Esaú e Jacó
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.
Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.
A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)
Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."
Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.
Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.
A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."
A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.
Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
CXII
O PRIMEIRO MÊS
Na véspera do dia em que se completou o primeiro mês da morte de Flora, Pedro teve uma ideia, que não comunicou ao irmão. Não perderia nada em fazê-lo, porque Paulo teve a mesma ideia, e também a calou. Dela nasce este capítulo.
A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa, antes das sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora, adivinhas que ambos foram ao cemitério; não adivinhas, nem é fácil adivinhar que cada um deles levava uma grinalda. Não digo que fossem das mesmas flores, não só para respeitar a verdade, senão também para afastar qualquer ideia intencional de simetria na ação e no acaso. Uma era de miosótis, outra, creio que de perpétuas. Qual fosse a de um, qual a do outro, não se sabe nem interessa à narração. Nenhuma tinha letreiro.
Quando Paulo chegou ao cemitério, e viu de longe o irmão, teve a sensação de pessoa roubada. Cuidava ser único e era último. A presunção, porém, de que Pedro não levara nada, uma folha sequer, consolou-o da antecipação da visita. Esperou alguns instantes; advertindo que podia ser visto, desviou-se do caminho, meteu-se por entre as sepulturas, até ir colocar-se atrás daquela. Aí esperou cerca de um quarto de hora. Pedro não se queria arrancar dali; parecia falar e escutar. Enfim, despediu-se e desceu.
Paulo, vagarosamente, caminhou para a sepultura. Indo a depositar a grinalda, viu ali outra posta de fresco, e entendendo que era do irmão, teve ímpeto de ir atrás dele e pedir-lhe contas da lembrança e da visita. Não lhe leves a mal o ímpeto; passou imediatamente. O que ele fez foi colocar a coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça.
Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente pararia um instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar à moça enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo lugar que ele, os olhos no chão, teve também o seu impulso de ir buscá-lo e trazê-lo daquela cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os gestos de piedade, quaisquer que fossem, ele os deu primeiro à querida comum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvi-la, gemer com ela a separação eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se dela mais cedo.
Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saísse atrás dele, e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo lugar, e receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direção do portão, estacou, recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos dele, ver se rezava, se se benzia, para desmenti-lo quando lhe ouvisse mofar das cerimônias eclesiásticas. Logo sentiu que era um erro; não iria confessar a ninguém que o vira rezando ao pé da cova de Flora. Ao contrário, era capaz de o desmentir - ou, quando menos, fazer um gesto de incredulidade...
Enquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça, desfazendo-se umas às outras, discursando sem palavras, aceitando, repelindo, esperando, os olhos não se retiravam do irmão, nem este, da sepultura. Paulo não fazia gesto, não mexia os lábios, tinha os braços cruzados, o chapéu na mão. Não obstante, podia estar rezando. Também podia falar calado, para a sombra ou para a memória da defunta. A verdade é que não saiu do lugar. Então Pedro viu que a conversação, evocação, adoração, o que quer que fosse que atava Paulo à sepultura, vinha sendo muito mais demorado que as suas orações. Não marcara o seu tempo, mas evidentemente o de Paulo era já maior. Descontando a impaciência, que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que Paulo gastava mais saudades que ele. Deste modo, ganhava na extensão da visita o que perdera na chegada ao cemitério. Pedro, à sua vez, achou-se roubado.
Quis sair; mas, uma força, que ele não sabia explicar, não lhe consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gêmeo. A custo, pôde enfim trazer a estes e fazê-los andar de volta pelas outras campas, onde leu alguns epitáfios. Um de 1865 não se podia ler bem se era tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar já apagado o adjetivo. Tributo era, tinha a fórmula adotada pelos marmoristas, para poupar estilo aos fregueses. Notando que o adjetivo estava comido do tempo, Pedro disse consigo que o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir.
Pensou outras cousas com que foi disfarçando a humilhação. Fizera tudo às carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora à espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este não arredava pé. Enfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para rodeá-la, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o melhor lugar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo.
Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as maldições de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o mesmo, amigo leitor; foi tornar à sepultura e emendar ao tempo gasto anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns minutos, até que saiu, sem achar sombra de Paulo.
