Romance

Esaú e Jacó

1904

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Esaú e Jacó, publicado em 1904, é o oitavo e penúltimo romance de Machado de Assis. Situado entre aquele que é por muitos considerado o ponto alto da ficção machadiana, Dom Casmurro (1900), e o rarefeito relato do Memorial de Aires (1908), a obra não costuma assumir papel central nos estudos machadianos ou no imaginário dos leitores brasileiros. Mas, ainda que um pouco obscurecido pela fascinante vizinhança, Esaú e Jacó não se apequena diante dos demais livros da fase madura de Machado de Assis.

Por vezes qualificado como profissão de fé da estética machadiana, Esaú e Jacó constitui-se através de um complexo jogo de espelhos, no qual o narrador ora é identificado com o conselheiro Aires, também personagem do livro, ora com a própria persona Machado de Assis, de quem Aires pode ser considerado um duplo. O conceito de duplicidade, além disso, se estende a várias instâncias narrativas e, como é costumeiro na obra do autor, é constantemente posto em xeque. Como exemplo, basta o próprio título do romance, referente aos dois protagonistas, Pedro e Paulo, que, embora gêmeos, estão em perene conflito, desmentindo a crença, muitas vezes reforçada pela ficção, na solidariedade indissolúvel entre univitelinos.

A questão do narrador, sempre problemática em Machado, desde os primeiros contos até o Memorial de Aires e até em romances aparentemente narrados em terceira pessoa neutra, como Quincas Borba (1891), é em Esaú e Jacó acompanhada de um procedimento bastante sofisticado no que diz respeito à epígrafe do livro. A epígrafe é explicada no capítulo XIII. No anterior, o narrador "neutro" havia introduzido a personagem Aires e "transcrevera" um trecho do seu diário, que termina com a citação de um verso de Dante: Dico che quando l'anima mal nata... ("Digo que quando a alma mal nascida..."). A partir daí, o narrador de terceira pessoa recupera a voz narrativa e diz:

Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma, e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. (cap. XIII)

Ressalte-se a subversão temporal processada: ao suposto autor da narrativa, que conta uma história com base nas anotações do diário de uma de suas personagens, ocorre, no 13º capítulo, dar ao livro, por epígrafe - "um par de lunetas para que o leitor penetre o que for menos claro, ou totalmente escuro" -, um verso de Dante que essa sua personagem havia "truncado" e aplicado a uma situação absolutamente banal e quotidiana. Mas a subversão não é meramente técnica, embora isso por si só já fosse muito. Se tentarmos descobrir o que pretende este citador impenitente, percebemos que a subversão é mais radical, porque: a) o verso de Dante é deslocado, posto no mesmo patamar do adágio popular "O que o berço dá só a cova o tira"; é, portanto, trivializado, rebaixado e, o que é pior, através dessa equiparação, sofre uma fixação de sentido: l'anima malnata está destinada a ser má por toda a vida; b) o verso de Dante é utilizado como antecipação do que o narrador quer que acreditemos acontecer no enredo, isto é, que os gêmeos Pedro e Paulo (que, como Esaú e Jacó, já brigavam no ventre materno) têm "almas mal-nascidas", ou "mal-concebidas", isto é, estão predestinados à dissensão, ao conflito, à rivalidade irreconciliável: "o pau que nasce torto morre torto."

Ora, o verso de Dante, no contexto do canto V do "Inferno", não diz isto. É, sim, parte de uma narração dos horrores infernais, a saber, da maneira pela qual Minos, lendário rei de Creta, famoso por seu senso de justiça e figurado no poema como um dos juízes do "doloroso ospizio", atribui a pena segundo o modo de enrolar a cauda, isto é, cinge-se com a cauda tantas vezes quantos são os círculos do inferno que a alma danada ("l'anima mal nata") deve descer.

Machado (seu narrador) não trunca o verso, que, pelo contrário, reproduz fielmente; antes o desenraíza e o emprega com uma visão entre fatalista e determinista que não poderia existir, e não existe, no original. O narrador-autor finge que quem lhe dá a chave para a decifração do livro é o memorial do Conselheiro, mas é ele, o autor, quem a inscreve no início do livro e é ainda ele quem atribui ao verso de Dante - na acepção especial e especiosa que lhe dá - a função de habilitar-nos, a nós, leitores, a enxergar o que está menos claro, embora não totalmente obscuro.

