Esaú e Jacó
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.
Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.
A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)
Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."
Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.
Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.
A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."
A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.
Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
LXX
DE UMA CONCLUSÃO ERRADA
Os sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam nascendo. Destas houve que serviram ao último baile do ano. Outras morreram na véspera. Poetas de um e outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus suspiros, enquanto a primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, igual e regularmente.
D. Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro da República, e adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de família antes de tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também lá foi Paulo, pela moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de província, disse todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu palavras de acordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moça o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.
Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí a ausência de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo.
- Por que é que seu irmão não veio? - perguntou ela.
Paulo enfiou; depois de alguns instantes:
- Pedro é teimoso - disse -. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunático.
- Não diga isso.
- Acha também que a dança se foi com o Império?
- Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.
- Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo?
- Certamente, como o senhor.
- Mas...
Paulo ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou do calor, e ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de aceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas ideias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo à moça, e ela escutava com prazer, sem opinião; era só o gosto de o escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim, acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as suas gêmeas que eram.
O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era... Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e concluis mal.
Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício. A namoradeira de ofício é a planta das esperanças, e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a ocasião o permite. Também é preciso ter em lembrança aquilo de um publicista, filho de Minas e do outro século, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversários: "Pitangueira não dá manga".
Não, Flora não dava para namorados.
A prova disto é que no estado em que viveu alguns meses de 1891, com o pai e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as cores, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.
Flora só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a esqueceu, ela não os perdeu de memória. Ao contrário, escrevia por todos os correios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gêmeos lia para si. Também eles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Cláudia e a Batista, com a mesma intenção duplicada e misteriosa, que ela entendia muito bem.
Tais eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ela e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes, durante e depois da comissão do Batista.
LXXI
A COMISSÃO
Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai, e da qual não sei nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão do inferno. O pai, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela; verbalmente, desmentia a definição.
- Não digas isso, Flora; é comissão de confiança para fins nobremente políticos.
Creio que sim, mas daí a saber o objeto especial e real, ia largo espaço. Também não se sabe como foi parar às mãos de Batista aquele recado do governo. Sabe-se que ele não desprezou a escolha, quando um amigo íntimo correu a chamá-lo ao palácio do generalíssimo. Viu que era reconhecer nele muita finura e capacidade de trabalho. Não é menos certo, porém, que a comissão entrava a aborrecê-lo, posto que na correspondência oficial dissesse exatamente o contrário. Se tais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Batista, cujas instruções eram, aliás, de concórdia, parecia querer levar a concórdia a ferro e fogo; mas o estilo não é o homem. O coração de Batista fechava-se, quando ele escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração apertada... "Já é tempo", suspirava o músculo, "já é tempo de um lugar de governador."
Quanto a D. Cláudia, não queria ver acabada a comissão, que restituía ao esposo a ação política; faltava-lhe somente uma cousa, oposição. Nenhum jornal dizia mal dele. Aquele prazer de ler todas as manhãs as descomposturas dos adversários, lê-las e relê-las com os seus nomes feios, como látegos de muitas pontas, que lhe rasgavam as carnes e a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a comissão reservada. Ao contrário, havia uma espécie de aposta em achar o comissário justo, equitativo e conciliador, digno de admiração, tipo cívico, caráter sem mácula. Tudo isto ela conheceu outrora, mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos e calúnias. Sem eles, era água insossa. Também não tinha aquela parte de cerimônias a que obrigava o sumo cargo, mas não lhe faltavam atenções, e era alguma cousa.
LXXII
O REGRESSO
Quando o marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de novembro, Batista recordou o tempo dos manifestos liberais, e quis fazer um. Chegou a principiá-lo, em segredo, empregando as belas frases que trazia de cor, citações latinas, duas ou três apóstrofes. D. Cláudia reteve-o à beira do abismo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um benefício. Serve-se muita vez a liberdade parecendo sufocá-la. Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciais. A palavra do generalíssimo, como a sua espada, bastava a defender e consumar a obra principiada. D. Cláudia não tinha estilo próprio, mas sabia comunicar o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Batista, depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no ombro imperativamente:
- Tens razão, filha.
Não rasgou o papel escrito; queria guardá-lo como simples lembrança, e a prova é que ia escrever uma carta ao presidente. D. Cláudia também lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o seu sufrágio; bastava conservar-se na comissão.
