Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

LXVII

A NOITE INTEIRA

Saindo de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dous entraram a buscar outros da mesma idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao quartel do Campo, e passaram algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam cigarros. Era a única concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.

Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de Santos tinha frescas todas as ideias do novo regímen, e possuía ainda outras que não via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse, bastavam-lhe os braços e as mãos.

Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.

- Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.

- Eu não posso - disse um.

Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas. Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o último recolhido foi sozinho para Botafogo.

Quando entrou, deu com a mãe, que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, à espera dele. Natividade confessou que não teria sono, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se.

- Olha - disse Natividade -, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.

Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquele vasto quarto em que os dous gêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras, Robespierre e Luís XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quis saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Efetivamente, não. Pedro viu as cautelas de Paulo, e cumpriu também os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até aí os conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo cantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da Marselhesa que os amigos tinham recusado fora:

Allons, enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrivé!

Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a intenção do outro era afligi-lo. Não era, mas podia ser. Vacilou entre a réplica e o silêncio, até que uma ideia fantástica lhe atravessou o cérebro, cantarolar, também baixinho, a segunda parte da estrofe: "Entendez-vous dans vos campagnes...", que alude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido histórico, para restringi-la às tropas nacionais. Era um desforço vago, a ideia passou depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferença suprema do sono. Paulo não acabou a estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da vitória dos seus sonhos políticos. Não se meteu logo na cama; foi primeiro à do irmão, a ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve ímpeto de acordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os lençóis.

Nenhum dormia. Enquanto o sono não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia, ambos espantados de como foram fáceis e rápidos. Depois cogitaram no dia seguinte e nos efeitos ulteriores. Não admira que não chegassem à mesma conclusão.

"Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse pela cousa?", refletia Paulo. "Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batê-lo sempre, e renová-lo. Deodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a saída, puxando os batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o regímen estava podre e caiu por si..."

Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia pensando o contrário; chamava ao movimento um crime.

"Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e prontos, e desfaremos esta caranguejola. A aparência é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão de ver que o imperador não sai daqui, e, ainda que não queira, há de governar; ou governará a filha, e, na falta dela, o neto. Também ele ficou menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Há ainda um punhado de homens..."

A reticência final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e eles dormiram. Durante o sono cessou a revolução e a contra-revolução, não houve monarquia nem república, D. Pedro II nem marechal Deodoro, nada que cheirasse a política. Um e outro sonharam com a bela enseada de Botafogo, um céu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.

LXVIII

DE MANHÃ

Flora abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que eles mal puderam ver a barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor aparente. O receio de um e a esperança de outro deram tréguas. Correram aos jornais. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial de anistia. Nem traição nem decreto. A esperança e o receio fugiram deste mundo.

LXIX

AO PIANO

Enquanto eles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a república. Teve uma daquelas noites em que a imaginação dorme também, sem olhos nem ouvidos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor definição, nem ela é precisa; cada um de nós terá tido dessas noites mudas e apagadas.

Não sonhou sequer com música; e, aliás, tocara antes algumas das suas páginas queridas. Não as tocou somente por gostar delas, senão por fugir à consternação dos pais, que era grande. Nenhum destes podia crer que as instituições tivessem caído, outras, nascido, tudo, mudado. D. Cláudia ainda apelava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; ele mordia os beiços, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os acontecimentos, as notícias coladas às portas dos jornais, a prisão dos ministros, a situação, tudo extinto, extinto, extinto...

Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase solta do pai ou da mãe: "... Mas como foi que...?" - "Tudo às escondidas..." - "Há sangue?" Às vezes um deles fazia algum gesto, e ela não via o gesto. O pai, com a alma trôpega, falava muito e incoerente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe sucedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrário do marido, que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o teto com o punho.

- Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá - ia dizendo o piano da filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos homens e suas dissensões.

Também se pode achar na sonata de Flora uma espécie de acordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moça ia com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde - como queiras - em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório. Flora não entendia de formas nem de nomes. A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e única. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abraão agasalhará todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá, lá, dó...

LXX

DE UMA CONCLUSÃO ERRADA

Os sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam nascendo. Destas houve que serviram ao último baile do ano. Outras morreram na véspera. Poetas de um e outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus suspiros, enquanto a primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, igual e regularmente.

D. Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro da República, e adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de família antes de tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também lá foi Paulo, pela moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de província, disse todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu palavras de acordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moça o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.

Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí a ausência de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo.

- Por que é que seu irmão não veio? - perguntou ela.

Paulo enfiou; depois de alguns instantes:

- Pedro é teimoso - disse -. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunático.

- Não diga isso.

- Acha também que a dança se foi com o Império?

- Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.

- Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo?

- Certamente, como o senhor.

- Mas...

Paulo ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou do calor, e ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de aceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas ideias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo à moça, e ela escutava com prazer, sem opinião; era só o gosto de o escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim, acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as suas gêmeas que eram.

O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era... Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e concluis mal.

Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício. A namoradeira de ofício é a planta das esperanças, e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a ocasião o permite. Também é preciso ter em lembrança aquilo de um publicista, filho de Minas e do outro século, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversários: "Pitangueira não dá manga".

Não, Flora não dava para namorados.

A prova disto é que no estado em que viveu alguns meses de 1891, com o pai e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as cores, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.

Flora só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a esqueceu, ela não os perdeu de memória. Ao contrário, escrevia por todos os correios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gêmeos lia para si. Também eles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Cláudia e a Batista, com a mesma intenção duplicada e misteriosa, que ela entendia muito bem.

