Conto

Ernesto de Tal

1873

CAPÍTULO V

Apenas saiu à rua, embicou Ernesto para a casa em que trabalhava o rapaz de nariz comprido, resolvido a explicar-se de uma vez com ele. Hesitou alguma cousa, é verdade, e esteve a pique de arrepiar carreira; mas a crise era tão violenta que triunfou da frouxidão de ânimo, e vinte minutos depois chegava ele ao seu destino. Não entrou no escritório do rival; pôs-se a passear de um lado para outro, à espera que ele saísse, o que se verificou daí a três quartos de hora, três enfadonhos e mortais quartos de hora.

Ernesto aproximou-se casualmente do rival; cumprimentaram-se com um sorriso acanhado e amarelo, e ficaram alguns segundos a olhar um para o outro. Já o guarda-livros ia tirando o chapéu e despedindo-se, quando Ernesto lhe perguntou:

- Vai hoje à rua do Conde?

- Talvez.

- A que horas?

- Não sei ainda. Por quê?

- Iríamos juntos. Eu vou às oito.

O rapaz de nariz comprido não respondeu.

- Para que lado vai agora? - perguntou Ernesto depois de algum silêncio.

- Vou ao Passeio Público, se o senhor lá não for - respondeu resolutamente o rival.

Ernesto empalideceu.

- Quer assim fugir de mim?

- Sim, senhor.

- Pois eu não; desejo até que haja uma explicação entre nós. Espere... não me volte as costas. Saiba que eu também sou atrevido, menos de língua ainda que de mão. Vamos, dê-me o braço e caminhemos ao Passeio Público.

O rapaz de nariz comprido teve ímpetos de atracar-se com o rival e experimentar-lhe as forças; mas estavam numa rua comercial; todo o seu futuro voaria pelos ares. Preferiu dar-lhe as costas e seguir caminho. Executava já este plano, quando Ernesto lhe gritou:

- Venha cá, namorado sem-ventura!

O pobre rapaz voltou-se rapidamente.

- Que diz o senhor? - perguntou ele.

- Namorado sem-ventura - repetiu Ernesto cravando os olhos no rosto do rival a ver se lhe descobria uma confissão qualquer.

- É singular - replicou o rapaz de nariz comprido -, é singular que o senhor me chame namorado sem-ventura, quando ninguém ignora a triste figura que tem feito para obter as boas graças de uma moça que é minha...

- Sua!

- Minha!

- Nossa, direi eu...

- Senhor!

O rapaz de nariz comprido engatilhou um soco; a segurança e tranquilidade com que Ernesto olhava para ele mudaram-lhe o curso das ideias. Falaria ele verdade? Essa moça, que tanto amor lhe jurava, com quem meditava casar dentro de pouco tempo, mas de quem alguma vez desconfiara, teria dado efetivamente àquele homem o direito de a chamar sua? Esta simples interrogação perturbou o espírito do rapaz, que esteve cerca de dous minutos a olhar mudamente para Ernesto, e este, a olhar mudamente para ele.

- O que o senhor disse agora é muito grave; preciso de uma explicação.

- Peço-lhe explicação igual - respondeu Ernesto.

- Vamos ao Passeio Público.

Seguiram caminho, a princípio silenciosos, não só porque a situação os acanhava naturalmente, mas também porque cada um deles receava ouvir uma cruel revelação. A conversa começou por monossílabos e frases truncadas, mas foi a pouco e pouco fazendo-se natural e correta. Tudo quanto os leitores sabem de um e outro foi ali exposto por ambos, e por ambos ouvido entre abatimento e cólera.

- Se tudo quanto o senhor diz é a expressão da verdade - observou o rapaz de nariz comprido descendo a rua das Marrecas -, a conclusão é que fomos enganados...

- Vilmente enganados - emendou Ernesto.

- Pela minha parte - tornou o primeiro -, recebo com isto um grande golpe porque eu amava-a muito, e pretendia fazê-la minha esposa, o que sucederia breve. A minha boa fortuna fez com que o senhor me avisasse a tempo...

- Talvez me censurem o passo que dei; mas o resultado que vamos colher justifica tudo. Nem por isso creia que padeço menos... Eu amava loucamente aquela moça!

Ernesto proferiu estas palavras tão de dentro, que elas repercutiram no coração do rival, e ambos ficaram algum tempo calados, a devorar consigo a dor e a humilhação. Ernesto rompeu o silêncio soltando um magoadíssimo suspiro, na ocasião em que entravam no Passeio. Só o guarda pôde ouvi-lo; o rapaz de nariz comprido ia revolvendo no espírito uma dúvida.

"Devo eu condenar tão ligeiramente aquela moça?", perguntou ele a si mesmo; "e não será este sujeito um pretendente vencido que, por semelhante meio, quer obter a minha neutralidade?"