- O governo não está satisfeito com você?
- Está.
- Vendo que você se conserva, conclui que aprova tudo, e basta.
- Sim, Cláudia - concordou ele após alguns instantes -. Ao contrário, qualquer cousa que escrevesse contra a assembleia sediciosa que o presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos mortos! Tens razão, filha.
Conservou-se calado, operando, fiel às instruções recebidas. Vinte dias depois, o marechal Deodoro passava o governo às mãos do marechal Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3, anulados.
Ao saber de tais fatos, Batista pensou morrer. Ficou sem fala por alguns instantes, e D. Cláudia não achou a menor parcela de ânimo que lhe desse. Nenhum contara com a marcha rápida dos acontecimentos, uns sobre outros, com tal atropelo que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e sossego, esperanças e grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha.
Agora é que Batista compreendeu o erro de haver dado ouvidos à esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria com um documento de resistência na mão para reivindicar um posto de honra qualquer - ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimi-lo, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como este: "O dia da opressão é a véspera da liberdade". Citava a bela Roland caminhando para a guilhotina: "Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!" D. Cláudia fez-lhe ver que era tarde, e ele concordou.
- Sim, é tarde. Naquele dia é que não era tarde, vinha à hora própria, para o efeito certo.
Batista amarrotou o papel distraidamente; depois alisou-o e guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciência, profundo e sincero. Não devia ter cedido; a resistência era o melhor; se tem resistido às palavras da mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atrás o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que ulteriormente sucedeu; a consciência dizia-lhe que, em situação idêntica à do dia 3, faria outra cousa... Oh! Com certeza! Faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino.
Um ofício ou telegrama veio arrancar Batista à comissão política e reservada. A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os epítetos que o haviam regalado por alguns meses, nem acompanhamento de amigos. Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites pela terminação daquele exílio.
- Parece que estás contente com o desastre de teu pai - disse-lhe a mãe já a bordo.
- Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canseira. Papai pode muito bem fazer política no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado. A senhora verá. Eu, se fosse papai, apenas desembarcasse, ia logo ao marechal explicar tudo, mostrar as instruções e dizer o que tinha feito; dizia mais, que a dispensa veio muito a propósito, a fim de não parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo...
D. Cláudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha pensava e dava conselhos em política. Não advertiu, como fez o leitor, que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembleia legislativa, como no Rio Grande do Sul; mas a qual das câmaras, Pedro ou Paulo, caberia esse único poder político? Eis o que ela mesma não sabia.
Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no porto do Rio de Janeiro. Não foram em duas lanchas, foram na mesma, e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capítulo, porque a razão da presteza com que eles saltaram para a escada foi a ambição de ser o primeiro que cumprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os igualou na alma dela. Enfim chegaram, e não consta qual efetivamente a cumprimentou primeiro; pode ser que ambos.
LXXIII
UM ELDORADO
No cais Pharoux esperavam por eles três carruagens - dous coupés e um landau, com três belas parelhas de cavalos. A gente Batista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas três se puseram a andar, estas atrás daquela, os animais batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo.
A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.
Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que Basílio da Gama cantou no Uruguai. Voltaire pegou dele para o meter no seu livro, e a ironia do filósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José Basílio! Tinhas contra ti o assunto estreito e a língua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindoia, felizmente, mas Cacambo é dele, mais dele que teu, patrício da minha alma.
Cândido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no Eldorado, conta Voltaire que viram crianças brincando na rua com rodelas de ouro, esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que comeram quiseram pagar o jantar com duas delas. Sabes que o dono da casa riu às bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, já porque ali ninguém pagava o que comia; era o governo que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade atribuída ao Estado, que fez crer iguais fenômenos entre nós, mas é tudo mentira.
O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão. Às tardes, quando uma centena delas se ia enfileirar no largo de São Francisco de Paula, à espera das pessoas, era um gosto subir a rua do Ouvidor, parar e contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos à gente; todas pareciam descer das rapsódias de Homero, posto fossem corcéis de paz. As carruagens também. Juno certamente as aparelhara com suas correias de ouro, freios de ouro, rédeas de ouro, tudo de ouro incorruptível. Mas nem ela nem Minerva entravam nos veículos de ouro para os fins da guerra contra Ílion. Tudo ali respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tesos e compostos, davam uma bela ideia do ofício. Nenhum aguardava o patrão, deitado no interior dos carros, com as pernas de fora. A impressão que davam era de uma disciplina rígida e elegante, aprendida em alta escola e conservada pela dignidade do indivíduo.
