Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

CVI

AMBOS QUAIS?

Ficamos no ponto em que uma das janelas do quarto aumentou a dose de luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; também podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velho, se não de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quase infinito. Já pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da derradeira amiga espiar da porta entreaberta, voltava o seu para outro lado e engrolava uma cantiga da infância, para enganá-la e viver.

Flora não recorria a tais cantigas, aliás tão próximas. Quando via o céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez quis desenhar, mas não lho consentiram. Se a morte a espiava da porta, tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abri-los fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ela.

- Você amanhã está pronta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para Petrópolis - disse Natividade disfarçando as lágrimas, mas a voz fazia o ofício dos olhos.

- Petrópolis? - suspirou a doente.

- Lá terá muito que desenhar.

Eram sete horas da manhã. Na véspera, quando os gêmeos saíram de lá, já tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso que a realidade venha atrás deles; daí as esperanças. Também não bastam esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe algum sossego; às sete horas, depois daquelas palavras de Natividade, Flora pôde dormir.

Quando Pedro e Paulo voltaram a Andaraí, a enferma estava acordada, e o médico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer aplicações, que declarou enérgicas. Todos tinham sinais de lágrimas. De noite, Aires apareceu trazendo notícias de agitação na cidade.

- Que é?

- Não sei; uns falam de manifestações ao marechal Deodoro, outros de conspiração contra o marechal Floriano. Há alguma cousa.

Natividade pediu aos filhos que se não metessem em barulhos; ambos prometeram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas, grupos, patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamarati iluminado, tiveram a curiosidade de saber o que houve e havia; vaga sugestão, que não durou dous minutos. Correram a meter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na manhã seguinte os criados levaram os jornais com as notícias da véspera.

- Veio algum recado de Andaraí? - perguntou um.

- Não, senhor.

Ainda quiseram ler, por alto, alguma cousa. Não puderam; estavam ansiosos de sair de casa e saber notícias da noite. Posto levassem os jornais consigo, não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de pessoas presas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso tudo, que deram por si na casa de D. Rita, antes de entender o que houvera. Flora ainda vivia.

- Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias.

- Não fales tanto, minha filha - acudiu D. Cláudia -. Triste estou sempre que adoeces. Fica boa e verás.

- Fica, fica boa - interveio Natividade -. Eu, em moça, tive uma doença igual que me prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando já ninguém esperava.

- Então já não esperam que me levante?

Natividade quis rir da conclusão tão pronta, com o fim de a animar. A doente fechou os olhos, abriu-os daí a pouco, e pediu que vissem se estava com febre. Viram; tinha, tinha muita.

- Abram-me a janela toda.

- Não sei se fará bem - ponderou D. Rita.

- Mal não faz - disse Natividade.

E foi abrir, não toda, mas metade da janela. Flora, posto que já mui caída, fez esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição ficou sem dar de si; os olhos, a princípio vagos, entraram a parar, até que ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, trazendo recados e levando-os; fora, espreitavam o médico.

- Demora-se; já devia cá estar - dizia Batista.

Pedro era médico, propôs-se a ir ver a enferma; Paulo, não podendo entrar também, ponderou que seria desagradável ao médico assistente; além disso, faltava-lhe prática. Um e outro queriam assistir ao passamento de Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu à sala, e, sabendo o que era, respondeu negativamente. Não podiam entrar; era melhor que fossem chamar o médico.

- Quem é? - perguntou Flora, ao vê-la tornar ao quarto.

- São os meus filhos, que queriam entrar ambos.

- Ambos quais? - perguntou Flora.

Esta palavra fez crer que era o delírio que começava, se não é que acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade ia pelo delírio. Aires, quando lhe repetiram o diálogo, rejeitou o delírio.

A morte não tardou. Veio mais depressa do que se receava agora. Todas e o pai acudiram a rodear o leito, onde os sinais da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rápidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de defunta que de escultura. As janelas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o céu.

CVII

ESTADO DE SÍTIO

Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por setenta e duas horas. Ao cabo de setenta e duas horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria cometido aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sem pena, e ainda trago o enterro à vista...

