Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

LXXIII

UM ELDORADO

No cais Pharoux esperavam por eles três carruagens - dous coupés e um landau, com três belas parelhas de cavalos. A gente Batista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas três se puseram a andar, estas atrás daquela, os animais batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo.

A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.

Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que Basílio da Gama cantou no Uruguai. Voltaire pegou dele para o meter no seu livro, e a ironia do filósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José Basílio! Tinhas contra ti o assunto estreito e a língua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindoia, felizmente, mas Cacambo é dele, mais dele que teu, patrício da minha alma.

Cândido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no Eldorado, conta Voltaire que viram crianças brincando na rua com rodelas de ouro, esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que comeram quiseram pagar o jantar com duas delas. Sabes que o dono da casa riu às bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, já porque ali ninguém pagava o que comia; era o governo que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade atribuída ao Estado, que fez crer iguais fenômenos entre nós, mas é tudo mentira.

O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão. Às tardes, quando uma centena delas se ia enfileirar no largo de São Francisco de Paula, à espera das pessoas, era um gosto subir a rua do Ouvidor, parar e contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos à gente; todas pareciam descer das rapsódias de Homero, posto fossem corcéis de paz. As carruagens também. Juno certamente as aparelhara com suas correias de ouro, freios de ouro, rédeas de ouro, tudo de ouro incorruptível. Mas nem ela nem Minerva entravam nos veículos de ouro para os fins da guerra contra Ílion. Tudo ali respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tesos e compostos, davam uma bela ideia do ofício. Nenhum aguardava o patrão, deitado no interior dos carros, com as pernas de fora. A impressão que davam era de uma disciplina rígida e elegante, aprendida em alta escola e conservada pela dignidade do indivíduo.

"Casos há" - escrevia o nosso Aires - "em que a impassibilidade do cocheiro na boleia contrasta com a agitação do dono no interior carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastio, trepou à boleia e leva o cocheiro a passear."

LXXIV

A ALUSÃO DO TEXTO

Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Aires não se referia vagamente ou de modo genérico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa particular. Chamava-se então Nóbrega; outrora não se chamava nada, era aquele simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpétua na rua de São José, esquina da da Misericórdia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota de dous mil-réis à bacia do andador. A nota era nova e bela; passou da bacia à algibeira, no fundo de um corredor, não sem algum combate.

Poucos meses depois, Nóbrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros purgatórios, para os quais achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se também o país. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Enfim, alvoreceu a famosa quadra do "encilhamento". Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande esmola, o grande purgatório. Quem já sabia do andador das almas? A antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Ele era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando.

Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possível. Foi por esse tempo que Aires o viu de carro, quase a sair pela portinhola fora, cumprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio que eram escoceses) salvassem a dignidade pessoal da casa, Aires fez a observação do fim do outro capítulo, sem nenhuma intenção geral.

Posto não achasse já nenhum conhecido antigo, Nóbrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andara a pedir para as primeiras almas. Um dia, porém, tais foram as saudades dele que pensou em afrontar o perigo e lá foi. Tinha cócegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde apareciam tais e tais moças... Quando ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou por outra parte. Só passava de carro; depois quis ver tudo a pé, devagar, parando, se fosse possível, e revivendo o extinto.

Lá se foi a pé; desceu pela rua de São José, dobrou a da Misericórdia, foi parar à praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D. Manuel, enfiou de beco em beco. A princípio olhava de esguelha, rápido, os olhos no chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma. Nóbrega foi-se animando e encarando. Talvez esta velha fosse moça, há vinte anos; a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra criança. Nóbrega acabou parando e andando devagar.

Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam reconhecê-lo, e algumas quase que lhe falavam. Não é poesia. O ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar delas, contar-lhes a vida, obrigá-las a comparar o modesto de outrora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: "Vejam, manas, é ele mesmo". Passava por elas, fitava-as, interrogava-as, quase ria, quase as tocava para sacudi-las com força: "Falem, diabos, falem!"

