Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

XXXVIII

CHEGADA A PROPÓSITO

Quando, às duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se meteu no bonde, para ir a não sei que compras na rua do Ouvidor, levava a frase consigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes da rua, nada; a frase ia diante e dentro dela, com o seu aspecto e tom de ameaça. No Catete, alguém entrou de salto, sem fazer parar o veículo. Adivinha que era o conselheiro; adivinha também que, posto o pé no estribo, e vendo logo adiante a nossa amiga, caminhou para lá rápido e aceitou a ponta do banco que ela lhe ofereceu. Depois dos primeiros cumprimentos:

- Pareceu-me vê-la olhar assustada - disse Aires.

- Naturalmente, não imaginei que fosse capaz deste ato de ginástica.

- Questão de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um dia, deixam-me cair, as rodas passam por cima...

- Fosse como fosse, chegou a propósito.

- Chego sempre a propósito. Já lhe ouvi isso, uma vez, há muitos anos, ou foi a sua irmã... Ora, espere, não me esqueceu o motivo; creio que falavam da cabocla do Castelo. Não se lembra de uma tal ou qual cabocla que morava no Castelo, e adivinhava a sorte da gente? Eu estava aqui de licença, e ouvi dizer cousas do arco-da-velha. Como sempre tive fé em Sibilas, acreditei na cabocla. Que fim levou ela?

Natividade olhou para ele, como receando se teria adivinhado então a consulta que ela fez à cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu e chamou-lhe incrédulo. Aires negou que fosse incrédulo; ao contrário, sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo. E concluiu:

- Mas, enfim, por que é que chego a propósito?

Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e espírito repousado, ou tudo isso junto, dava a este homem, relativamente a esta senhora, uma confiança que ela não achava agora em ninguém ou acharia em poucos. Falou-lhe de uma confidência, um papel que não mostraria ao marido.

- Quero um conselho, conselheiro; e demais, para que incomodar a meu marido? Quando muito, contarei o negócio a mana Perpétua. Acho melhor não dizer nada a Agostinho.

Aires concordou que não valia a pena aborrecê-lo, se era caso disso, e esperou. Natividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a rivalidade dos filhos, já manifesta em política, e tratando especialmente de Paulo, repetiu-lhe a frase da carta e perguntou o que cumpria fazer mais útil. Aires entendeu que eram ardores da mocidade. Que não teimasse; teimando, ele mudaria de palavras, mas não de sentimentos.

- Então crê que Paulo será sempre isto?

- Sempre, não digo; também não digo o contrário. Baronesa, a senhora exige respostas definitivas, mas diga-me o que é que há definitivo neste mundo, a não ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. Há quantos dias não sei o que é uma licença? E verdade que não tenho aparecido. E depois, o prazer da conversação paga bem o das cartas. Aposto que os homens casados que lá vão são de outro parecer?

- Talvez.

- Só os solteirões podem avaliar as ideias das mulheres. Um viúvo sem filhos, como eu, vale por um solteirão; minto, aos sessenta anos, como eu, vale por dous ou três. Quanto ao jovem Paulo, não pense mais no discurso. Também eu discursei em rapaz.

- Já cuidei em casá-los.

- Casar é bom - assentiu Aires.

- Não digo casar já, mas daqui a dous ou três anos. Talvez faça antes uma viagem com eles. Que lhe parece? Vamos lá, não me responda repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que uma viagem?...

- Acho que uma viagem...

- Acabe.

- As viagens fazem bem, mormente na idade deles. Formam-se para o ano, não é? Pois então! Antes de começar qualquer carreira, casados ou não, é útil ver outras terras... Mas que necessidade tem a senhora de ir com eles?

- As mães...

- Mas eu também (desculpe interrompê-la), mas eu também sou seu filho. Não acha que o costume, o bom rosto, a graça, a afeição e todas as prendas grisalhas que a adornam compõem uma espécie de maternidade? Eu confesso-lhe que ficaria órfão.

- Pois venha conosco.

- Ah! Baronesa, para mim já não há mundo que valha um bilhete de passagem. Vi tudo por várias línguas. Agora o mundo começa aqui no cais da Glória ou na rua do Ouvidor e acaba no cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo, como a senhora dizia há pouco, e não aceito essas notícias sem prova cabal e visual, e para ir averiguá-las, falham-me pernas.

- Sempre gracioso! Não as vi treparem agora? Sua irmã disse-me outro dia que o senhor anda como aos trinta anos.