CXIII
UMA BEATRIZ PARA DOUS
Flora, se visse os gestos de ambos, é provável que descesse do céu, e buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade de tornar cá, para servir de madrinha a um duelo que deixara em meio.
Quanto a este, se ia continuar, não era pela mesma injúria. Não esqueças que foi ao pé daquela mesma campa que os dous fizeram as pazes eternas, e, posto não lhas desfizesse a campa, é certo que acendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-ás, e com aparência de razão, que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se ali descesse em espírito! Puro engano, amigo. No começo, ao menos, eles jurariam o que ela mandasse.
CXIV
CONSULTÓRIO E BANCA
Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça. Um prometia saúde, outro, ganho de causa, e acertavam muita vez, porque não lhes faltava talento nem fortuna. Demais, não trabalhavam sós, mas cada qual com um colega de nomeada e prático.
No meio dos sucessos do tempo, entre os quais avultavam a rebelião da esquadrae os combates do Sul, a fuzilaria contra a cidade, os discursos inflamados, prisões, músicas e outros rumores, não lhes faltava campo em que divergissem. Nem era preciso política. Cresciam agora mais em número as ocasiões e as matérias. Ainda quando combinassem de acaso e de aparência, era para discordar logo e de vez, não deliberadamente, mas por não poder ser de outro modo.
Tinham perdido o acordo, feito pela razão, jurado pelo amor, em honra da moça defunta e da mãe viva. Mal se podiam ver, mal ou pior, ouvir. Cuidaram de evitar tudo o que o lugar e a ocasião ajustassem para os separar mais. Desta maneira, a profissão torceu-lhes o caminho e dividiu as relações de ambos. Natividade apenas daria pela má vontade dos filhos, desde que os dous pareciam apostados em lhe querer bem, mas dava por ela, e tentava ligá-los apertadamente e de todo. Santos folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. Só receava que Paulo, dada a inclinação partidária, buscasse noiva jacobina. Não ousando dizer-lhe nada a tal respeito, refugiava-se na religião, e não ouvia missa que lhe não metesse uma oração particular e secreta para obter a proteção do céu.
CXV
TROCA DE OPINIÕES
Senão quando, viu Natividade os primeiros sinais de uma troca de inclinação, que mais parecia propósito que efeito natural. Entretanto, era naturalíssimo. Paulo entrou a fazer oposição ao governo, ao passo que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava aceitando o regímen republicano, objeto de tantas desavenças.
A aceitação por parte deste não foi rápida nem total; era, porém, bastante para sentir que não havia entre ele e o novo governo um abismo. Naturalmente o tempo e a reflexão consumaram este efeito no espírito de Pedro, a não admitir que também nele vingasse a ambição de um grande destino, esperança da mãe. Natividade, com efeito, ficou deliciada. Também ela mudara, se havia que mudar na simples alma materna, para quem todos os regimens valiam pela glória dos filhos. Pedro, aliás, não se dava todo, restringia alguma cousa às pessoas e ao sistema, mas aceitava o princípio, e bastava; o resto viria com a idade, dizia ela.
A oposição de Paulo não era ao princípio, mas à execução. Não é esta a república dos meus sonhos, dizia ele; e dispunha-se a reformá-la em três tempos, com a fina flor das instituições humanas, não presentes nem passadas, mas futuras. Quando falava delas, via-se-lhe a convicção nos lábios e nos olhos, estes alongados, como alma de profeta. Era outro ensejo de se não entenderem os dous. D. Cláudia tinha que era cálculo de ambos para se não juntarem nunca; - opinião que Natividade aceitaria, finalmente, se não fora a de Aires.
Também este notara a mudança, e estava prestes a aceitar a explicação, por aquela razão de comodidade que achava em concordar com as opiniões alheias; não se cansava nem aborrecia. Tanto melhor, se o acordo se fazia com um simples gesto. Desta vez, porém, valeu a pessoa.
- Não, baronesa - disse ele -, não creia em propósitos.
- Mas que pode ser então?
