedo. Esse estado não durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo, sentiu alguma cousa semelhante à dentada de um remorso. O amor de Estácio tinha a particularidade de crescer e afirmar-se na ausência e diminuir logo que estava ao pé da moça. De longe, via-a através da névoa luminosa da imaginação; ao pé era difícil que Eugênia conservasse os dotes que ele lhe emprestava. Daí, um dissentimento provável e um remorso certo. Agora que a deixava, ia ele irritado contra si mesmo; achava-se ridículo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade de Eugênia; concedia alguma cousa à idade, à educação, aos costumes, à ignorância da vida.
Nesse estado de espírito entrou em casa, onde o esperava um incidente novo.
VI
Chegando a casa, achou Estácio remédio ao mau humor. Era uma carta de Luís Mendonça, que dous anos antes partira para Europa, donde agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, anunciando-lhe que dentro de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor companheiro de aula. Havia entre eles certos contrastes de gênio. O de Mendonça era mais folgazão e ativo. Quando este partiu para Europa, quis que o antigo colega o acompanhasse, e o próprio conselheiro opinara nesse sentido. Estácio recusou pelo receio de que, sendo diferente o espírito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao sacrifício de hábitos e preferências de um deles.
A notícia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D. Úrsula. Dona Úrsula estava então na sala de costura, relendo algumas páginas do seu Saint-Clair, encostada a uma mesa. Do outro lado, ficava Helena, a concluir uma obra de crochet.
- Titia - disse ele -, dou-lhe uma novidade agradável para mim.
- Que é?
- O Mendonça chegou a Pernambuco, está aqui dentro de pouco tempo.
- O Mendonça?
- Luís Mendonça.
- O que foi para a Europa, sei. Há quanto tempo?
- Dous anos.
- Dous anos! Parece que foi ontem.
- Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que devo ir também à Europa, quanto antes. Querem ir?
- Eu? - disse D. Úrsula, marcando a página do livro com os óculos de prata que até então conservara sobre o nariz -. Não são folias para gente velha. Daqui para a cova.
- A cova! - exclamou Helena -. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me há de enterrar primeiro?
- Menina! - exclamou D. Úrsula em tom de repreensão.
Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de verdadeira simpatia que ouvia a D. Úrsula. Bem o compreendeu esta; e talvez a mortificou aquela espontaneidade do coração. Mas era tarde. Não podia recolher a palavra, não podia sequer explicá-la.
- Que tal virá o teu amigo? - perguntou ela ao sobrinho -. Era bom rapaz antes de ir; um pouco tonto, apenas.
- Há de vir o mesmo - respondeu Estácio -; ou ainda melhor. Melhor decerto, porque dous anos mais modificam o homem.
Estácio fez aqui um panegírico do amigo, intercalado com observações da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o chá. Dona Úrsula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o crochet na cestinha de costura.
- Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochet? - perguntou ela ao irmão, caminhando para a sala de jantar.
- Não?
- Não, senhor; fiz um furto.
- Um furto!
- Fui procurar um livro na sua estante.
- E que livro foi?
- Um romance.
- Oh! - exclamou Estácio -. Esse livro...
- Esquisito, não é? Quando percebi que o era, fechei-o e lá o pus outra vez.
- Não é livro para moças solteiras...
- Não creio mesmo que seja para moças casadas - replicou Helena rindo e sentando-se à mesa -. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo...
- Imagino! - interrompeu D. Úrsula.
- O desejo de aprender a montar a cavalo - concluiu Helena.
Estácio olhou espantado para a irmã. Aquela mistura de geometria e equitação não lhe pareceu suficientemente clara e explicável. Helena soltou uma risadinha alegre de menina que aplaude a sua própria travessura.
