Conto

Ernesto de Tal

1873

CAPÍTULO II

Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguém... exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá ficam ainda mais caçadores e espertinhos. É galante e graciosa; se o não fora, não se deixaria prender por ela o nosso infeliz Ernesto, que era rapaz de apurado gosto. Alta não era, mas baixinha, viva, travessa. Tinha bastante afetação nos modos e no falar; mas Ernesto, a quem um amigo notara isso mesmo, declarou que não gostava de moscas mortas.

- Eu nem de moscas vivas - acudiu o amigo encantado por ter apanhado no ar este trocadilho.

Trocadilho de 1850.

Não veste com luxo porque o tio não é rico; mas ainda assim está garrida e elegante. Na cabeça tem por enfeite apenas dous laços de fita azul.

- Ah! Se aquelas fitas me quisessem enforcar! - dizia um gamenho de bigode preto e cabelo partido ao meio.

- Se aquelas fitas me quisessem levar ao céu! - dizia outro de suíças castanhas e orelhas pequeninas.

Desejos ambiciosos os destes dous rapazes - ambiciosos e vãos, porque ela, se alguém lhe prende a atenção, é um moço de bigode louro e nariz comprido que está agora conversando com o subdelegado. Para ele é que Rosina dirige de quando em quando os olhos, com disfarce é verdade, não tanto porém que o não percebam as duas moças que estão ao pé dela.

- Namoro ferrado! - dizia uma delas à outra fazendo um sinal de cabeça para o lado do moço de nariz comprido.

- Ora, Justina!

- Calúnias! - acudiu a outra moça.

- Cala-te, Amélia!

- Você quer enganar a gente? - insistia Justina -. Tire o cavalo da chuva! Lá está ele olhando... Parece que nem ouve o comendador. Pobre comendador! Para pau de cabeleira está grosso demais.

- Olha, se você não se cala eu vou-me embora - disse Rosina fingindo-se enfadada.

- Pois vá!

- Coitado do Ernesto! - suspirou Amélia do outro lado.

- Olhe que titia pode ouvir - observou Rosina olhando de esguelha para uma velha gorda, que, assentada ao pé do sofá, referia a uma comadre as diversas peripécias da última moléstia do marido.

- Mas por que não veio o Ernesto? - perguntou Justina.

- Mandou dizer a papai que tinha um trabalho urgente.

- Quem sabe se algum namoro também? - insinuou Justina.

- Não é capaz! - acudiu Rosina.

- Bravo! Que confiança!

- Que amor!

- Que certeza!

- Que defensora!

- Não é capaz - repetiu a moça -; o Ernesto não é capaz de namorar a outra; estou certa disso... O Ernesto é um...

Engoliu o resto.

- Um quê? - perguntou Amélia.

- Um quê? - perguntou Justina.

Neste momento tocou-se uma valsa, e o rapaz do nariz comprido, a quem o subdelegado deixara para ir conversar com Vieira, aproximou-se do sofá e pediu a Rosina a honra de lhe dar aquela valsa. A moça abaixou os olhos com singular modéstia, murmurou algumas palavras que ninguém ouviu, levantou-se e foi valsar. Justina e Amélia chegaram-se então uma para a outra e comentaram o procedimento de Rosina e a sua maneira de valsar sem graça. Mas como ambas eram amigas de Rosina, não foram estas censuras feitas em tom ofensivo, mas com brandura, como os amigos devem censurar os amigos ausentes.

E não tinham muita razão as duas amigas. Rosina valsava com graça e podia pedir meças a quem soubesse aquele gênero de dança. Agora quanto ao namoro, pode ser que tivessem razão, e tinham efetivamente; a maneira por que ela olhava e falava ao rapaz de nariz comprido despertava suspeitas no espírito mais desprevenido a seu respeito.

Acabada a valsa, passearam um pouco e foram depois para o vão de uma janela. Era então uma hora, e já o desgraçado Ernesto palmilhava na direção da rua da Misericórdia.

- Eu passarei amanhã às seis horas da tarde.

- Às seis horas, não! - disse Rosina.

Era a hora em que Ernesto costumava ir lá.

- Então às cinco...

- Às cinco?... Sim, às cinco - concordou a moça.

O rapaz de nariz comprido agradeceu com um sorriso esta ratificação do seu tratado amoroso, e proferiu algumas palavras que a moça ouviu derretida e envergonhada, entre vaidosa e modesta. O que ele dizia era que Rosina não só era a flor do baile, mas também a flor da rua do Conde, e não só a flor da rua do Conde, mas também a flor da cidade inteira.