A técnica complicada, no entanto, encontra seu equilíbrio na prosa simples e precisa de Esaú e Jacó, marca registrada, aliás, da produção ficcional de Machado de Assis como um todo. Já nas resenhas publicadas à época em que o romance veio a público, destacava-se o modo de tratar as ações narradas, isto é, as qualidades da construção e dicção da prosa. O crítico José Veríssimo, ao resenhar o livro logo depois de sua publicação, chegou a afirmar que "a história é simples, e por isso mesmo difícil de contar. Aliás as histórias do Sr. Machado de Assis perderiam muito em ser recontadas por outros. O seu principal encanto talvez esteja no contador."

A atenção dispensada aos processos de construção textual explica-se pela aparente imobilidade do enredo. Há poucos "grandes acontecimentos" capazes de transformar o curso da narrativa. A trama gira em torno de Pedro e Paulo, seus pequenos desentendimentos e a disputa pelo amor de Flora, que se dá sem os arroubos românticos que a estrutura triangular sugere. O enredo de Esaú e Jacó, como definiu o crítico John Gledson, é "calculado para desapontar". Diante dessa configuração, cabe ao leitor o papel de observador astuto dos movimentos mais sutis, e não raro contraditórios, da alma humana, encenados em Esaú e Jacó com a destreza característica de Machado de Assis.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 ("introito" e não "intróito"; "boleia" e não "boléia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "gérmen"/"germe", "súbdito"/"súdito"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foi tomada uma decisão divergente das primeiras edições e das edições da Comissão Machado de Assis e de Adriano da Gama Kury quando, no capítulo LXXXIII, há evidente erro de concordância nominal: "[...] mas do lado da porta, metido na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste" foi corrigido para " mas do lado da porta, metida na penumbra, a figura de Pedro aparecia, não menos bela, mas um tanto triste." Assim se procedeu por considerar-se que se trata de erro tipográfico e não de uma improvável silepse de gênero.

Questões de diagramação também oferecem problemas, apresentando cada edição disposições diferentes para palavras ou passagens em destaque. Em Esaú e Jacó isto é particularmente notável nos capítulos LXII e LXIII, com relação às palavras que compõem a tabuleta da confeitaria pertencente a Custódio, vizinho de frente do conselheiro Aires, na rua do Catete. Neste caso específico, seguiu-se aqui o padrão utilizado pelo autor no manuscrito, do qual existe edição fac-similar, publicada em 2008 pela Academia Brasileira de Letras.

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Quando era o sono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa."); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("Concertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da Índia."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer."; e "[...] um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo."). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Meses depois, Pedro abria consultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo, banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça."), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Embora o padrão para o uso de aspas e travessões indicativos de falas e pensamentos das personagens seja travessão para fala e aspas para pensamentos, respeitamos as ocorrências de fala também entre aspas que vêm assim na primeira e na segunda edições, bem como na publicação da Comissão Machado de Assis. É o que ocorre entre o capítulo LIII e o LVII, como se a fala de Batista estivesse ecoando na mente de Aires. No entanto, há uma fala de Flora no capítulo CV indicada por um travessão no meio do parágrafo em que a voz é a do narrador (assim na primeira edição e na da Comissão). Foi feito parágrafo por entender-se que se trata de provável erro tipográfico que se perpetuou, pois nada justifica esse emprego inusual do travessão.

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Esaú e Jacó, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

XXXII

O APOSENTADO

Já então este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de Janeiro, depois de um último olhar às cousas vistas, para aqui viver o resto dos seus dias. Podia fazê-lo em qualquer cidade, era homem de todos os climas, mas tinha particular amor à sua terra, e porventura estava cansado de outras. Não atribuía a esta tantas calamidades. A febre amarela, por exemplo, à força de a desmentir lá fora, perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido por aquele credo que atribui todas as moléstias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio.

Não mudara inteiramente; era o mesmo ou quase. Encalveceu mais, é certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de sessenta anos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. O passo é firme, o gesto, grave, com aquele toque de galanteria, que nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna.

Também a cidade não lhe pareceu que houvesse mudado muito. Achou algum movimento mais, alguma ópera menos, cabeças brancas, pessoas defuntas; mas a velha cidade era a mesma. A própria casa dele no Catete estava bem conservada. Aires despediu o inquilino, tão polidamente como se recebesse o ministro dos negócios estrangeiros, e meteu-se nela a si e a um criado, por mais que a irmã teimasse em levá-lo para Andaraí.

- Não, mana Rita, deixe-me ficar no meu canto.

- Mas eu sou a sua última parenta - disse ela.