Não confiaria de homem aquele passado, mas às paredes mudas, às grades velhas, às portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quisera dar olhos, ouvidos e boca, uma boca que só ele escutasse, e que proclamasse a prosperidade daquele velho andador.

Uma vez, viu a matriz de São José aberta e entrou. A igreja era a mesma; aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silêncio. Persignou-se, mas não orou; olhava só a um lado e outro, andando na direção do altar-mor. Tinha receio de ver aparecer o sacristão, podia ser o mesmo, e conhecê-lo. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.

Ao subir pela rua de São José, encostou-se à parede, para deixar passar uma carroça. A carroça subiu a calçada, ele refugiou-se num corredor. O corredor podia ser qualquer; aquele era o próprio em que ele fez a operação da nota de dous mil-réis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao fundo estavam os três ou quatro degraus da primeira escada que dobrava à esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu por um instante aquela manhã, viu no ar a nota de dous mil-réis. Outras lhe teriam vindo às mãos por maneiras assim fáceis, mas nunca lhe esqueceu aquela graciosa folha gravada com tantos símbolos, números, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe Deus se a própria Santa Rita de Cássia. Era a sua particular devoção. Sem dúvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não foram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.

Por mais que ele olhasse pela vida dentro, não achava igual obséquio do céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou ganhara com que o comprar. A nota de dous mil-réis... Um dia, ousando mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor.

Não, leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que a princípio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: "Aquelas duas viram passarinho verde!" Mas se agora atribuía a nota à proteção da santa, não mentia então nem agora. Era difícil atinar com a verdade. A única verdade certa eram os dous mil-réis. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil-réis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gorjeta de cocheiro.

Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada outrora. Era mais natural o contrário, quando era maior a intimidade dele com igreja. Mas, leitor dos meus pecados, amava-se muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O século dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do andador das almas acerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando ele agasalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.

LXXV

PROVÉRBIO ERRADO

Pessoa a quem li confidencialmente o capítulo passado, escreve-me dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castelo. Sem as suas predições grandiosas, a esmola de Natividade seria mínima ou nenhuma, e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. "A ocasião faz o ladrão", conclui o meu correspondente.

Não conclui mal. Há todavia alguma injustiça ou esquecimento, porque as razões do gesto do corredor foram todas pias. Além disso, o provérbio pode estar errado. Uma das afirmações de Aires, que também gostava de estudar adágios, é que esse não estava certo.

- Não é a ocasião que faz o ladrão - dizia ele a alguém -, o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: "A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito".

LXXVI

TALVEZ FOSSE A MESMA!

Nóbrega saiu enfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma mulher lhe estendia a mão:

- Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus!

Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dous que lá havia, um de tostão, outro de dous. Pegou o primeiro, mas indo a dar-lho, mudou de ideia; não deu o níquel; disse à velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão na algibeira das calças e sacou um maço de dinheiro; procurou e achou uma nota de dous mil-réis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga, que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.

- Tome lá - murmurou ele.

Quando a mendiga voltou do espanto, Nóbrega acabava de restituir o maço à algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse veio entremeado de lágrimas:

- Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem Santíssima...

E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas ele a escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quase místico, uma espécie de melodia do céu, um coro de anjos, e fazia bem fitar-lhe os olhos encarquilhados, a mão trêmula, segurando a nota. Nóbrega não esperou que ela se fosse, saiu, desceu a rua, com as bênçãos da mulher atrás de si; dobrou a esquina, a passo rápido, e aí foi pensando não se sabe em quê.

Atravessou a praça, passou a catedral e a igreja do Carmo, e chegou ao Carceller, onde entregou as botas a um italiano para que lhas engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para esquerda - em todo caso para longe -, e acabou murmurando esta frase, que tanto podia referir-se à nota como à mendiga, mas provavelmente era à nota:

- Talvez fosse a mesma!