- Eu lhe explico - disse ela -; abri o livro, todo alastrado de riscos que não entendi. Ouvi porém um tropel de cavalos e cheguei à janela. Eram três cavaleiros, dous homens e uma senhora. Oh! Com que garbo montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco anos, alta, esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa cauda do vestido caída a um lado. O cavalo era fogoso; mas a mão e o chicotinho da cavaleira quebravam-lhe os ímpetos. Tive pena, confesso, de não saber montar a cavalo...
- Quer aprender comigo?
- Titia consente?
Dona Úrsula levantou os ombros com o ar mais indiferente que pôde achar no seu repertório. Helena não esperou mais.
- Escolha você o dia.
- Amanhã?
- Amanhã.
Estácio costumava dar um passeio a cavalo quase todas as manhãs. O do dia seguinte foi dispensado; começariam as lições de Helena. Antes disso, porém, escreveu Estácio à filha de Camargo uma carta recendente a ternura e afeto. Pedia-lhe desculpa do que se passara na véspera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lhe dissera mais de uma vez, com o mesmo estilo, se não com as mesmas palavras. A carta dissipou-lhe a última sombra de remorso. Antes que ela chegasse ao seu destino, reconciliara-se ele consigo mesmo. O portador saiu para o Rio Comprido, e ele desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pé do qual estava situada a cavalariça. Naquele lado da casa corria a varanda antiga, onde a família costumava às vezes tomar café ou conversar nas noites de luar, que ali penetrava pelas largas janelas. Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.
Já ali estava Helena. Dona Úrsula emprestara-lhe um vestido de amazona com que algumas vezes montara, antes da morte do irmão. O vestido ficava-lhe mal; era folgado demais para o talhe delgado da moça. Mas a elegância natural fazia esquecer o acessório das roupas.
- Pronta! - exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da escada.
- Oh! Isso não vai assim! - respondeu Estácio -. Não suponha que há de montar já hoje como a moça que ontem viu passar na estrada. Vença primeiramente o medo...
- Não sei o que é medo - interrompeu ela com ingenuidade.
- Sim? Não a supunha valente. Pois eu sei o que ele é.
- O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas do outro mundo. Até à idade de dez anos era incapaz de penetrar numa sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possível que uma pessoa morta voltasse à terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma cousa. Lavei o meu espírito de semelhante tolice, e hoje era capaz de entrar, de noite, num cemitério... E daí talvez não: os corpos que ali dormem têm direito de não ouvir mais um só rumor de vida.
Estácio chegara ao último degrau da escada. As derradeiras palavras ouviu-as ele com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial de pedra.
- Quem lhe ensinou essas ideias? - perguntou ele.
- Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem: trazem-se no coração. Senhor geômetra - continuou brandindo caprichosamente o chicote -, veja se transcreve em algum compêndio estas figuras de minha invenção, e ande cavalgar comigo.
Com um movimento rápido travou da cauda do vestido, e caminhou para diante. Estácio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dous sentimentos diferentes: a afeição que o prendia à irmã, e a estranha impressão que ela lhe fazia sentir. Quando chegou à porta da cavalariça, viu aparelhados dous animais, o cavalo de seus passeios da manhã, e a égua que a tia cavalgava uma ou outra vez.
- Que é isso? - disse ele -. Por ora vamos a algumas indicações somente, aqui no terreiro.
- Justamente! - respondeu a moça.
Um escravo, que ali estava, trouxe um tamborete. Estácio aproximou-se de Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da égua.
- Como se chama? - perguntou ela.
- Moema.
- Moema! Ora espere... é um nome indígena, não é?
Estácio fez um sinal afirmativo. Helena tinha um pé sobre o tamborete; repetiu ainda o nome da égua, como quem refletia sobre ele, sem que o irmão percebesse que não era aquilo mais do que um disfarce. De repente, quando ele menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no selim. A égua alteou o colo, como vaidosa do peso. Estácio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correção do movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquilo. Helena inclinou-se para ele.
- Fui bem? - perguntou sorrindo.
- Não podia ir melhor; mas o que me admira...