- Rita exagera. Mas, voltando à viagem, a senhora ainda não comprou os bilhetes?

- Não.

- Não os encomendou sequer?

- Também não.

- Então, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua ocupação, quanto mais as semanas e os meses. Pensemos em outra cousa, e deixe lá o Paulo pedir a república.

Natividade achou consigo que ele tinha razão; depois, pensou em outra cousa, e esta foi a ideia do princípio. Não disse logo o que era; preferiu conversar alguns minutos. Não era difícil com este sujeito. Uma das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na banalidade nem subir às nuvens; tinha um modo particular, que não sei se estava na ideia, se no gesto, se na palavra. Não é que falasse mal de ninguém, e aliás seria uma distração. Quero crer que não dissesse mal por indiferença ou cautela; provisoriamente, ponhamos caridade.

- Mas, a senhora ainda me não disse o que queria de mim, além do conselho. Ou não quer mais nada?

- Custa-me pedir-lhe.

- Peça sempre.

- Sabe que os meus dous gêmeos não combinam em nada, ou só em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia. Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não me sinto com forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de sociedade, hábil, fino, cauteloso, inteligente, instruído...

- Eu, em suma?

- Adivinhou.

- Não adivinhei; é o meu retrato em pessoa. Mas então que lhe parece que possa fazer?

- Pode corrigi-los por boas maneiras, fazê-los unidos, ainda quando discordem, e que discordem pouco ou nada. Não imagina; parece até propósito. Não discordam da cor da lua, por exemplo, mas aos onze anos Pedro descobriu que as sombras da lua eram nuvens, e Paulo, que eram falhas da nossa vista, e atracaram-se; eu é que os separei. Imagine em política...

- Imagine em amores, diga logo; mas não é propriamente para este caso...

- Oh! Não!

- Para os outros é igualmente inútil, mas eu nasci para servir, ainda inutilmente. Baronesa, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou preceptor... Não faça gestos; não me dou por diminuído. Contanto que me pague os ordenados... E não se assuste; peço pouco, pague-me em palavras; as suas palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a minha ação é inútil.

- Por quê?

- É inútil.

- Uma pessoa de autoridade, como o senhor, pode muito, contanto que os ame, porque eles são bons, creia. Conhece-os bem?

- Pouco.

- Conheça-os mais e verá.

Aires concordou rindo. Para Natividade valia por uma tentativa nova. Confiava na ação do conselheiro, e para dizer tudo... Não sei se diga... Digo. Natividade contava com a antiga inclinação do velho diplomata. As cãs não lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta ocasião. Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é mulher creio que entenderá. Se ninguém entender, paciência; baste saber que ele prometeu o que ela quis, e também prometeu calar-se; foi a condição que a outra lhe pos. Tudo isso polido, sincero e incrédulo.

XXXIX

UM GATUNO

Chegaram ao largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ela entrou pela rua Gonçalves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta, Aires encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em direção ao largo. Aires quis arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror à multidão. Viu que a gente era pouca, cinquenta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a prisão de um homem. Entrou num corredor, à espera que o magote passasse. Duas praças de polícia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este resistia, e então era preciso arrastá-lo ou forçá-lo por outro método. Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira.

- Não furtei nada! - bradava o preso detendo o passo -. É falso! Larguem-me! Sou um cidadão livre! Protesto! Protesto!

- Siga para a estação!

- Não sigo!

- Não siga! - bradava a gente anônima -. Não siga! Não siga!

Uma das praças quis convencer a multidão que era verdade, que o sujeito furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo a praça a andar com a outra e o preso - cada uma pegando-lhe um dos braços -, a multidão recomeçou a bradar contra a violência. O preso sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora agressivo, convidava a defesa. Foi então que a outra praça desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de atropelo, pula aqui, pula ali, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontado, encheu a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial. Aires seguiu caminho.

A vozeria morreu pouco a pouco, e Aires entrou na Secretaria do Império. Não achou o ministro, parece, ou a conferência foi curta. Certo é que, saindo à praça, encontrou partes do magote que tornavam comentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam há pouco contra a ação das praças, como riam agora das lástimas do preso.

- Ora o sujeito!

Mas então?... - perguntarás tu. Aires não perguntou nada. Ao cabo, havia um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi o que ele pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires.

Não lhe atribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse alto, à mesa ou na sala de alguém. Era um processo de crítica mansa e delicada, tão convencida em aparência, que algum ouvinte, à cata de ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas...