Isto era o que lhe dissera muitas vezes Ernesto; o rapaz de nariz comprido, entretanto, tinha uma maneira particular de elogiar uma moça. A graça, por exemplo, com que ele metia o dedo polegar da mão esquerda no bolso esquerdo do colete, brincando depois com os outros dedos como se tocasse piano, era de todo ponto inimitável; nem havia ninguém, pelo menos naquelas imediações, que tivesse mais elegância na maneira de arquear os braços, de concertar os cabelos, ou simplesmente de oferecer uma xícara de chá.

Tais foram os dotes que venceram o coração inconstante da graciosa Rosina. Só esses? Não. A simples circunstância de não ter Ernesto a interessante vestidura que ornava o corpo e realçava as graças do seu afortunado rival pode já dar algumas luzes ao leitor de boa-fé. Rosina ignorava sem dúvida a situação precária de Ernesto a respeito da casaca; mas sabia que ele ocupava um emprego somenos no Arsenal de Guerra, ao passo que o rapaz de nariz comprido tinha um bom lugar numa casa comercial.

Uma moça que professasse ideias filosóficas a respeito do amor e do casamento diria que os impulsos do coração estavam antes de tudo. Rosina não era inteiramente avessa aos impulsos do coração e à filosofia do amor; mas tinha ambição de figurar alguma cousa, morria por vestidos novos e espetáculos frequentes, gostava enfim de viver à luz pública. Tudo isso podia dar-lhe, com o tempo, o rapaz de nariz comprido, que ela antevia já na direção da casa em que trabalhava; o Ernesto porém era difícil que passasse do lugar que tinha no Arsenal, e em todo o caso não subiria muito nem depressa.

Pesados os merecimentos de um e de outro, quem perdia era o mísero Ernesto.

Rosina conhecia o novo candidato desde algumas semanas; mas só naquela noite tivera ocasião de o tratar de perto, de consolidar, digamos assim, a sua situação. As relações, até então puramente telegráficas, passaram a ser verbais; e se o leitor gosta de um estilo arrebicado e gongórico, dir-lhe-ei que tantos foram os telegramas trocados durante a noite entre eles, que os Estados vizinhos, receosos de perder uma aliança provável, chamaram às armas a milícia dos agrados, mandaram sair a armada dos requebros, assestaram a artilharia dos olhos ternos, dos lenços na boca, e das expressões suavíssimas; mas toda essa leva de broquéis nenhum resultado deu porque a formosa Rosina, ao menos naquela noite, achava-se entregue a um só pensamento.

Quando acabou o baile, e Rosina entrou na sua alcova, viu um papelinho dobrado no toucador.

- Que é isto? - disse ela.

Abriu: era a resposta à carta de Ernesto que ela se esquecera de mandar. Se alguém a tivesse lido? Não; não era natural. Dobrou a cartinha com muito cuidado, fechou-a com obreia, guardou-a numa gavetinha, dizendo consigo:

"É preciso mandá-la amanhã de manhã."

CAPÍTULO III

- Um palerma - é o que Rosina queria dizer quando defendeu a fidelidade de Ernesto, maliciosamente atacada pelas duas amigas.

Havia apenas três meses que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira, que se carteava com ela, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e nesse curto espaço de tempo tinha já descoberto cinco ou seis mouros na costa. Nessas ocasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha mágica, trazia o rapaz a bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe quatro palavras de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ela era excessivamente misericordiosa para com ele.

- Merecia bem que eu o não amasse mais - observava Rosina com gracioso enfado.

- Oh! Não!

- Para que há de inventar essas cousas?

- Eu não invento... disseram-me.

- Pois fez mal em acreditar.

- Fiz mal, sim... você é um anjo do céu!

Rosina perdoava-lhe a calúnia, e as cousas continuavam como dantes.

Um amigo a quem Ernesto confiava todas as suas alegrias e mágoas, a quem tomava por conselheiro e que era seu companheiro de casa, muitas vezes lhe dizia:

- Olha, Ernesto, eu creio que estás perdendo o teu trabalho.

- Como assim?

- Ela não gosta de ti.

- Impossível!

- Tu és apenas um passatempo.

- Enganas-te; ama-me.

- Mas ama também a outros muitos.

- Jorge!

- Em suma...

- Nem mais uma palavra!

- É uma namoradeira - concluía o amigo tranquilamente.

Ouvindo este peremptório juízo do amigo, Ernesto despedia um olhar longo e profundo, capaz de paralisar todos os movimentos conhecidos da mecânica; como porém o rosto do amigo não revelasse a menor impressão de temor ou arrependimento, Ernesto recolhia o olhar - mais cordato neste ponto que o senador D. Manuel, a quem o visconde de Jequitinhonha dizia um dia no Senado que recolhesse um riso, e continuava a rir - e tudo acabava em boa e santa paz.