Aires gastou algum tempo na escolha das palavras, a fim de lhe não saírem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. Às vezes, falar não custa menos que pensar. Ao fim de três minutos, segredou a Natividade:
- A razão parece-me ser que o espírito de inquietação reside em Paulo, e o de conservação, em Pedro. Um já se contenta do que está, outro acha que é pouco e pouquíssimo, e quisera ir ao ponto a que não foram homens. Em suma, não lhes importam formas de governo, contanto que a sociedade fique firme ou se atire para diante. Se não concorda comigo, concorde com D. Cláudia.
Aires não tinha aquele triste pecado dos opiniáticos; não lhe importava ser ou não aceito. Não é a primeira vez que o digo, mas provavelmente é a última. Em verdade, a mãe dos gêmeos não quis outra explicação. Nem por isso a discórdia morreria entre eles, que apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duelo. Ouvindo esta conclusão, Aires fez um gesto afirmativo, e chamou a atenção de Natividade para a cor do céu, que era a mesma, antes e depois da chuva. Supondo que havia nisto algo simbólico, ela entrou a procurá-lo, e o mesmo farias tu, leitor, se lá estivesses; mas não havia nada.
- Tenha confiança, baronesa - prosseguiu ele pouco depois -. Conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos. Suponha um déspota, uma corte, uma mensagem. A corte discute a mensagem, a mensagem canoniza o déspota. Cada cortesão toma a si definir uma das virtudes do déspota, a mansidão, a piedade, a justiça, a modéstia... Chega a vez da grandeza da alma; chega também a notícia de que o déspota morreu de apoplexia, que um cidadão assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do trono. A mensagem é aprovada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos à História; tudo é que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrário é impossível; ninguém trepa ao sólio sem isso, nem a senhora sabe o que é memória de amanuense. Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado - Petrus, Paulus...
- Oh! Não agoure meus filhos! - exclamou Natividade.
CXVI
DE REGRESSO
- Então foram eleitos deputados?
- Foram; tomam assento quinta-feira. Se não fossem meus filhos, diria que os vem achar mais belos do que os deixou, há um ano.
- Diga, diga, baronesa; faça de conta que são meus filhos.
Aires voltava da Europa, aonde fora com promessa de ficar seis meses apenas. Enganou-se; gastou onze. Natividade é que lhe pôs um ano para arredondar a ausência, que sentira deveras, como D. Rita. O sangue em uma, o costume na outra, custou-lhes a suportar a separação. Ele fora a pretexto de águas, e, por mais que lhe recomendassem as do Brasil, não as quis experimentar. Não estava acostumado às denominações locais. Tinha esta impressão que as águas de Carlsbad ou Vichy, sem estes nomes, não curariam tanto. D. Rita insinuou que ele ia para ver como estavam as moças que deixou, e concluiu:
- Hão de estar tão velhas, como você.
- Quem sabe se mais? O ofício delas é envelhecer - redarguiu o conselheiro.
Quis rir, mas não pôde ir além da ameaça. Não era a lembrança da própria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustiça da sorte que lhe tomou a vista interior. As moças, ele sabia muito bem que cediam ao tempo como as cidades e as instituições, e ainda mais depressa que elas. Nem todas iriam logo cedo, a cumprir a sentença que atribui ao amor dos deuses a morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, e agora lhe lembrou a meiga Flora, que lá se fora com as suas graças finas... Não passou da ameaça de riso.
Quiseram retê-lo as duas, Santos também, que perdia nele uma figura certa das suas noites; mas o nosso homem resistiu, embarcou e partiu. Como escrevia sempre à irmã e aos amigos, dava a causa exata da demora, e não eram amores, salvo se mentia, mas passara a idade de mentir. Afirmou, sim, que recuperara algumas forças, e assim o pareceu quando desembarcou, onze meses depois, no cais Pharoux. Trazia o mesmo ar de velho elegante, fresco e bem posto.
- Mas então eleitos?
- Eleitos; tomam assento quinta-feira.
CXVII
POSSE DAS CADEIRAS
Quinta-feira, quando os gêmeos tomaram assento na Câmara, Natividade e Perpétua foram ver a cerimônia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma tribuna. A mãe desejou que Aires fosse também. Quando este ali chegou, já as achou sentadas, Natividade a fitar com a luneta o presidente e os deputados. Um destes falava sobre a ata, e ninguém lhe prestava atenção. Aires sentou-se um pouco mais dentro, e, após alguns minutos, disse a Natividade:
- A senhora escreveu-me que eram candidatos de dous partidos contrários.