O rosto de Ernesto não parecia dar razão à conjetura do rival; todavia, como o lance era grave e cumpria não ir por aparências, o rapaz de nariz comprido abriu de novo o capítulo das revelações, no que foi acompanhado pelo rival. Todas elas iam concordando entre si; os incidentes e os gestos que um relembrava tinham eco na memória do outro. O que porém decidiu tudo foi a apresentação de uma carta que cada um deles tinha casualmente no bolso. O texto de ambas mostrava que eram recentes; a expressão de ternura não era a mesma nas duas epístolas, porque Rosina, como sabemos, ia afrouxando o tom em relação a Ernesto; mas era quanto bastava para dar ao rapaz de nariz comprido o golpe de misericórdia.

- Desprezemo-la - disse este, quando acabou de ler a carta do rival.

- Só isso? - perguntou Ernesto -. O simples desprezo será bastante?

- Que vingança tiraríamos dela? - objetou o rapaz de nariz comprido -. Ainda que alguma fosse possível, não seria digna de nós...

Calou-se; mas tocado de uma súbita ideia exclamou:

- Ah! Lembra-me um meio.

- Qual?

- Mandemos-lhe uma carta de rompimento, mas uma carta de igual teor.

A ideia sorriu logo ao espírito de Ernesto, que parecia ainda mais humilhado que o outro, e ambos foram dali redigir a carta fatal.

No dia seguinte, logo depois do almoço, estava Rosina em casa muito sossegada, longe de esperar o golpe, e até forjando planos de futuro, que assentavam todos no rapaz de nariz comprido, quando o moleque lhe apareceu com duas cartas.

- Nhanhã Rosina - disse ele -, esta carta é de sinhô Ernesto, e esta...

- Que é isso? - disse a moça -; os dous...

- Não - explicou o moleque -; um estava na esquina de cima, outro, na esquina de baixo.

E fazendo tinir no bolso alguns cobres que os dous rivais lhe haviam dado, o moleque deixou a senhora moça ler à vontade as duas missivas. A primeira que abriu foi a de Ernesto. Dizia assim:

Senhora!

Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode arrancar do espírito, tomo a liberdade de lhe dizer que está livre e eu, reabilitado. Basta de humilhações! Pude dar-lhe crédito enquanto lhe era possível enganar-me. Agora... Adeus para sempre!

Rosina levantou os ombros ao ler esta carta. Abriu rapidamente a do rapaz de nariz comprido, e leu:

Senhora!

Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode...

Daqui para diante foi crescendo a surpresa. Ambos se despediam; ambos por igual teor. Logo, tinham descoberto tudo um ao outro. Não havia meio de reparar nada; tudo estava perdido!

Rosina não costumava chorar. Esfregava às vezes os olhos, para os fazer vermelhos, quando havia necessidade de mostrar a um namorado que se ressentia de alguma cousa. Desta vez porém chorou deveras; não de mágoa, mas de raiva. Triunfavam ambos os rivais; ambos lhe fugiam, e lhe davam de comum acordo o último golpe. Não havia resistir; entrou-lhe na alma o desespero. Por desgraça não havia no horizonte a mais ligeira vela. O primo a quem aludimos num dos capítulos anteriores andava com ideias a respeito de outra moça, e ideias já conjugais. Ela mesma descuidara o seu sistema durante os últimos trinta dias deixando sem resposta alguns olhares interrogadores. Estava pois abandonada de Deus e dos homens.

Não; ainda lhe restava um recurso.

CAPÍTULO VI

Um mês depois daquele fatal desastre, estando Ernesto em casa a conversar com o companheiro e mais dous amigos, um dos quais era o rapaz de nariz comprido, ouviu bater palmas. Foi à escada; era o moleque da rua Nova do Conde.

- Que me queres? - disse ele com ar severo, suspeitando que o moleque viesse pedir-lhe dinheiro.

- Venho trazer isto - disse o moleque baixinho.

E tirou do bolso uma carta que entregou a Ernesto.

A primeira ideia de Ernesto foi recusar a carta e pôr o moleque a pontapés pela escada abaixo; mas o coração disse-lhe uma cousa, como ele mesmo confessou. Estendeu a mão, recebeu a carta, abriu-a e leu.

Dizia assim:

Ainda uma vez curvo-me às tuas injustiças. Estou cansada de chorar. Não posso mais viver debaixo da ação de uma calúnia. Vem ou eu morro!

Ernesto esfregou os olhos; não podia crer no que acabava de ler. Seria um novo ardil, ou a expressão da verdade? Ardil podia ser; mas Ernesto atentou bem e pareceu-lhe ver o sinal de uma lágrima. Evidentemente a moça chorara. Mas se chorara é porque padecia; e nesse caso...