Tal era a confiança de Ernesto na flor da rua do Conde. Se ela lhe dissesse um dia que tinha na algibeira do vestido uma das torres da Candelária, não é certo, mas é muito provável que Ernesto lhe aceitasse a notícia.

Desta vez porém o arrufo era sério. Ernesto vira positivamente a moça receber uma cartinha, às furtadelas, da mão de uma espécie de primo que frequentava a casa de Vieira. Seus olhos faiscaram de raiva quando viram alvejar a misteriosa epístola nas mãos da moça. Fez um gesto de ameaça ao rapaz, lançou um olhar de desprezo à moça, e saiu. Depois escreveu a carta de que temos notícia, e foi esperar a resposta na esquina da rua. Que resposta, se ele vira o gesto de Rosina? Leitor ingênuo, ele queria uma resposta que lhe demonstrasse não ter visto cousa alguma, uma resposta que o fizesse olhar para si mesmo com desprezo e nojo. Não achava possível semelhante explicação; mas no fundo d`alma era isso o que ele queria.

A resposta veio no dia seguinte. O rapaz que morava com ele foi acordá-lo às oito horas da manhã, para lhe entregar uma cartinha de Rosina.

Ernesto deu um salto na cama, assentou-se, abriu a epístola, e leu-a rapidamente. Um ar de celeste bem-aventurança revelou ao companheiro de Ernesto o conteúdo da carta.

- Tudo está sanado - disse Ernesto fechando a carta e descendo da cama -; ela explicou tudo, eu tinha visto mal.

- Ah! - disse Jorge olhando com lástima para o amigo -; então que diz ela?

Ernesto não respondeu imediatamente; abriu a carta outra vez, leu-a para si, tornou a fechá-la, olhou para o teto, para as chinelas, para o companheiro, e só depois desta série de gestos indicativos da profunda abstração do seu espírito, é que respondeu a Jorge, dizendo:

- Ela explica tudo; a carta que eu pensei ser de amores era um bilhete do primo pedindo algum dinheiro ao tio. Diz que eu sou muito mau em obrigá-la a falar nestas fraquezas de família, e conclui jurando que me ama como nunca seria capaz de amar ninguém. Lê.

Jorge recebeu a carta e leu, enquanto Ernesto passeava de um para outro lado, gesticulando e monossilabando consigo mesmo, como se redigisse mentalmente um ato de contrição.

- Então? Que tal? - disse ele quando Jorge lhe entregou a carta.

- Tens razão, tudo se explica - respondeu Jorge.

Ernesto foi nessa mesma tarde à rua do Conde. Ela recebeu-o com um sorriso logo de longe. Na primeira ocasião que tiveram, tudo ficou explicado, declarando-se Ernesto compungido por haver suspeitado de Rosina, e levando a moça a sua generosidade ao ponto de lhe ceder um beijo, ao lusco-fusco, antes que a criada viesse acender as velas de spermacetti dos aparadores.

Agora tem a palavra o leitor para interpelar-me a respeito das intenções desta moça, que, preferindo a posição do rapaz de nariz comprido, ainda se carteava com Ernesto, e lhe dava todas as demonstrações de uma preferência que não existia.

As intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugais. Queria casar, e casar o melhor que pudesse. Para este fim aceitava a homenagem de todos os seus pretendentes, escolhendo lá consigo o que melhor correspondesse aos seus desejos, mas ainda assim sem desanimar os outros, porque o melhor deles podia falhar, e havia para ela uma cousa pior que casar mal, que era não casar absolutamente.

Este era o programa da moça. Junte a isso que era naturalmente loureira, que gostava de trazer ao pé de si uma chusma de pretendentes, muitos dos quais é preciso saber que não pretendiam casar, e namoravam por passatempo, o que revelava da parte desses cavalheiros uma incurável vadiação de espírito.

Quem não tem cão, caça com gato, diz o provérbio. Ernesto era pois, moral e conjugalmente falando, o gato possível de Rosina, uma espécie de pis-aller, - como dizem os franceses, - que convinha ter à mão.

CAPÍTULO IV

O moço de nariz comprido não pertencia ao número de namorados de arribação; seus intentos eram estritamente conjugais. Tinha vinte e seis anos, era laborioso, benquisto, econômico, singelo e sincero, um verdadeiro filho de Minas. Podia fazer a felicidade de uma moça.