Nenhum obséquio, por ínfimo que seja, esquece ao beneficiado. Há exceções. Também há casos em que a memória dos obséquios aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardá-los na memória, como as joias nos seus escrínios; comparação justa, porque o obséquio é muita vez alguma joia, que o obsequiado esqueceu de restituir.

LXXVII

HOSPEDAGEM

A família Batista foi aposentada em casa de Santos. Natividade não pôde ir a bordo, e o marido estava ocupado em "lançar uma companhia"; mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha já os quartos preparados. Desde que o carro se pôs a andar, Batista confessou que ia ficar constrangido por alguns dias.

- Numa casa de pensão era melhor, até que nos despejassem a de São Clemente.

- Que queria você? Não havia remédio senão aceitar - ponderou a mulher.

Flora não disse nada, mas sentia o contrário do pai e da mãe. Pensar, não pensou; ia tão atordoada com a vista dos rapazes que as ideias não se enfileiraram naquela forma lógica do pensamento. A própria sensação não era nítida. Era uma mistura de opressivo e delicioso, de turvo e claro, uma felicidade truncada, uma aflição consoladora, e o mais que puderes achar no capítulo das contradições. Eu nada mais lhe ponho. Nem ela saberia dizer o que sentia. Teve alucinações extraordinárias.

Agora o que é mister dizer é que a ideia da hospedagem cabe toda aos dous jovens doutores. Que eles eram já doutores, posto não houvessem ainda encetado a carreira de advogado nem de médico. Viviam do amor da mãe e da bolsa do pai, inesgotáveis ambos. O pai abanou as orelhas à lembrança, mas os gêmeos insistiram pelo obséquio, a tal ponto que a mãe, contente de os ver de acordo, saiu do silêncio e concordou com eles. A ideia de ter a pequena ao pé de si, por alguns dias, e discernir qual era o melhor aceito, e o que deveras a amava, pode ser que também influísse na adoção do voto, mas não afirmo nada a tal respeito. Também não asseguro que tivesse grande gosto em agasalhar a mãe e o pai de Flora. Não obstante, o encontro foi cordial de parte a parte. Foi um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que não acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra cor, outro ar. Flora era um encanto para Natividade e Perpétua; nenhuma destas sabia aonde iria parar aquela moça tão senhoril, tão esbelta, tão...

- Não digam o resto - interrompeu a moça sorrindo -; eu tenho a mesma opinião.

Santos recebeu-os, à tarde, com a mesma cordialidade - talvez menos aparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negócios.

- Uma ideia sublime - disse ele ao pai de Flora -; a que lancei hoje foi das melhores, e as ações valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, e começa pela criação deste mamífero nos campos do Paraná. Em cinco anos poderemos vestir a América e a Europa. Viu o programa nos jornais?

- Não, não leio jornais daqui desde que embarquei.

- Pois verá!

No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hóspede o programa e os estatutos. As ações eram maços e maços, e Santos ia dizendo o valor de cada um. Batista somava mal, em regra; daquela vez, pior. Mas os algarismos cresciam à vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o chão até às janelas, e precipitavam-se por elas abaixo, com um rumor de ouro que ensurdecia. Batista saiu dali fascinado, e foi repetir tudo à mulher.

LXXVIII

VISITA AO MARECHAL

D. Cláudia, quando ele acabou, perguntou-lhe com simplicidade:

- Você vai hoje ao marechal?

Batista, caindo em si:

- Naturalmente.

Tinham ajustado que ele iria ter com o presidente da República explicar-lhe a comissão que exercera, toda reservada, e, sem embargo, imparcial. Diria o espírito de concórdia com que andou e a estima que adquiriu. Em seguida, falaria da conveniência de um governo que, pela fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalíssimo; e uma frase final bem estudada.

- Isso na ocasião - disse Batista.

- Não, é melhor levá-la feita. Eu lembrei-me desta: "Creia V. Exa. que Deus está com os fortes e os bons".

