Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

LVII

DAS ENCOMENDAS

Não escreveria este capítulo, se ele fosse propriamente das encomendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas saíram de casa, uma lépida, a outra melancólica, e lá foram a escolher uma quantidade de objetos de viagem e de uso pessoal. D. Cláudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapéus, entretanto, foram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. Cláudia, o chapéu da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena aceitar uma presidência para levar chapéus sem graça, dizia ela sem convicção, porque intimamente pensava que a presidência dá graça a tudo.

Estavam justamente na loja de chapéus, rua do Ouvidor, sentadas, os olhos fora e longe, quando a verdadeira matéria deste capítulo apareceu. Era o gêmeo Paulo, que chegara pelo trem noturno e, sabendo que elas andavam a compras, viera procurá-las.

- O senhor! - exclamaram.

- Cheguei esta manhã.

Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada de Paulo. Ele correu a elas, apertou-lhes as mãos, indagou da saúde e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão era exata; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava com o abatimento daquela triste manhã, e um riso que a fazia alegre.

- Tive sempre notícias das senhoras, que mamãe me dava, e Pedro também, às vezes. Da senhora - continuou ele falando a D. Cláudia -, recebi duas cartas. Como vai o doutor?

- Bem.

- Ora, enfim, cá estou!

E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia naturalmente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Cláudia voltara à escolha dos chapéus, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu este último gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça; falavam de cousas mínimas, alheias ou próprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fora, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ela não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mistério; Pedro teria o seu.

D. Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propósito da escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapéus. Foram dali aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidência, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anedotas de São Paulo, sem grande interesse para Flora; as notícias que ela lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensáveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. A rua ajudava aquela absorção recíproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao silêncio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, ele mais que ela, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.

Na rua Gonçalves Dias, indo para o largo da Carioca, Paulo viu dous ou três políticos de São Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a última vez que os vira ia já a alguma distância.

- Conhecem? - perguntou às duas.

Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objeto, advertiu que o não comprara, e propôs voltarem atrás. Tudo era aceito por ambos, com docilidade, apesar do véu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. Aquelas encomendas tinham já um ar de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr às malas, aos arranjos, às despedidas, ao camarote de bordo, ao enjoo de mar, e àquele outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Daí o silêncio crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e contudo ela estava bem com ele, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores à partida daqui para São Paulo.

Assim se deixaram ir, guiados por D. Cláudia, quase esquecida deles. No meio daquela conversação truncada, mais entretida por ele que por ela, Paulo sentia ímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensara nele, ou, ao menos, sonhara com ele algumas noites. Ouvindo que não, daria expansão à cólera, dizendo-lhe os últimos impropérios; se ela corresse, correria também, até pegá-la pelas fitas do chapéu ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ela uma valsa de Strauss ou uma polca de ***. Logo depois, ria destes delírios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ela erguia para ele eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de direito; pelo quê, quando ele desviava o rosto, era para repetir a experiência e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espírito crítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os três gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não há memória dele, nem necessidade. Tempo é propriamente ofício de relógio, e nenhum deles consultou o relógio que trazia.

LVIII

MATAR SAUDADES

Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro, tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apóstolos. Paulo achava-a agora mais bonita que alguns meses antes, e disse-lho nessa mesma tarde em São Clemente, com esta palavra familiar e cordial:

- A senhora enfeitou muito.

Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de direito; calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outra sensação particular, fê-la acanhada, a princípio. Não tardou, porém, que achasse outra vez o gêmeo no gêmeo, e que ele e ela matassem saudades.

Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo claro. Ele não há ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as saudades expiram, para a ressurreição, alguma vez antes do terceiro dia. Há quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso caso, não pode ser ventilado, nem eu quero desenvolvê-lo, como aliás cumpria.

As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão vagarosamente que Paulo aceitou o convite de lá jantar. Era o dia da chegada; Natividade quisera tê-lo consigo à mesa, ao pé de Pedro, para cimentar a pacificação começada pela distância. Paulo nem se deu ao trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bela criatura, entre o pai e a mãe, que pensavam em outra cousa, próxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tédio, e Paulo não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preocupada, mas com outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou uma vez a mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A ação do estudante de direito devia ser arredar-lhe a mão, encará-la de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a eloquência do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não saiu cá fora. Nem ela lhe consentiu mais tempo que o da pergunta:

- Que é que tem?