Ia a descer pela rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota.

XL

RECUERDOS

Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que Aires parou na calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde ele servira na qualidade de adido de legação. Estava em casa, de palestra com uma atriz da moda, pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...

- Que rumor é este, Cármen? - perguntou ele entre duas carícias.

- Não se assuste, amigo meu; é o governo que cai.

- Mas eu ouço aclamações...

- Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir cumprimentá-lo.

Aires deixou-se ir rio abaixo daquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cinquenta ou sessenta pessoas. Essa espécie de lembranças tinha mais efeito nele que outras. Recompôs a hora, o lugar e a pessoa da sevilhana. Cármen era de Sevilha. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, à despedida depois de retificar as ligas, compor as saias, e cravar o pente no cabelo - no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça:

Tienen las sevillanas,
En la mantilla,
Un letrero que disse:
¡Viva Sevilla!

Não posso dar a toada, mas Aires ainda a trazia de cor, e vinha a repeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando. Outrossim, meditava na ausência de vocação diplomática. A ascensão de um governo - de um regímen que fosse -, com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e aclamações, valia menos para ele que o riso da jovem comediante. Onde iria ela? A sombra da moça varreu tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só diante do velho Aires, dando aos quadris e cantarolando a trova andaluza:

Tienen las sevillanas,
En la mantilla...

XLI

CASO DO BURRO

Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar, nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro, sem nunca mais acabá-lo. Mas não há memória que dure, se outro negócio mais forte puxa pela atenção, e um simples burro fez desaparecer Cármen e a sua trova.

Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da travessa de São Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso Aires, não menos condoído do asno que do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espírito invencível. Depois leu neles este monólogo: "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..."

"Vê-se, quase que se lhe ouve a reflexão", notou Aires consigo.

Depois riu de si para si, e foi andando. Inventara tanta cousa no serviço diplomático, que talvez inventasse o monólogo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciência, mas não se pôde ter que lhes não desse uma forma de palavra, com as suas regras de sintaxe. A própria ironia estaria acaso na retina dele. O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memória a esquecer Caracas e Cármen, os seus beijos e experiência política.

XLII

UMA HIPÓTESE

Visões e reminiscências iam assim comendo o tempo e o espaço ao conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas há pouco surdiam-lhe das pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hipótese, espécie de andorinha, que avoaça entre árvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa ali, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hipótese vaga e colorida, a saber, que se os gêmeos tivessem nascido dele talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilíbrio do seu espírito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que desejos retrospectivos, e a rever essa hipótese, outra Caracas, outra Cármen, ele pai, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava num farfalhar calado de gestos.

XLIII

O DISCURSO

Natividade é que não teve distrações de espécie alguma. Toda ela estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por não dar resposta às efusões políticas de Paulo; foi um dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias tinha esquecido a carta que escrevera.

O discurso é que ele não esqueceu, mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memória os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O melhor dos remédios, no segundo caso, é supô-los excelentes, e, se a razão não aceita esta imaginação, consultar pessoas que a aceitem, e crer nelas. A opinião é um velho óleo incorruptível.

Paulo tinha talento. O discurso daquele dia podia pecar aqui ou ali por alguma ênfase, e uma ou outra ideia vulgar e exausta. Tinha talento Paulo. Em suma, o discurso era bom. Santos achou-o excelente, leu-o aos amigos e resolveu transcrevê-lo nos jornais. Natividade não se opôs, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.

- Cortadas, por quê? - perguntou Santos, e ficou esperando a resposta.

- Pois você não vê, Agostinho; estas palavras têm sentido republicano - explicou ela relendo a frase que a afligira.

Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de as suprimir.

- Pois não se transcreve o discurso.

- Ah! Isso não! O discurso é magnífico, e não há de morrer em São Paulo; é preciso que a Corte o leia, e as províncias também, e até não se me daria fazê-lo traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda melhor.

- Mas, Agostinho, isto pode fazer mal à carreira do rapaz; o imperador pode ser que não goste...

Pedro, que assistia desde alguns instantes ao debate, interveio docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom pôr a frase toda, e, a rigor, não diferia muito do que os liberais diziam em 1848.

- Um monarquista liberal pode muito bem assinar esse trecho - concluiu ele depois de reter as palavras do irmão.

- Justamente! - assentiu o pai.

Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para ele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a reimpressão do discurso foi resolvida. Também se tirou uma edição em folheto, e o pai mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a Regente.

- Você diga-lhe - aconselhou Natividade - que o nosso Paulo é liberal ardente...

- Liberal de 1848 - completou Santos lembrando as palavras de Pedro.

Santos cumpriu à risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palácio Isabel, a definição do "liberal de 1848" saiu mais viva que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionário da frase condenada pela mulher, ou porque trazia valor histórico. Quando ele voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a Regente perguntara por ela, mas apesar de lisonjeada com a lembrança, Natividade quis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o lera.

- Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se lhes notávamos certo ardor, compreendíamos sempre que eles eram os de um liberal de 1848...

- Papai disse isso? - perguntou Pedro.

- Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um liberal de 1848 - repetiu Santos querendo convencer o filho.

XLIV

O SALMÃO

Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pai dera à Regente daquele trecho do discurso. Protestou contra ela, em casa; quis fazê-lo também em público, mas Natividade interveio a tempo. Aires pôs água na fervura, dizendo ao futuro bacharel:

- Não vale a pena, moço; o que importa é que cada um tenha as suas ideias e se bata por elas, até que elas vençam. Agora que outros as interpretem mal é cousa que não deve afligir o autor.

- Afligir, sim, senhor; pode parecer que é assim mesmo... Vou escrever um artigo a propósito de qualquer cousa, e não deixarei dúvidas...

- Para quê? - inquiriu Aires.

- Não quero que suponham...

- Mas quem duvida dos seus sentimentos?

- Podem duvidar.

- Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar comigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro também. Seremos três à mesa, um almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Alemanha...

No domingo foram os dous ao Catete, menos pelo almoço que pelo anfitrião. Aires era amado dos dous; gostavam de ouvi-lo, de interrogá-lo, pediam-lhe anedotas políticas de outro tempo, descrição de festas, notícias de sociedade.

- Vivam os meus dous jovens - disse o conselheiro -, vivam os meus dous jovens que não esqueceram o amigo velho. Papai como está? E mamãe?

- Estão bons - disse Pedro.

Paulo acrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.

- E tia Perpétua?

- Também está boa - disse Paulo.

- Sempre com a homeopatia e as suas histórias do Paraguai - acrescentou Pedro.

Pedro estava alegre, Paulo, preocupado. Depois das primeiras saudações e notícias, Aires notou essa diferença, e achou que era bom para tirar a monotonia da semelhança; mas, enfim, não queria caras fechadas, e indagou do estudante de direito o que é que ele tinha.

- Nada.

- Não pode ser; acho-lhe um ar meio sorumbático. Pois eu acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam comigo.

Paulo rosnou uma palavra que nenhum deles entendeu e sacou do bolso um maço de folhas de papel. Era um artigo...

- Um artigo?

- Um artigo em que tiro todas as dúvidas a meu respeito, e peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.

Aires propôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro concordou com este alvitre, alegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser, naturalmente. Aires meteu o caso à bulha e aceitou ouvir o artigo.

- É pequeno, sete tiras.

- Letra miúda?

- Não, senhor; assim, assim.

Paulo leu o artigo. Tinha por epígrafe isto de Amós: "Ouvi esta palavra, vacas gordas que estais no monte de Samaria..." As vacas gordas eram o pessoal do regímen, explicou Paulo. Não atacava o imperador, por atenção à mãe, mas com o princípio e o pessoal era violento e áspero. Aires sentiu-lhe aquilo que, em tempo, se chamou "a bossa da combatividade". Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:

- Conheço tudo isso, são ideias paulistas.

- As tuas são ideias coloniais - replicou Paulo.

Deste introito podiam nascer piores palavras, mas felizmente um criado chegou à porta anunciando que o almoço estava na mesa. Aires ergueu-se e disse que à mesa daria a sua opinião.

- Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa especial! Vamos a ele.

Aires queria cumprir deveras o ofício que aceitara de Natividade. Quem sabe se a ideia de pai espiritual dos gêmeos, pai de desejo somente, pai que não foi, que teria sido, não lhe dava uma afeição particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fora de propósito que ele buscasse somente matéria nova para as páginas nuas de seu Memorial.

Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro, com desdém, Aires, sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu ofício. Aires estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de uma erupção de pele da idade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não acompanharam o ex-ministro. A política veio morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarquia com dez homens, e Pedro, de extirpar o gérmen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dous regimens no mesmo salmão delicioso.

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