Nestas e noutras reflexões gastou Ernesto cerca de oito a dez minutos. Não sabia que resolvesse. Acudir ao chamado de Rosina era esquecer a perfídia com que ela se houve amando a outro em cujas mãos vira até uma carta sua. Mas, não ir podia ser contribuir para a morte de uma criatura que, ainda quando não tivesse sido amada por ele, merecia os seus sentimentos de humanidade.

- Diga que irei logo - respondeu enfim Ernesto.

Quando voltou para a sala trazia o rosto mudado. Os amigos repararam na mudança e procuraram descobrir-lhe a causa.

- Algum credor - dizia um.

- Não lhe trouxeram dinheiro - acrescentava outro.

- Namoro novo - opinava o companheiro de casa.

- É tudo isso talvez - respondeu Ernesto com um modo que queria ser alegre.

De tarde preparou-se Ernesto e dirigiu-se para a rua Nova do Conde. Dez ou doze vezes parou resolvido a voltar; mas um minuto de reflexão tirava-lhe os escrúpulos e o rapaz prosseguia em seu caminho.

"Há mistério nisto tudo", dizia ele consigo e relendo a carta de Rosina. "É certo que ele me revelou tudo, e até me leu cartas; nisto não há que duvidar. Rosina é culpada; enganou-me; namorava a outro, dizendo-me que só me amava a mim. Mas por que esta carta? Se ela amava ao outro por que lhe não escreve? Investiguemos tudo isto."

A última hesitação do digno rapaz foi ao entrar na rua Nova do Conde; seu espírito vacilou dessa vez mais que nunca. Dez minutos gastou em passinhos, ora para trás, ora para diante, sem assentar numa cousa definitiva. Afinal deitou o coração à larga e seguiu afoutamente a senda que o destino parecia indicar-lhe.

Quando chegou à casa de Vieira, estava Rosina na sala com a tia. A moça teve um movimento de alegria; mas, tanto quanto Ernesto pôde examinar-lhe as feições, a alegria não foi tal que pudesse disfarçar-lhe os sulcos das lágrimas. O que é certo é que um véu de melancolia parecia envolver os olhos travessos da bela Rosina. Nem já eram travessos; estavam desmaiados ou mortos.

"Oh! Ali está a inocência!", disse Ernesto consigo.

Ao mesmo tempo, envergonhado por esta opinião tão benevolente, e lembrando-se das revelações do rapaz de nariz comprido, Ernesto assumiu um ar severo e grave, menos de namorado que de juiz, menos de juiz que de algoz.

Rosina cravou os olhos no chão.

A tia da moça perguntou a Ernesto as causas da sua ausência tão prolongada. Ernesto alegou muito trabalho e alguma doença, as primeiras desculpas que ocorrem a todo o homem que não tem desculpa. Trocadas mais algumas palavras, saiu a tia da sala para ir dar umas ordens, tendo já ordenado disfarçadamente ao Juquinha que ficasse na sala. Juquinha porém trepou a uma cadeira e pôs-se à janela; os dous tiveram tempo para explicações.

A situação era esquerda; mas não se podia perder tempo. Bem o compreendeu Rosina, que rompeu logo estas palavras:

- Não tem remorsos?

- De quê? - perguntou Ernesto espantado.

- Do que me fez?

- Eu?

- Sim, abandonando-me sem uma explicação. A causa adivinho eu qual é, alguma nova suspeita, ou antes alguma calúnia...

- Nem calúnia, nem suspeita - disse Ernesto depois de um momento de silêncio -; mas só verdade.

Rosina sufocou um grito; seus lábios pálidos e trêmulos quiseram murmurar alguma cousa, mas não puderam; dos olhos rebentaram-lhe duas grossas lágrimas. Ernesto não podia vê-la chorar; por mais cheio de razões que estivesse, em vendo lágrimas, curvava-se logo e pedia-lhe perdão. Desta vez porém era impossível que tão depressa voltasse ao antigo estado. As revelações do rival estavam ainda frescas na memória.

Curvou-se, entretanto, para a moça e pediu-lhe que não chorasse.

- Que não chore! - disse ela com voz lacrimosa -. Pede-me que não chore quando eu vejo fugir-me a felicidade das mãos, sem ao menos merecer a sua estima, porque o senhor despreza-me; sem ao menos saber o que é essa calúnia para desmenti-la ou desmascará-la...

- É capaz disso? - perguntou Ernesto com fogo -. É capaz de confundir a calúnia?

- Sou - disse ela com um magnífico gesto de dignidade.