Natividade confirmou a notícia; foram eleitos em oposição um ao outro. Ambos apoiavam a República, mas Paulo queria mais do que ela era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, ardentes, ambiciosos; eram bem aceitos dos amigos, estudiosos, instruídos...
- Amam-se finalmente?
- Amam-se em mim - respondeu ela, depois de formular essa frase na cabeça.
- Pois basta esse terreno amigo.
- Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes.
- Não falta; a senhora tem muitos e muitos anos de vida. Faça uma viagem à Europa com eles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu sinto-me duplicado, por mais que me custe à modéstia, mas a modéstia perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens...
- Por que é que a política os há de separar?
- Sim, podiam ser grandes na ciência, um grande médico, um grande jurisconsulto...
Natividade não quis confessar que a ciência não bastava. A glória científica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida de poucos. Política, não. Quisera só a política, mas que não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas... Assim ia pensando consigo, enquanto Aires, abrindo mão da ciência, acabou declarando que, sem amor, não se faria nada.
- Paixão - disse ele - é meio caminho andado.
- A política é a paixão deles; paixão e ambição. Talvez já pensem na presidência da República.
- Já?
- Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que fará um, se o outro subir primeiro.
- Derrubá-lo-á, naturalmente.
- Não graceje, conselheiro.
- Não é gracejo, baronesa. A senhora cuida que a política os desune; francamente, não. A política é um incidente, como a moça Flora foi outro...
- Ainda se lembram dela.
- Ainda?
- Foram à missa aniversária, e desconfio que foram também ao cemitério, não juntos, nem à mesma hora. Se foram, é que verdadeiramente gostavam dela; logo, não foi um incidente.
Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Aires não insistiu na opinião, antes deu mais relevo à dela, com o próprio fato da visita ao cemitério.
- Não sei se foram - emendou Natividade -; desconfio.
- Devem ter ido; eles gostavam realmente da pequena. Também ela gostava deles; a diferença é que, não alcançando unificá-los, como os via em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mistério. Há outros mais escuros.
- Parece que vai entrar a cerimônia - disse Perpétua, que olhava para o recinto.
- Chegue-se para a frente, conselheiro.
A cerimônia era a do costume. Natividade cuidou que ia vê-los entrar juntos e afirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar separadamente. Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes cá de cima repetir a fórmula com voz clara e segura. A cerimônia foi curiosa para as galerias, graças à semelhança dos dous; para a mãe foi comovedora.
- Estão legisladores - disse Aires no fim.
Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao velho amigo que as acompanhasse à carruagem. No corredor acharam os dous recentes deputados, que vinham ter com a mãe. Não consta qual deles a beijou primeiro; não havendo regimento interno nesta outra Câmara, pode ser que fossem ambos a um tempo, metendo-lhes ela a cara entre as bocas, uma face para cada um. A verdade é que o fizeram com igual ternura. Depois voltaram ao recinto.
CXVIII
COUSAS PASSADAS, COUSAS FUTURAS
Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a igreja de São José, ao lado, e um pedaço do morro do Castelo, a distância. Estacou.
- Que é? - perguntou Aires.
- Nada - respondeu ela entrando e estendendo-lhe a mão -. Até logo?
- Até logo.
A vista da igreja e do morro despertou nela todas as cenas e palavras que lá ficaram transcritas nos dous ou três primeiros capítulos. Não esqueceste que foi ao pé da igreja, entre esta e a Câmara, que o coupé esperou então por ela e pela irmã.
- Você lembra-se, Perpétua? - disse Natividade, quando o carro começou a andar.
- De quê?
- Não se lembra que foi ali que ficou o carro, quando fomos à cabocla do Castelo?
Perpétua lembrava-se. Natividade advertiu que devia ser ali perto a ladeira por onde subiram com dificuldade e curiosidade, até à casa da cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia também. A casa era à direita, tinha a escada de pedra...
Descansa, amigo, não repito as páginas. Ela é que não podia deixar de as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reaparecia com a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o pai a fez entrar na sala: "Entra, Bárbara". A ideia de estar agora madura e longe, restituída ao estado, que deixou província, rica onde nasceu pobre, não acudiu à nossa amiga. Não, toda ela voltou àquela manhã de 1871. A caboclinha era esta mesma criatura leve e breve, com os cabelos atados no alto da cabeça, olhando, falando, dançando... Cousas passadas.