"Casos há" - escrevia o nosso Aires - "em que a impassibilidade do cocheiro na boleia contrasta com a agitação do dono no interior carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastio, trepou à boleia e leva o cocheiro a passear."
LXXIV
A ALUSÃO DO TEXTO
Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Aires não se referia vagamente ou de modo genérico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa particular. Chamava-se então Nóbrega; outrora não se chamava nada, era aquele simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpétua na rua de São José, esquina da da Misericórdia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota de dous mil-réis à bacia do andador. A nota era nova e bela; passou da bacia à algibeira, no fundo de um corredor, não sem algum combate.
Poucos meses depois, Nóbrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros purgatórios, para os quais achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se também o país. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Enfim, alvoreceu a famosa quadra do "encilhamento". Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande esmola, o grande purgatório. Quem já sabia do andador das almas? A antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Ele era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando.
Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possível. Foi por esse tempo que Aires o viu de carro, quase a sair pela portinhola fora, cumprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio que eram escoceses) salvassem a dignidade pessoal da casa, Aires fez a observação do fim do outro capítulo, sem nenhuma intenção geral.
Posto não achasse já nenhum conhecido antigo, Nóbrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andara a pedir para as primeiras almas. Um dia, porém, tais foram as saudades dele que pensou em afrontar o perigo e lá foi. Tinha cócegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde apareciam tais e tais moças... Quando ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou por outra parte. Só passava de carro; depois quis ver tudo a pé, devagar, parando, se fosse possível, e revivendo o extinto.
Lá se foi a pé; desceu pela rua de São José, dobrou a da Misericórdia, foi parar à praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D. Manuel, enfiou de beco em beco. A princípio olhava de esguelha, rápido, os olhos no chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma. Nóbrega foi-se animando e encarando. Talvez esta velha fosse moça, há vinte anos; a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra criança. Nóbrega acabou parando e andando devagar.
Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam reconhecê-lo, e algumas quase que lhe falavam. Não é poesia. O ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar delas, contar-lhes a vida, obrigá-las a comparar o modesto de outrora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: "Vejam, manas, é ele mesmo". Passava por elas, fitava-as, interrogava-as, quase ria, quase as tocava para sacudi-las com força: "Falem, diabos, falem!"
Não confiaria de homem aquele passado, mas às paredes mudas, às grades velhas, às portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quisera dar olhos, ouvidos e boca, uma boca que só ele escutasse, e que proclamasse a prosperidade daquele velho andador.
Uma vez, viu a matriz de São José aberta e entrou. A igreja era a mesma; aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silêncio. Persignou-se, mas não orou; olhava só a um lado e outro, andando na direção do altar-mor. Tinha receio de ver aparecer o sacristão, podia ser o mesmo, e conhecê-lo. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.
Ao subir pela rua de São José, encostou-se à parede, para deixar passar uma carroça. A carroça subiu a calçada, ele refugiou-se num corredor. O corredor podia ser qualquer; aquele era o próprio em que ele fez a operação da nota de dous mil-réis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao fundo estavam os três ou quatro degraus da primeira escada que dobrava à esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu por um instante aquela manhã, viu no ar a nota de dous mil-réis. Outras lhe teriam vindo às mãos por maneiras assim fáceis, mas nunca lhe esqueceu aquela graciosa folha gravada com tantos símbolos, números, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe Deus se a própria Santa Rita de Cássia. Era a sua particular devoção. Sem dúvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não foram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.
Por mais que ele olhasse pela vida dentro, não achava igual obséquio do céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou ganhara com que o comprar. A nota de dous mil-réis... Um dia, ousando mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor.
Não, leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que a princípio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: "Aquelas duas viram passarinho verde!" Mas se agora atribuía a nota à proteção da santa, não mentia então nem agora. Era difícil atinar com a verdade. A única verdade certa eram os dous mil-réis. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil-réis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gorjeta de cocheiro.
Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada outrora. Era mais natural o contrário, quando era maior a intimidade dele com igreja. Mas, leitor dos meus pecados, amava-se muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O século dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do andador das almas acerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando ele agasalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.