Ernesto expôs em resumo a conversa que tivera com o rapaz de nariz comprido, e concluiu dizendo que vira uma carta dela. Rosina ouviu calada a narração; tinha o peito ofegante; sentia-se a comoção que a dominava. Quando ele acabou, soltou uma torrente de lágrimas.

- Meu Deus! - disse baixinho Ernesto -. Podem ouvi-la.

- Não importa - exclamou a moça -; estou disposta a tudo...

- Diga-me, pode negar o que lhe acabo de contar?

- Tudo, não; alguma cousa é verdade - respondeu ela com voz triste.

- Ah!

- A promessa de casamento é mentira; não houve mais que duas cartas, duas apenas, e isso... por sua culpa...

- Por minha culpa! - exclamou Ernesto tão assombrado como se acabasse de ver um dos castiçais a dançar.

- Sim - repetiu ela -, por sua culpa. Não se lembra? Tinha-se arrufado uma vez comigo, e eu... foi uma loucura... para metê-lo em brios, para vingar-me... que loucura!... correspondi ao namoro daquele indivíduo sem educação... foi demência minha, bem vejo... Mas que quer? Eu estava despeitada...

A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe fazia dos acontecimentos. Era claro para ele que Rosina negaria tudo, se o seu procedimento tivesse alguma intenção má; a carta, diria que era imitação da sua letra. Mas não; ela confessava tudo com a mais nobre e rude singeleza deste mundo; somente - e nisto estava a chave da situação -, a moça explicava a que impulsos de despeito cedera, mostrando assim, se podemos comparar o coração a um pastel, debaixo do invólucro da leviandade a nata do amor.

Decorreram alguns segundos de silêncio, em que a moça tinha os olhos pregados no chão, na mais triste e melancólica atitude que jamais teve uma donzela arrependida.

- Mas não viu que esse ato de loucura podia causar a minha morte? - disse Ernesto.

Rosina estremeceu ouvindo estas palavras que Ernesto lhe disse com a voz mais doce dos seus antigos dias; levantou os olhos para ele e tornou a pousá-los no chão.

- Se eu tivesse refletido nisso - observou ela -, não faria nada do que fiz.

- Tem razão - ia dizendo Ernesto, mas levado de um mau espírito de vingança entendeu que a leviandade da moça devia ser punida com alguns minutos mais de dúvida e recriminação.

A moça ouviu ainda muitas cousas que lhe disse Ernesto, e a todas respondeu com um ar tão contrito e palavras tão repassadas de amargura, que o nosso namorado sentiu quase rebentarem-lhe as lágrimas dos olhos. Os de Rosina estavam já mais tranquilos, e a limpidez começava a tomar o lugar da sombra melancólica. A situação era quase a mesma de algumas semanas antes; faltava só consolidá-la com o tempo. Entretanto, disse Rosina:

- Não pense que lhe peço mais do que me cumpre. Meu procedimento alguma punição há de ter, e eu estou perfeitamente resignada. Pedi-lhe que viesse aqui a fim de me explicar o seu silêncio; pela minha parte expliquei-lhe o meu desvario. Não posso ambicionar mais...

- Não pode?...

- Não. Meu fim era não desmerecer a sua estima.

- E por que não o meu amor? - perguntou Ernesto -. Parece-lhe que o coração possa apagar de repente, e por simples esforço de vontade, a chama de que viveu longos dias?

- Oh! Isso é impossível! - respondeu a moça -; e pela minha parte sei o que vou padecer...

- Demais - disse Ernesto -, o culpado de tudo fui eu, francamente o confesso. Ambos nós temos que perdoar um ao outro; perdoo-lhe a leviandade; perdoa-me o fatal arrufo?

Rosina, a menos de ter um coração de bronze, não podia deixar de conceder o perdão que o namorado lhe pedia. Foi recíproca a generosidade. Como na volta do filho pródigo, as duas almas festejaram aquela renascença de felicidade, e amaram-se com mais força que nunca.

Três meses depois, dia por dia, foi celebrado na igreja de Sant`Ana, que era então no campo d`Aclamação, o consórcio dos dous namorados. A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do paraíso celeste. O tio de Rosina deu um sarau a que compareceram os amigos de Ernesto, exceto o rapaz de nariz comprido.

Não quer isto dizer que a amizade dos dous viesse a esfriar. Pelo contrário, o rival de Ernesto revelou certa magnanimidade, apertando ainda mais os laços que o prendiam desde a singular circunstância que os aproximou. Houve mais: dous anos depois do casamento de Ernesto, vemos os dous associados num armarinho, reinando entre ambos a mais serena intimidade. O rapaz de nariz comprido é padrinho de um filho de Ernesto.

- Por que não te casas? - pergunta Ernesto às vezes ao seu sócio, amigo e compadre.

- Nada, meu amigo - responde o outro -, eu já agora morro solteiro.

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