A moça, pela sua parte, soubera insinuar-se tanto no espírito dele, que por pouco lhe fez perder o emprego. Um dia, chegando-se o patrão à escrivaninha em que ele trabalhava, viu um papelinho debaixo do tinteiro, e leu a palavra amor, duas ou três vezes repetida. Uma que fosse bastava para fazê-lo subir às nuvens. O Sr. Gomes Arruda contraiu as sobrancelhas, concentrou as ideias, e improvisou uma alocução extensa e ameaçadora, em que o mísero guarda-livros só percebeu a expressão olho da rua.

Olho da rua é uma expressão grave. O guarda-livros meditou nela, reconheceu a justiça do patrão, e tratou de emendar-se dos descuidos, não do amor. O amor ia-se enraizando nele cada vez mais; era a primeira paixão séria que o rapaz sentia, acrescendo que ele acertara logo de dar com uma mestra no ofício.

"Isto assim não pode continuar", pensava o rapaz de nariz comprido, coçando o queixo e caminhando uma noite para casa, "o melhor é casar-me logo de uma vez. Com o que me dão lá em casa e o produto de alguma escrita por fora, creio que poderei ocorrer às despesas; o resto pertence a Deus".

Não tardou que Ernesto desconfiasse das intenções do rapaz de nariz comprido. Uma vez chegou a surpreender um olhar da moça e do rival. Enfadou-se, e na primeira ocasião que teve interpelou a namorada a respeito daquela circunstância equívoca.

- Confesse! - dizia ele.

- Oh! Meu Deus! - exclamou a moça -; você de tudo desconfia. Olhei para ele, sim, é verdade, mas olhei por sua causa.

- Por minha causa? - perguntou Ernesto com um tom gelado de ironia.

- Sim, examinava-lhe a gravata, que é muito bonita, para dar uma a você no dia de ano-bom. Agora que me obrigou a descobrir tudo, veja se me lembra outro mimo, porque esse já não serve.

Ernesto caiu em si; recordou que efetivamente havia no olhar da moça uma tal ou qual intenção dadival, se me permitem este adjetivo obsoleto; toda a sua cólera converteu-se num sorriso amável e contrito, e o arrufo não foi adiante.

Dias depois, era um domingo, estando ele e ela na sala, e um filho de Vieira à janela, foram os dous namorados interrompidos pelo pequeno, que descera gritando:

- Aí vem ele! Aí vem ele!

- Ele quem? - disse Ernesto sentindo esmigalhar-se-lhe o coração.

Chegou à janela: era o rival.

Apareceu a tempo a tia de Rosina; uma tempestade iminente já pairava na fronte afogueada de Ernesto.

Pouco depois entrou na sala o rapaz de nariz comprido, que, ao ver Ernesto, pareceu sorrir maliciosamente. Ernesto encordoou-o. Seus olhares, se fossem punhais, teriam cometido dous assassinatos naquele instante. Conteve-se, porém, para melhor observar os dous. Rosina não parecia prestar ao outro atenção de caráter especial; tratava-o com polidez apenas. Isto aquietou um pouco o ânimo revolto do Ernesto, que ao cabo de uma hora estava restituído à sua usual bem-aventurança.

Não reparou porém nos olhares desconfiados que o rapaz de nariz comprido lhe lançava de quando em quando. O sorriso malicioso desaparecera dos lábios do guarda-livros. A suspeita entrara-lhe no espírito ao ver a maneira indiferente, ou quase, com que o tratava Rosina, posto tratasse de igual modo ao outro pretendente.

"Será seriamente um rival?", pensava o rapaz de nariz comprido.

Na primeira ocasião em que pôde trocar duas palavras com a namorada, sem testemunhas, o que foi logo no dia seguinte, manifestou a desconfiança que lhe escurecera o espírito até ali tão cor-de-rosa. Rosina soltou uma risada - uma dessas risadas que levam a convicção ao fundo d`alma - a tal ponto que o rapaz de nariz comprido julgou de sua dignidade não insistir na absurda suspeita.

- Já lhe disse: ele bem vontade tem de que eu o namore, mas perde o tempo: eu só tenho uma cara e um coração.

- Oh! Rosina, tu és um anjo!

- Quem dera!

- Um anjo, sim - insistiu o rapaz de nariz comprido -; e creio que posso chamar-te brevemente minha esposa.

Os olhos da moça faiscaram de contentamento.

- Sim - continuou o namorado -; daqui a dous meses estaremos casados...

- Ah!

- Se todavia...

Rosina empalideceu.

- Todavia? - repetiu ela.

- Se todavia, o Sr. Vieira consentir...