As patas de Moema interromperam a reflexão do moço. A cavaleira brandira o chicotinho, e o animal saíra a trote largo pelo terreiro fora. Estácio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como para tomar a rédea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou ver que ela não fazia ali os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde saíra.
- Que tal? - disse ela logo que estacou -. Terei jeito para a equitação?
- Criança!
- Que é isso? Já aprendeu? - interveio D. Úrsula, do alto da varanda, aonde acabava de chegar.
- Estava caçoando conosco - disse Estácio -. Vê como sabe montar?
- Ela sabe tudo - murmurou D. Úrsula entre dentes.
Estácio montou no cavalo. Consultou o relógio; eram sete horas e meia.
- Permite que o acompanhe? - perguntou Helena.
- Com uma condição - disse ele -; é que há de ter juízo. Não quero temeridades; a égua é aparentemente mansa, convém não brincar com ela. Já vejo que você é capaz de muitas cousas mais...
- Prometo ir pacificamente.
Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de rédea ao animal e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã, fresca. Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a égua, instigada por ela, adiantava-se alguns passos ao cavalo; Estácio repreendia a irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudência, gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ela conduzia o animal.
- Não me dirá você - perguntou ele - por que motivo, sabendo montar, pedia-me ontem lições?
- A razão é clara - disse ela -; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um cálculo.
- Um cálculo?
- Profundo, hediondo, diabólico - continuou a moça sorrindo -. Eu queria passear algumas vezes a cavalo; não era possível sair só, e nesse caso...
- Bastava pedir-me que a acompanhasse.
- Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir que não sabia montar. A ideia momentânea de sua superioridade neste assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida...
Estácio sorriu do cálculo; logo depois ficou sério, e perguntou em tom seco:
- Já lhe negamos algum prazer que desejasse?
Helena estremeceu e ficou igualmente séria.
- Não! - murmurou -; minha dívida não tem limites.
Esta palavra saiu-lhe do coração. As pálpebras caíram-lhe e um véu de tristeza lhe apagou o rosto. Estácio arrependeu-se do que dissera. Compreendeu a irmã; viu que, por mais inocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas à má parte, e, em tal caso, o menos que se lhe podia arguir era a descortesia. Estácio timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ela e rompeu o silêncio.
- Você ficou triste - disse Estácio -; mas eu desculpo-a.
- Desculpa-me? - perguntou a moça erguendo para o irmão os belos olhos úmidos.
- Desculpo a injúria que me fez, supondo-me grosseiro.
Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições do mundo. Helena deu livre curso à imaginação e ao pensamento; suas falas exprimiam ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da experiência prematura, e iam direitas à alma do irmão, que se comprazia em ver nela a mulher como ele queria que fosse, uma graça pensadora, uma sisudez amável. De quando em quando faziam parar os animais para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um acidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam falando das desvantagens da riqueza.
- Valem muito os bens da fortuna - dizia Estácio -; eles dão a maior felicidade da terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais de uma hora ou quase.
O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dous cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrara. Ao passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes.
- Tem razão - disse Helena -: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é fazer muita cousa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade.
Estácio soltou uma risada.
- Você devia ter nascido...
- Homem?
- Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas. Nem estou longe de crer que o próprio cativeiro lhe parecerá uma bem-aventurança, se eu disser que é o pior estado do homem.
- Sim? - retorquiu Helena sorrindo -; estou quase a fazer-lhe a vontade. Não faço; prefiro admirar a cabeça de Moema. Veja, veja como se vai faceirando. Esta não maldiz o cativeiro; pelo contrário, parece que lhe dá glória. Pudera! Se não a tivéssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é também impaciência.
- De quê?
- Impaciência de correr por essa estrada da Tijuca fora, e beber o vento da manhã, espreguiçando os músculos, e sentindo-se alguma cousa senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre égua? - continuou a moça inclinando a cabeça até às orelhas do animal -; vai aqui ao pé de nós um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu inimigo...
- Helena! - interrompeu Estácio -; você é muito capaz de disparar a correr.