Tais eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ela e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes, durante e depois da comissão do Batista.

LXXI

A COMISSÃO

Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai, e da qual não sei nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão do inferno. O pai, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela; verbalmente, desmentia a definição.

- Não digas isso, Flora; é comissão de confiança para fins nobremente políticos.

Creio que sim, mas daí a saber o objeto especial e real, ia largo espaço. Também não se sabe como foi parar às mãos de Batista aquele recado do governo. Sabe-se que ele não desprezou a escolha, quando um amigo íntimo correu a chamá-lo ao palácio do generalíssimo. Viu que era reconhecer nele muita finura e capacidade de trabalho. Não é menos certo, porém, que a comissão entrava a aborrecê-lo, posto que na correspondência oficial dissesse exatamente o contrário. Se tais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Batista, cujas instruções eram, aliás, de concórdia, parecia querer levar a concórdia a ferro e fogo; mas o estilo não é o homem. O coração de Batista fechava-se, quando ele escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração apertada... "Já é tempo", suspirava o músculo, "já é tempo de um lugar de governador."

Quanto a D. Cláudia, não queria ver acabada a comissão, que restituía ao esposo a ação política; faltava-lhe somente uma cousa, oposição. Nenhum jornal dizia mal dele. Aquele prazer de ler todas as manhãs as descomposturas dos adversários, lê-las e relê-las com os seus nomes feios, como látegos de muitas pontas, que lhe rasgavam as carnes e a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a comissão reservada. Ao contrário, havia uma espécie de aposta em achar o comissário justo, equitativo e conciliador, digno de admiração, tipo cívico, caráter sem mácula. Tudo isto ela conheceu outrora, mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos e calúnias. Sem eles, era água insossa. Também não tinha aquela parte de cerimônias a que obrigava o sumo cargo, mas não lhe faltavam atenções, e era alguma cousa.

LXXII

O REGRESSO

Quando o marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de novembro, Batista recordou o tempo dos manifestos liberais, e quis fazer um. Chegou a principiá-lo, em segredo, empregando as belas frases que trazia de cor, citações latinas, duas ou três apóstrofes. D. Cláudia reteve-o à beira do abismo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um benefício. Serve-se muita vez a liberdade parecendo sufocá-la. Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciais. A palavra do generalíssimo, como a sua espada, bastava a defender e consumar a obra principiada. D. Cláudia não tinha estilo próprio, mas sabia comunicar o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Batista, depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no ombro imperativamente:

- Tens razão, filha.

Não rasgou o papel escrito; queria guardá-lo como simples lembrança, e a prova é que ia escrever uma carta ao presidente. D. Cláudia também lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o seu sufrágio; bastava conservar-se na comissão.

- O governo não está satisfeito com você?

- Está.

- Vendo que você se conserva, conclui que aprova tudo, e basta.

- Sim, Cláudia - concordou ele após alguns instantes -. Ao contrário, qualquer cousa que escrevesse contra a assembleia sediciosa que o presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos mortos! Tens razão, filha.

Conservou-se calado, operando, fiel às instruções recebidas. Vinte dias depois, o marechal Deodoro passava o governo às mãos do marechal Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3, anulados.

Ao saber de tais fatos, Batista pensou morrer. Ficou sem fala por alguns instantes, e D. Cláudia não achou a menor parcela de ânimo que lhe desse. Nenhum contara com a marcha rápida dos acontecimentos, uns sobre outros, com tal atropelo que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e sossego, esperanças e grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha.

Agora é que Batista compreendeu o erro de haver dado ouvidos à esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria com um documento de resistência na mão para reivindicar um posto de honra qualquer - ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimi-lo, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como este: "O dia da opressão é a véspera da liberdade". Citava a bela Roland caminhando para a guilhotina: "Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!" D. Cláudia fez-lhe ver que era tarde, e ele concordou.

- Sim, é tarde. Naquele dia é que não era tarde, vinha à hora própria, para o efeito certo.

Batista amarrotou o papel distraidamente; depois alisou-o e guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciência, profundo e sincero. Não devia ter cedido; a resistência era o melhor; se tem resistido às palavras da mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atrás o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que ulteriormente sucedeu; a consciência dizia-lhe que, em situação idêntica à do dia 3, faria outra cousa... Oh! Com certeza! Faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino.

Um ofício ou telegrama veio arrancar Batista à comissão política e reservada. A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os epítetos que o haviam regalado por alguns meses, nem acompanhamento de amigos. Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites pela terminação daquele exílio.

- Parece que estás contente com o desastre de teu pai - disse-lhe a mãe já a bordo.

- Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canseira. Papai pode muito bem fazer política no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado. A senhora verá. Eu, se fosse papai, apenas desembarcasse, ia logo ao marechal explicar tudo, mostrar as instruções e dizer o que tinha feito; dizia mais, que a dispensa veio muito a propósito, a fim de não parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo...

D. Cláudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha pensava e dava conselhos em política. Não advertiu, como fez o leitor, que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembleia legislativa, como no Rio Grande do Sul; mas a qual das câmaras, Pedro ou Paulo, caberia esse único poder político? Eis o que ela mesma não sabia.

Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no porto do Rio de Janeiro. Não foram em duas lanchas, foram na mesma, e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capítulo, porque a razão da presteza com que eles saltaram para a escada foi a ambição de ser o primeiro que cumprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os igualou na alma dela. Enfim chegaram, e não consta qual efetivamente a cumprimentou primeiro; pode ser que ambos.

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