CVIII

VELHAS CERIMÔNIAS

Aqui vai a sair o caixão. Todos tiram o chapéu, logo que ele assoma à porta. Gente que passa, para. Das janelas debruça-se a vizinhança, em algumas atopeta-se, por serem as famílias maiores que o espaço; às portas, os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas alças do caixão, Batista, Santos, Aires, Pedro, Paulo, Nóbrega.

Este, posto já não frequentasse a casa, mandara saber da enferma, e foi convidado a carregar o gracioso corpo. No carro, em que levava o secretário, e era puxado pela mais bela parelha do préstito, quase única, lembrava Nóbrega ao secretário:

- Não lhe dizia eu que ela era doente? Era muito doente.

- Muito.

Não vou ao ponto de afirmar que teve prazer com a morte de Flora, só por havê-lo feito acertar na notícia da doença, estando ela perfeitamente sã. Mas que ninguém fosse seu marido, foi uma espécie de consolação. Houve mais; supondo que ela o tivesse aceitado e casassem, pensava agora no esplêndido enterro que lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavalos e as suas plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, à força de compor, cuidava feitas. Depois o túmulo; mármore, letras de ouro... O secretário, para o arrancar à tristeza, falava dos objetos da rua.

- V. Exa. lembra-se do chafariz que havia aqui há anos?

- Não - resmungava Nóbrega.

Ainda uma vez, não há novidade nos enterros. Daí o provável tédio dos coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os de Hamlet, que temperam as tristezas do ofício com as trovas do mesmo ofício. Trazem o caixão da cal e a colher para os convidados, e para si as pás com que deitam a terra para dentro da cova. O pai e alguns amigos ficaram ao pé da cova de Flora, a ver cair a terra, a princípio com aquele baque soturno, depois com aquele vagar cansativo, por mais que os pobres homens se apressem. Enfim, caiu toda a terra, e eles puseram em cima as grinaldas dos pais e dos amigos: "À nossa querida filha"; - "À nossa santa amiguinha Flora a saudosa amiga Natividade"; - "A Flora, um amigo velho", etc. Tudo feito, vieram saindo; o pai, entre Aires e Santos, que lhe davam o braço, cambaleava. Ao portão, foram tomando os carros e partindo. Não deram pela falta de Pedro e Paulo, que ficaram ao pé da cova.

CIX

AO PÉ DA COVA

Nenhum deles contou o tempo gasto naquele lugar. Sabem só que foi de silêncio, de contemplação e de saudade. Não digo, para os não vexar agora, mas é possível que chorassem também. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços caídos, as mãos prendendo o chapéu, olhavam aparentemente para as flores que cobriam a sepultura, mas na realidade, para a criatura que lá estava embaixo.

Enfim, cuidaram de arrancar-se dali, e despedir-se da defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria igual. Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a ideia de um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram à palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação perpétua.

- Ela nos separou - disse Pedro -; agora, que desapareceu, que nos una.

Paulo confirmou de cabeça.

- Talvez morresse para isso mesmo - acrescentou.

Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam ênfase ou afetação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora decerto os viu, ouviu e inscreveu aquela promessa de reconciliação nas tábuas da eternidade. Ambos, por um impulso comum, voltaram os olhos para ver ainda uma vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes sepulcros, cruzes, colunas, um mundo inteiro de gente passada, quase esquecida. O cemitério tinha um ar meio alegre, com todas aquelas grinaldas de flores, baixos-relevos, bustos, e a cor branca dos mármores e da cal. Comparado à cova recente, parecia um renascimento de vida, que ficou deslembrada a um canto da cidade.

Custou-lhes sair do cemitério. Não supunham estar tão presos à defunta. Cada um deles ouvia a mesma voz, com igual doçura e palavras especiais. Tinham chegado ao portão e o carro veio buscá-los. A cara do cocheiro era radiosa.

Não se explica esta expressão do cocheiro, senão porque, inquieto da demora, não cuidando que os dous fregueses ficassem tanto tempo ao pé da cova, entrara a recear que tivessem aceitado o convite de algum amigo e voltado para casa. Tinha já resolvido esperar poucos minutos mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dor e o amor; digamos, gêmea.