- De sangue e de coração, isso é - concordou ele -; pode acrescentar que a melhor de todas e a mais pia. Onde estão aqueles cabelos...? Não precisa baixar os olhos. Você os cortou para meter no caixão de seu finado marido. Os que aí estão embranqueceram; mas os que lá ficaram eram pretos, e mais de uma viúva os teria guardado todos para as segundas núpcias.

Rita gostou de ouvir aquela referência. Outrora, não; pouco depois de viúva, tinha vexame de um ato tão sincero; achava-se quase ridícula. Que valia cortar os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos? Mas, andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a aprovar que lho dissessem, e, na intimidade, a lembrá-lo. Agora serviu a alusão para replicar:

- Pois se eu sou isso, por que é que você prefere viver com estranhos?

- Que estranhos? Não vou viver com ninguém. Viverei com o Catete, o largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das lojas. Há lá cousas esquisitas, mas sei eu se venho achar em Andaraí uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que sabemos. Lá os meus pés andam por si. Há ali cousas petrificadas e pessoas imortais, como aquele Custódio da confeitaria, lembra-se?

- Lembra-me, a Confeitaria do Império.

- Há quarenta anos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não acaba; ainda me há de enterrar. Parece rapaz; aparece-me lá todas as semanas.

- Você também parece rapaz.

- Não brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho, pode ser; mas não é por agradar a moças, é porque me ficou este jeito... E a propósito, por que não vai você morar comigo?

- Ah! É para saber que também eu gosto de estar comigo. Irei lá de vez em quando, mas já não saio daqui, senão para o cemitério.

Ajustaram visitar um ao outro; Aires viria jantar às quintas-feiras. D. Rita ainda lhe falou dos casos de moléstia dele, ao que Aires replicou que não adoecia nunca, mas se adoecesse viria para Andaraí; o coração dela era o melhor dos hospitais. Talvez que em todas essas recusas houvesse também a necessidade de fugir à contradição, porque a irmã sabia inventar ocasiões de dissidência. Naquele mesmo dia (era ao almoço) ele achou o café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, obrigando-o a um grande esforço para tornar atrás e achá-lo detestável.

A princípio, Aires cumpriu a solidão, separou-se da sociedade, meteu-se em casa, não aparecia a ninguém ou a raros e de longe em longe. Em verdade estava cansado de homens e de mulheres, de festas e de vigílias. Fez um programa. Como era dado a letras clássicas achou no Padre Bernardes esta tradução daquele salmo: "Alonguei-me fugindo e morei na soedade". Foi a sua divisa. Santos, se lha dessem, fá-la-ia esculpir, à entrada do salão, para regalo dos seus numerosos amigos. Aires deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a recitar calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: "Alonguei-me fugindo e morei na soedade."

Assim foi a princípio. Às quintas-feiras ia jantar com a irmã. Às noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo era gasto em ler e reler, compor o Memorial ou rever o composto, para relembrar as cousas passadas. Estas eram muitas e de feição diversa, desde a alegria até a melancolia, enterramentos e recepções diplomáticas, uma braçada de folhas secas, que lhe pareciam verdes agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e ele não acertava logo quem fossem, mas era um recreio procurá-las, achá-las e completá-las.

Mandou fazer um armário envidraçado, onde meteu as relíquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma luva, uma fita e outras memórias femininas, medalhas e medalhões, camafeus, pedaços de ruínas gregas e romanas, uma infinidade de cousas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por línguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capítulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os bilhetes velhos, assinado por iniciais, um M e um P que ele traduzia com saudades. Não vale a pena dizer o nome.

XXXIII

A SOLIDÃO TAMBÉM CANSA

Mas tudo cansa, até a solidão. Aires entrou a sentir uma ponta de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, estranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Metia-se por bairros excêntricos, trepava aos morros, ia às igrejas velhas, às ruas novas, à Copacabana e à Tijuca. O mar ali, aqui o mato e a vista acordavam nele uma infinidade de ecos, que pareciam as próprias vozes antigas.

Tudo isso escrevia, às noites, para se fortalecer no propósito da vida solitária. Mas não há propósito contra a necessidade.

A gente estranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão, sem lhe dar a conversação. As visitas de rigor que ele fazia eram poucas, breves e apenas faladas. E tudo isso foram os primeiros passos. A pouco e pouco sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade do riso, e não tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no emprego da recreação. A solidão, tanto no texto bíblico como na tradução do padre, era arcaica. Aires trocou-lhe uma palavra e o sentido: "Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente".