- Sim, não é má. Você pode acrescentar um gesto que indique o céu.

- Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não sou ator. Eu, sem mexer um pé, inspiro respeito.

D. Cláudia dispensou o gesto; não era essencial. Quis que ele escrevesse a frase, mas já estava de cor. Batista tinha boa memória.

Naquele mesmo dia, Batista foi ao marechal Floriano. Não disse nada às pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Cláudia também calou, era por pouco tempo; ficou esperando ansiosa. Esperou duas mortais horas, chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por intrigas. Não era devota, mas o medo inspira devoção, e ela rezou consigo. Enfim, chegou Batista. Ela correu a recebê-lo, alvoroçada, pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto. Perpétua (vede o que são testemunhos pessoais na história!) exclamou enternecida:

- Parecem dous pombinhos!

Batista contou que a recepção foi melhor do que esperava, conquanto o marechal não lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A frase? A frase saiu bem, apenas com uma emenda. Não estando certo se ele preferia bons a fortes, ou se fortes a bons...

- Deviam ser as duas palavras - interrompeu a mulher.

- Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: "Creia V. Exa. que Deus está com os dignos!"

Com efeito, a última palavra podia abranger as duas, e trazia esta vantagem de dar à frase um arranjo pessoal dele.

- Mas o marechal que disse?

- Não disse nada, ouviu-me com atenção obsequiosa e chegou a sorrir - um sorriso leve, um sorriso de acordo...

- Ou seria... Quem sabe... Você não andou bem, decerto. Comigo ele diria alguma cousa. Você expôs tudo, conforme tínhamos combinado?

- Tudo.

- Expôs as razões da comissão, o desempenho, a nossa moderação...?

- Tudo, Cláudia.

- E o aperto de mão do marechal?

- Não estendeu a mão, a princípio; fez um gesto de cabeça; eu é que estendi a minha, dizendo: Sempre às ordens de V. Exa.

- E ele?

- Ele apertou-me a mão.

- Apertou bem?

- Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter sido cordial.

- E nenhuma palavra? Um passe bem, ao menos?

- Não, nem era preciso. Cortejei-o e saí.

D. Cláudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que fosse má, mas podia ser melhor. Com ela, seria muito melhor.

LXXIX

FUSÃO, DIFUSÃO, CONFUSÃO...

Atrás falei das alucinações de Flora. Realmente, eram extraordinárias.

Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os gêmeos separados e sós, cada um no seu coupé, cismou que os ouvia falar; primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dous moços uma pessoa única.

Este fenômeno não creio que possa ser comum. Ao contrário, não faltará quem absolutamente me não creia, e suponha invenção pura o que é verdade puríssima. Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura. E agora, na casa de Botafogo, repetia-se o fenômeno. Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinárias.

Tudo isto não é menos extraordinário, concordo. Se eu consultasse o meu gosto, nem os dous rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse efeito de visão repetia-se ao pé deles, tal qual na ausência, quando ela se deixava esquecer do lugar, e soltava a rédea a si mesma. Ao piano, à palestra, ao passeio na chácara, à mesa de jantar, tinha dessas visões repentinas e breves, e das quais ela mesma sorria, a princípio.

Se alguém quiser explicar este fenômeno pela lei da hereditariedade, supondo que ele era a forma afetiva da variação política da mãe de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguém. São cousas diversas. Conheceis os motivos de D. Cláudia; a filha teria outros que ela própria não sabia. O único ponto de semelhança é que, tanto na mãe como na filha, o fenômeno era agora mais frequente, mas em relação à primeira vinha do atropelo dos acontecimentos exteriores. Nenhuma revolução se faz como a simples passagem de uma sala a outra; as mesmas revoluções chamadas de palácio trazem alguma agitação que fica por certo prazo, até que a água volte ao nível. D. Cláudia cedia à inquietação dos tempos.

A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se não podia descobrir logo, nem sequer entender. Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro, em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis, o dobrado ficava único, o único, desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão...

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