CX

QUE VOA

Assim como o carro veio voando do cemitério, assim voará este capítulo destinado a dizer primeiro que a mãe dos gêmeos conseguiu levá-los para Petrópolis. Já não alegaram a clínica da Santa Casa nem os documentos da Biblioteca Nacional. Clínica e documentos repousam agora na cova no... Não ponho o número, para que algum curioso, se achar este livro na dita Biblioteca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto. Basta o nome da defunta, que lá ficou dito e redito.

Voe este capítulo, como o trem de Mauá, serra acima, até à cidade do repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e Aires, com os três. Em cima, à noite, voltando este à casa do barão, pôde ver os efeitos da paz jurada, a conciliação final. Não sabia nada do pacto dos dous moços. Pai nem mãe sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo guardado no silêncio e no desejo sincero de comemorar uma criatura que os ligara, morrendo.

Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, ou guardava-os para si, a fim de os gostar mais deliciosamente, de os aprovar por atos, de auxiliar a obra corretiva do tempo. Notícias e boatos do Rio de Janeiro eram objeto de conversação nas casas a que eles iam, sem os convidar a sair da abstenção voluntária. As recreações pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a cavalo, e outras diversões os traziam unidos.

Assim chegaram ao tempo em que a família Santos desceu, ainda que a contragosto de Natividade. Ela temia que, mais perto do governo, a discórdia política acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas não podia lá ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus velhos hábitos, e deu algumas razões boas, que Natividade ouviu depois ao próprio Aires. Podia ser um encontro de ideias, mas se estas eram boas, deviam ser aceitas.

Natividade confiava ao tempo a perfeição da obra. Cria no tempo. Eu, em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e foice na mão, que me metia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, segundo for o sexo da pessoa que me lê, se não forem duas, e os sexos ambos - um casal de noivos, por exemplo - curiosos de saber como é que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo Credo... Não falemos desse mistério... Contenta-te de saber que eles tinham em mente cumprir o juramento daquele lugar e ocasião. O tempo trouxe o fim da estação, como nos outros anos, e Petrópolis deixou Petrópolis.

CXI

UM RESUMO DE ESPERANÇAS

"Quando um não quer, dous não brigam", tal é o velho provérbio que ouvi em rapaz, a melhor idade para ouvir provérbios. Na idade madura eles devem já fazer parte da bagagem da vida, frutos da experiência antiga e comum. Eu cria neste; mas não foi ele que me deu a resolução de não brigar nunca. Foi por achá-lo em mim que lhe dei crédito. Ainda que não existisse, era a mesma cousa. Quanto ao modo de não querer, não respondo, não sei. Ninguém me constrangia. Todos os temperamentos iam comigo; poucas divergências tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapéu. Um deles pediu-me perdão no testamento.

No caso dos gêmeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes ouvir uma voz de fora ou do alto que lhes pedia constantemente a paz. Força maior, portanto, e troca de fórmula: "Se nenhum quer, nenhum briga".

Naturalmente os atos do governo eram aprovados e desaprovados, mas a certeza de que podia acender-lhes novamente os ódios fazia com que as opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoais. Não pensavam nada à vista um do outro. Divergências de teatro ou de rua eram sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silêncio. Não doeria tanto a Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma cousa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da mãe era a paga de ambos.

A carreira diferente ia separá-los depressa, conquanto a residência comum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses do ofício serviriam a este efeito, as relações pessoais também, e afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as esperanças de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugais; os rapazes, porém, não pareciam inclinados a elas, e a mãe, quem lhe apalpasse o coração sentiria já um antecipado ciúme das noras.

CXII

O PRIMEIRO MÊS

Na véspera do dia em que se completou o primeiro mês da morte de Flora, Pedro teve uma ideia, que não comunicou ao irmão. Não perderia nada em fazê-lo, porque Paulo teve a mesma ideia, e também a calou. Dela nasce este capítulo.

A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa, antes das sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora, adivinhas que ambos foram ao cemitério; não adivinhas, nem é fácil adivinhar que cada um deles levava uma grinalda. Não digo que fossem das mesmas flores, não só para respeitar a verdade, senão também para afastar qualquer ideia intencional de simetria na ação e no acaso. Uma era de miosótis, outra, creio que de perpétuas. Qual fosse a de um, qual a do outro, não se sabe nem interessa à narração. Nenhuma tinha letreiro.