- E se fosse?
- Eu deixava-a ir, e nunca a traria em meus passeios. Você monta bem; mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsáveis, não só por sua felicidade, mas também por sua vida.
Helena refletiu um instante.
- Quer dizer - perguntou ela - que se eu fosse vítima de um desastre, não faltaria quem o imputasse à minha família?
- Justo.
- Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me lembrasse - é uma suposição -, se eu me lembrasse de deixar a vida por aborrecimento ou capricho, seria você acusado de me haver propinado o veneno? Não há melhor modo de me fazer evitar a morte.
- Deixemos conversas lúgubres, e voltemos para casa - interrompeu Estácio.
- Já!
- Raras vezes passo daqui; e não pense você que é perto.
- Parece-me que ainda agora saímos de casa. Vamos uns cinco minutos adiante? Sim?
Estácio consultou o relógio.
- Cinco minutos justos - disse ele.
- Até àquela casa que ali está com uma bandeira azul.
Havia, efetivamente, cerca de quatro minutos adiante, à esquerda da estrada, uma casa de insignificante aparência, sobre cujo telhado flutuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estácio conhecia a casa, mas era a primeira vez que via a bandeira.
Helena pediu-lhe a explicação daquele apêndice.
- Vá lá saber - disse o irmão rindo.
Helena deu de rédea à égua e adiantou-se alguns passos. Estácio apertou o animal e alcançou-a.
- Não vá fazer tolices! - disse ele em tom de branda repreensão -. Aquilo é fantasia do morador, ou algum sinal de pássaros, ou qualquer outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a manhã, que está deliciosa.
Helena não atendeu à proposta do irmão e foi andando, a passo lento, na direção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o alpendre antigo que lhe corria na frente. As colunas deste estavam já lascadas em muitas partes, aparecendo, aqui e ali, a ossada de tijolo. A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, aparente ao menos. Quando eles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguém espreitava por ela, ficou sumido na sombra, porque ninguém de fora o viu.
Cerca de cinco braças adiante, Estácio resolveu definitivamente regressar, e Helena não opôs objeção nenhuma. Torceram a rédea aos animais e desceram.
- Não poderei falar à bandeira? - perguntou a moça -. Deixe-me ao menos dizer-lhe adeus.
Tinha já tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na direção da casa. Quis o acaso que a bandeira, até então quieta, se movesse ao sopro de uma aragem que passou.
- Vê como ela me respondeu? Não se pode ser mais cortês! - exclamou Helena rindo.
Estácio riu também da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Os olhos, cravados nas orelhas de Moema, não pareciam ver sequer o caminho que o animal seguia. Estácio, para arrancá-la ao silêncio, fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena respondeu distraidamente.
- Que tem você? - perguntou ele.
- Nada - disse ela -; ia... ia embebida naquela toada. Não ouve?
Ouvia-se, efetivamente, a algumas braças adiante, uma cantiga da roça, meio alegre, meio plangente. O cantor apareceu, logo que os cavaleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquele lugar. Era o preto, que pouco antes tinham visto sentado no chão.
- Que lhe dizia eu? - observou a irmã de Estácio -. Ali vai o infeliz de há pouco. Uma laranja chupada no capim e três ou quatro quadras é o bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar comprar o tempo. Nós poderíamos dizer o mesmo?
- Por que não?
A moça recolheu-se ao silêncio.
- Helena, isso que você acaba de dizer... Vamos, estamos sós; confesse alguma tristeza que tenha.
- Nenhuma - respondeu a moça -. Peço-lhe, entretanto, uma cousa.
- Diga.
- Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espírito esta verdade: é que sou uma pobre alma lançada num turbilhão.
Estácio ia pedir explicação mais desenvolvida daquelas últimas palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, e deitou a égua a correr. Estácio fez o mesmo ao cavalo; daí a alguns minutos entravam na chácara, ele aturdido e curioso, ela com a face vermelha e a bater-lhe violentamente o coração.