Quando a carruagem ia a dobrar a praia de Santa Luzia, ladeando a Santa Casa, Natividade teve ideia, mas só ideia, de voltar e ir ter à ladeira do Castelo, subir por ela, a ver se achava a adivinha no mesmo lugar. Contar-lhe-ia que os dous meninos de mama, que ela predisse seriam grandes, eram já deputados e acabavam de tomar assento na Câmara. Quando cumpririam eles o seu destino? Viveria o tempo de os ver grandes homens, ainda que muito velha?
A presidência da República não podia ser para dous, mas um teria a vice-presidência, e, se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que ouviu à cabocla, quando lhe perguntou pela espécie de grandeza que caberia aos filhos. Cousas futuras! - respondeu a Pítia do Norte, com tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas é ilusão. Quando muito, são as rodas do carro que vão rolando e as patas dos cavalos que batem. Cousas futuras! Cousas futuras!
CXIX
QUE ANUNCIA OS SEGUINTES
Todas as histórias, se as cortam em fatias, acabam com um capítulo último e outro penúltimo, mas nenhum autor os confessa tais; todos preferem dar-lhes um título próprio. Eu adoto o método oposto; escrevo no alto de cada um dos capítulos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a matéria particular de nenhum, indico o quilômetro em que estamos da linha. Isto supondo que a história seja um trem de ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto águas e ventos, mas tu viste que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que do chão. Não é trem nem barco; é uma história simples, acontecida e por acontecer; o que poderás ver nos dous capítulos que faltam e são curtos.
CXX
PENÚLTIMO
Este é ainda um óbito. Já lá ficou defunta a jovem Flora, aqui vai morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de batismo; mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabelos brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente à idade. A elegância, que era o seu sexto sentido, enganava os tempos de tal maneira que ela conservava, não digo a frescura, mas a graça antiga.
Não morreu sem ter uma conferência particular com os dous filhos - tão particular, que nem o marido assistiu a ela. Também não instou por isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal poderia reter as lágrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus finais pedidos. Porquanto, os médicos já a haviam desenganado. Se eu não visse nesses oficiais da saúde os escrutadores da vida e da morte, podia torcer a pena, e, contra a predição científica, fazer escapar Natividade. Cometeria uma ação fácil e reles, além de mentirosa. Não, senhor, ela morreu sem falta, poucas semanas depois daquela sessão da Câmara. Morreu de tifo.
Tão secreta foi a conferência dela e dos filhos que estes não quiseram contá-la a ninguém, salvo ao conselheiro Aires, que a adivinhou em parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silêncio.
- Não juraram calar?
- Positivamente, não - disse um.
- Juramos só o que ela nos pediu - explicou o outro.
- Pois então podem contá-lo a mim. Eu serei discreto como um túmulo.
Aires sabia que os túmulos não são discretos. Se não dizem nada, é porque diriam sempre a mesma história; daí a fama de discrição. Não é virtude, é falta de novidade.
Ora, o que a mãe fez, quando eles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe estendessem a destra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos acesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e único. Eles iam chorando e calando, porventura adivinhando o favor.
- Um favor derradeiro - insistiu ela.
- Diga, mamãe.
- Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação também, e a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer, paciência. Eu é que quero saber que não deixo dous ingratos. Anda, Pedro, anda, Paulo, jurem que serão amigos.
Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu trêmula, mas clara e forte:
- Juro, mamãe!
- Juro, mamãe!
- Amigos para todo sempre?
- Sim.
- Não quero outras saudades. Estas somente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.
Natividade ainda conservou as mãos deles presas, sentiu-as trêmulas de comoção, e esteve calada alguns instantes.
- Posso morrer tranquila.
- Não, mamãe não morre - interromperam ambos.
Parece que a mãe quis sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca não respondeu à intenção, antes fez um trejeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir à esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia começou logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem havido no mundo, quantos séculos farão? Desses, terão sido tenebrosos alguns, outros, melancólicos, muitos, desesperados, raros, enfadonhos. Enfim, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silêncio.