Assim se foi o programa da vida nova. Não é que ele já a não entendesse nem amasse, ou que a não praticasse ainda alguma vez, a espaços, como se faz uso de um remédio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas, sarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a outra gente, ouvi-la, cheirá-la, gostá-la, apalpá-la, aplicar todos os sentidos a um mundo que podia matar o tempo, o imortal tempo.

XXXIV

INEXPLICÁVEL

Assim o deixamos, há apenas dous capítulos, a um canto da sala da gente Santos, em conversação com as senhoras. Hás de lembrar-te que Flora não despegava os olhos dele, ansiosa de saber por que é que a achava inexplicável. A palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar. Inexplicável que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica por quê? Quis perguntá-lo ao conselheiro, mas não achou ocasião, e ele saiu cedo. A primeira vez, porém, que Aires foi a São Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente o obséquio de uma definição mais desenvolvida. Aires sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé.

Foi só o tempo de inventar esta resposta:

- Inexplicável é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem a choupana, choupana. Se se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada. E retocam com tanta paciência, que alguns morrem entre dous olhos, outros matam-se de desespero.

Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso és mais velha e mais fina que ela, pode ser que a não aches mais clara. Ele é que não acrescentou nada, para não ficar incluído entre os artistas daquela espécie. Bateu paternalmente na palma da mão de Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé dele, a mocinha confessou que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada, melhor seria ficar só na música. A música ia bem com ela, o francês também, e o inglês.

- Pois só a música, o inglês e o francês - concordou Aires.

- Mas o senhor promete que não me achará inexplicável? - pergunta ela com doçura.

Antes que ele respondesse, entraram na sala os dous gêmeos. Flora esqueceu um assunto por outro, e o velho, pelos rapazes. Aires não se demorou mais que o tempo de a ver rir com eles, e sentir em si alguma cousa parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.

XXXV

EM VOLTA DA MOÇA

Já então os dous gêmeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em São Paulo; outro, a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que saíssem formados e prontos, um para defender o direito e o torto da gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem.

Não era tanta a política que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora que os fizesse esquecer a política. Também não eram tais as duas que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na idade em que tudo se combina sem quebra da essência de cada cousa. Lá que viessem a amar a pequena com igual força é o que se podia admitir desde já, sem ser preciso que ela os atraísse de vontade. Ao contrário, Flora ria com ambos, sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum; pode ser até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar vencer do irmão, que vinha pródigo delas. E Flora recebia-as todas com o mesmo rosto amigo.

Note-se - e este ponto deve ser tirado à luz -, note-se que os dous gêmeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos. Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuía em cada um deles a feição pessoal. Demais, Flora simulava às vezes confundi-los, para rir com ambos. E dizia a Pedro:

- Dr. Paulo!

E dizia a Paulo:

- Dr. Pedro!

Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo. A familiaridade desculpava a ação e crescia com ela. Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com o piano que com a conversa; Flora tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e tocava falando, soltava a rédea aos dedos e à língua.

Tais artes, postas ao serviço de tais graças, eram realmente de acender os gêmeos, e foi o que sucedeu pouco a pouco. A mãe dela, cuido que percebeu alguma cousa; mas a princípio não lhe deu grande cuidado. Também ela foi menina e moça, também se dividiu a si sem se dar nada a ninguém. Pode ser até que, a seu parecer, fosse um exercício necessário aos olhos do espírito e da cara. A questão é que estes se não corrompessem, nem se deixassem ir atrás de cantigas, como diz o povo, que assim exprime os feitiços de Orfeu. Ao contrário, Flora é que fazia de Orfeu, ela é que era a cantiga. Oportunamente, escolheria a um deles, pensava a mãe.

A intimidade tinha intervalos grandes, além das ausências obrigadas de Paulo. Apesar de não sair, Pedro não a buscava sempre, nem ela ia muita vez à casa da praia. Não se viam dias e dias. Que pensassem um no outro, é possível; mas não possuo o menor documento disto. A verdade é que Pedro tinha os seus companheiros de escola, os namoros de rua e de aventura, os partidos de teatro, os passeios à Tijuca e outros arrabaldes. Ao demais, os dous gêmeos estavam ainda no ponto de falar dela nas cartas, louvá-la, descrevê-la, dizer mil cousas doces, sem ciúme.