- Nada - respondeu Flora.

- Tem alguma cousa - insistiu ele querendo pegar-lhe na mão.

Não acabou o gesto. Não o começou sequer; abriu e fechou os dedos apenas, enquanto ela sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades.

LIX

NOITE DE 14

Tudo se explicou à noite, em casa da família Santos. O ex-presidente de província confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa afirmou a iminência do ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco antes D. Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.

Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação próxima. A dor os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.

Demais, a dor não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para os dous gêmeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum deles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez, delicioso. Os dous quiseram falar à amiguinha, em particular, para sondá-la acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinárias. O gesto de Flora não traduzia o estado da alma; este podia ser lépido, melancólico, ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade, ela falava pouco. Os olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção, que era a última do ano, não acompanhou de perto as agitações morais daquele trio. Quando deu por elas, chegou a senti-las também.

Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais íntima, três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anedotas. Não conversavam de política, e aliás não faltaria matéria. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Também falavam de músicas e teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que ia naquele ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o seu receio acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo, o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.

- É uma esperança que o Batista seja nomeado e leve a filha daqui - disse ela.

- Certamente, mas...

- Mas quê?

- Certamente a levará, mas a senhora pode não conhecer bem aquela menina.

- Penso que é boa.

- Também eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão; depois lhe direi. Note que gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã - concluiu ele, estendendo-lhe a mão -. Amanhã virei explicá-las.

- Explique-as agora, enquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.

Efetivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Aires quis falar, mas reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e difícil, e não era urgente, disse ele.

- Eu mesmo não sei se me entendo, baronesa, nem se penso a verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petrópolis. Quando espera subir?

- Lá para o fim do ano.

- Então ainda nos veremos algumas vezes.

- Sim, e, se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Eles o têm em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espírito mais fino, e Paulo, o mais rijo da nossa terra...

- Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado - disse Aires sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento -. Eu rijo?

- O mais rijo e o mais fino.

Os últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona. Dez minutos depois, Aires despedia-se do casal Santos.

A noite era clara e tranquila. Aires recompôs uma parte do serão para escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais Flora era a principal figura:

"Que o Diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos; eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sobre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acaba de escolher de vez. É fantástico, sei; menos fantástico é se eles, destinados à inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isto os explicaria a eles, não a ela... Seja o que for, a nossa organização política é útil; a presidência de província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a água estará bebida e a cevada, comida. Um decreto ajudará a natureza."

Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; às cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é dia.

LX

MANHÃ DE 15

Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio Público. Chegou às sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las bater e recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma forte, que as movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa também, a que não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que bradava as suas cóleras.

Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, Campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele, a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal cousa suspeitou, não a disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro.

Quando Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma cousa, e seguiu até o largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma notícia clara nem completa. Na rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito uma revolução, ouviu descrições da marcha e das pessoas, e notícias desencontradas. Voltou ao largo, onde três tilburies o disputaram; ele entrou no que lhe ficou mais à mão, e mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petrópolis, vinha descendo a serra.

Aires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tilbury, na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da rua dos Inválidos e levara ao largo da Glória, por sinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.

- Talvez fosse algum implicado no barulho - sugeriu Aires.

- Também pode ser, porque ele levava o chapéu derrubado, e a princípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...

Chegavam justamente à porta de Aires; este mandou parar o veículo, pagou pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possíveis. No alto achou o criado, que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo...

- O que é que não é certo, José? É mais que certo.

- Que mataram três ministros?

- Não; há só um ferido.

- Eu ouvi que mais gente também, falaram em dez mortos...

- A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por alma, porque não és bom católico, José.

LXI

LENDO XENOFONTE

Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e três ministros, Aires confirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia do criado? Só se pode explicar de dous modos - ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dous terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única verdadeira. Pouco depois passava pela rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regímen que ouvira ao cocheiro de tilbury e ao criado José. Reduziu tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.

"Temos gabinete novo", disse consigo.

Almoçou tranquilo, lendo Xenofonte: "Considerava eu um dia quantas repúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra espécie de governo, e quantas monarquias e oligarquias são destruídas pela sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder, uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes..." Sabes a conclusão do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de governar; mas logo depois a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capítulo.

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