Quando Paulo chegou ao cemitério, e viu de longe o irmão, teve a sensação de pessoa roubada. Cuidava ser único e era último. A presunção, porém, de que Pedro não levara nada, uma folha sequer, consolou-o da antecipação da visita. Esperou alguns instantes; advertindo que podia ser visto, desviou-se do caminho, meteu-se por entre as sepulturas, até ir colocar-se atrás daquela. Aí esperou cerca de um quarto de hora. Pedro não se queria arrancar dali; parecia falar e escutar. Enfim, despediu-se e desceu.

Paulo, vagarosamente, caminhou para a sepultura. Indo a depositar a grinalda, viu ali outra posta de fresco, e entendendo que era do irmão, teve ímpeto de ir atrás dele e pedir-lhe contas da lembrança e da visita. Não lhe leves a mal o ímpeto; passou imediatamente. O que ele fez foi colocar a coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça.

Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente pararia um instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar à moça enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo lugar que ele, os olhos no chão, teve também o seu impulso de ir buscá-lo e trazê-lo daquela cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os gestos de piedade, quaisquer que fossem, ele os deu primeiro à querida comum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvi-la, gemer com ela a separação eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se dela mais cedo.

Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saísse atrás dele, e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo lugar, e receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direção do portão, estacou, recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos dele, ver se rezava, se se benzia, para desmenti-lo quando lhe ouvisse mofar das cerimônias eclesiásticas. Logo sentiu que era um erro; não iria confessar a ninguém que o vira rezando ao pé da cova de Flora. Ao contrário, era capaz de o desmentir - ou, quando menos, fazer um gesto de incredulidade...

Enquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça, desfazendo-se umas às outras, discursando sem palavras, aceitando, repelindo, esperando, os olhos não se retiravam do irmão, nem este, da sepultura. Paulo não fazia gesto, não mexia os lábios, tinha os braços cruzados, o chapéu na mão. Não obstante, podia estar rezando. Também podia falar calado, para a sombra ou para a memória da defunta. A verdade é que não saiu do lugar. Então Pedro viu que a conversação, evocação, adoração, o que quer que fosse que atava Paulo à sepultura, vinha sendo muito mais demorado que as suas orações. Não marcara o seu tempo, mas evidentemente o de Paulo era já maior. Descontando a impaciência, que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que Paulo gastava mais saudades que ele. Deste modo, ganhava na extensão da visita o que perdera na chegada ao cemitério. Pedro, à sua vez, achou-se roubado.

Quis sair; mas, uma força, que ele não sabia explicar, não lhe consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gêmeo. A custo, pôde enfim trazer a estes e fazê-los andar de volta pelas outras campas, onde leu alguns epitáfios. Um de 1865 não se podia ler bem se era tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar já apagado o adjetivo. Tributo era, tinha a fórmula adotada pelos marmoristas, para poupar estilo aos fregueses. Notando que o adjetivo estava comido do tempo, Pedro disse consigo que o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir.

Pensou outras cousas com que foi disfarçando a humilhação. Fizera tudo às carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora à espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este não arredava pé. Enfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para rodeá-la, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o melhor lugar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo.

Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as maldições de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o mesmo, amigo leitor; foi tornar à sepultura e emendar ao tempo gasto anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns minutos, até que saiu, sem achar sombra de Paulo.

CXIII

UMA BEATRIZ PARA DOUS

Flora, se visse os gestos de ambos, é provável que descesse do céu, e buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade de tornar cá, para servir de madrinha a um duelo que deixara em meio.

Quanto a este, se ia continuar, não era pela mesma injúria. Não esqueças que foi ao pé daquela mesma campa que os dous fizeram as pazes eternas, e, posto não lhas desfizesse a campa, é certo que acendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-ás, e com aparência de razão, que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se ali descesse em espírito! Puro engano, amigo. No começo, ao menos, eles jurariam o que ela mandasse.

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