XXXVI

A DISCÓRDIA NÃO É TÃO FEIA COMO SE PINTA

A discórdia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem estéril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá, sem excluir... Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modéstia acena-me de longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a Modéstia, que mal suporta a letra capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas há de ir com ela e com eles. Viva a Modéstia, e excluamos este livro; fiquem só os grandes livros épicos e trágicos, a que a Discórdia deu vida, e digam-me se tamanhos efeitos não provam a grandeza da causa. Não, a discórdia não é tão feia como se pinta.

Teimo nisto para que as almas sensíveis não comecem de tremer pela moça ou pelos rapazes. Não há mister tremer, tanto mais que a discórdia dos dous começou por um simples acordo, naquela noite. Costeavam a praia, calados, pensando só, até que ambos, como se falassem para si, soltaram esta frase única:

- Está ficando bem bonita.

E voltando-se um para outro:

- Quem?

Ambos sorriram; acharam pico ao simultâneo da reflexão e da pergunta. Sei que este fenômeno é tal qual o do capítulo XXV, quando eles disseram da idade, mas não me culpem a mim; eram gêmeos, podiam ter o falar gêmeo. O principal é que não se amofinaram; não era ainda amor o que sentiam. Cada um expôs a sua opinião acerca das graças da pequena, o gesto, a voz, os olhos e as mãos, tudo com tão boa sombra, que excluía a ideia de rivalidade. Quando muito, divergiam na escolha da melhor prenda, que para Pedro eram os olhos, e para Paulo, a figura; mas como acabavam achando um total harmônico, era visto que não brigavam por isso. Nenhum deles atribuía ao outro a cousa vaga ou o que quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam estetas que enamorados. Aliás, a mesma política os deixou em paz essa noite: não brigaram por ela. Não é que não sentissem alguma cousa oposta, à vista da praia e do céu, que estavam deliciosos. Lua cheia, água quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilbury a passo ou a trote, segundo ia vazio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca.

A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro brilhante, como ele é em tal idade. Botafogo teria um papel histórico, uma enseada imperial para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo, sem doge, nem conselho dos dez, ou então um doge com outro título, um simples presidente, que se casaria em nome do povo com este pequenino Adriático. Talvez o doge fosse ele mesmo. Esta possibilidade, apesar dos anos verdes, enfunou a alma do moço. Paulo viu-se à testa de uma república, em que o antigo e o moderno, o futuro e o passado se mesclassem, uma Roma nova, uma Convenção Nacional, a República Francesa e os Estados Unidos da América.

Pedro, à sua parte, construía a meio caminho como um palácio para a representação nacional, outro para o imperador, e via-se a si mesmo ministro e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as opiniões, arrancava um voto à Câmara dos Deputados ou então expedia um decreto de dissolução. É uma minúcia, mas merece inseri-la aqui: Pedro, sonhando com o governo, pensava especialmente nos decretos de dissolução. Via-se em casa, com o ato assinado, referendado, copiado, mandado aos jornais e às Câmaras, lido pelos secretários, arquivado na secretaria, e os deputados saindo cabisbaixos, alguns resmungando, outros irados. Só ele estava tranquilo, no gabinete, recebendo os amigos que iam cumprimentá-lo e pedir os recados para a província.

Tais eram as grandes pinceladas da imaginação dos dous. As estrelas recebiam no céu todos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta e a vaga da praia estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si ao pé de casa. Tal ou qual impulso quis levá-los a discutir acerca do tempo e da noite, da temperatura e da enseada. Algum murmúrio vago pode ser que lhes fizesse mover os beiços e começar a quebrar o silêncio, mas o silêncio era tão augusto que concordaram em respeitá-lo. E logo acharam, de si para si, que a lua era esplêndida, a enseada, bela e a temperatura, divina.

XXXVII

DESACORDO NO ACORDO

Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravíssima os fez concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.

A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução. Ele mesmo o disse, concluindo um discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: "A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco".

Natividade ficou atônita quando leu isto; pegou da pena e escreveu uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expressões de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, inclusive a vida e até a honra; as opiniões é que não. "Não, mamãe; as opiniões é que não".

- As opiniões é que não - repetiu Natividade acabando de ler a carta.

Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ela que sacrificara as opiniões aos princípios, como no caso de Aires, e continuou a viver sem mácula. Como então não sacrificar...? Não achava explicação. Relia a frase da carta e a do discurso; tinha medo de o ver perder a carreira política, se era a política que o faria grande homem. "Emancipado o preto, resta emancipar o branco", era uma ameaça ao imperador e ao império.

Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a frase do discurso não era propriamente do filho; não era de ninguém. Alguém a proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, era enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio comum.

Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias. As próprias ideias nem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas.

A+
A-