- Por que não? - disse a moça tranquilizando-se do susto que tivera -; ele deseja a minha felicidade; e o casamento contigo é a minha felicidade maior. Ainda quando porém se oponha aos impulsos do meu coração, basta que eu queira para que os nossos desejos se realizem. Mas descansa; meu tio não porá obstáculos.

O rapaz de nariz comprido ficou ainda a olhar para a moça alguns minutos sem dizer palavra; admirava duas cousas: a força d`alma de Rosina e o amor que ela lhe dedicava. Quem rompeu o silêncio foi ela.

- Mas então daqui a dous meses?

- Só se a sorte me for adversa.

- E poderá sê-lo?

- Quem sabe? - respondeu o rapaz de nariz comprido com um suspiro de dúvida.

Logo depois desta perspectiva de felicidade, a concha em que se pesavam as esperanças de Ernesto começou a subir um pouco. Ele via que Rosina efetivamente parecia ir diminuindo as cartas, e nas poucas que já então recebia dela, a paixão era menos intensa, a frase, estudada, acanhada e fria. Quando estavam juntos havia menos intimidade expansiva; a presença dele parecia constrangê-la. Ernesto entrou seriamente a crer que a batalha estava perdida.

Infelizmente a tática deste namorado era perguntar à própria moça se eram fundadas as suspeitas dele, ao que ela respondia vivamente que não, e isto bastava a restituir-lhe a paz do espírito. Não era longa nem profunda a quietação; o laconismo epistolar de Rosina, a frieza de seus modos, a presença do outro, tudo isso sombreava singularmente o espírito de Ernesto. Mas tão depressa caía no abismo do desespero, como ascendia às regiões da celeste bem-aventurança, mostrando assim o que a natureza queria que ele fosse - alma inconsistente e passiva, levada, como a folha, ao sabor de todos os ventos.

Entretanto, era difícil que a verdade não se lhe metesse pelos olhos. Um dia reparou que, além da suspeitosa afetuosidade de Rosina, havia da parte do tio certas atenções características para com o rival. Não se enganava; conquanto o novo pretendente ainda não houvesse pedido formalmente a mão da moça, era quase certo para o Sr. Vieira que nele se preparava novo sobrinho e, acertando de ser este um homem do comércio, não podia haver, na opinião do tio, mais feliz escolha.

Desisto de pintar os desesperos, os terrores, as imprecações de Ernesto no dia em que a certeza da derrota mais funda e de raiz se lhe cravou no coração. Já então lhe não bastou a negativa de Rosina, que aliás lhe pareceu frouxa, e efetivamente o era. O triste moço chegou a desconfiar que a amada e o rival estariam de acordo para mofar dele.

Como, por via de regra, é da nossa miserável condição que o amor-próprio domine o simples amor, apenas aquela suspeita lhe pareceu provável, apoderou-se dele uma feroz indignação, e duvido que nenhum quinto ato de melodrama ostente maior soma de sangue derramado do que ele verteu na fantasia. Na fantasia, apenas, compassiva leitora, não só porque ele era incapaz de fazer mal a um seu semelhante, mas sobretudo porque repugnava à sua natureza achar uma resolução qualquer. Por esse motivo, depois de muito e longo cogitar, confiou todos os seus pesares e suspeitas ao companheiro de casa e pediu-lhe um conselho; Jorge deu-lhe dous.

- Minha opinião - disse Jorge - é que não te importes com ela e vás trabalhar, que é cousa mais séria.

- Nunca!

- Nunca trabalhar?

- Não; nunca esquecê-la.

- Bem - disse Jorge descalçando a bota do pé esquerdo -, nesse caso vai ter com esse sujeito de quem desconfias e entende-te com ele.

- Aceito! - exclamou Ernesto -; é o melhor. Mas - continuou ele depois de refletir um instante -, e se ele não for meu rival, que hei de fazer? Como descobrir se há outro?

- Nesse caso - disse Jorge, estendendo-se filosoficamente na marquesa -, nesse caso o meu conselho é que tu, ele e ela vão todos para o diabo que os carregue.

Ernesto cerrou os ouvidos à blasfêmia, vestiu-se e saiu.

CAPÍTULO V

Apenas saiu à rua, embicou Ernesto para a casa em que trabalhava o rapaz de nariz comprido, resolvido a explicar-se de uma vez com ele. Hesitou alguma cousa, é verdade, e esteve a pique de arrepiar carreira; mas a crise era tão violenta que triunfou da frouxidão de ânimo, e vinte minutos depois chegava ele ao seu destino. Não entrou no escritório do rival; pôs-se a passear de um lado para outro, à espera que ele saísse, o que se verificou daí a três quartos de hora, três enfadonhos e mortais quartos de hora.

Ernesto aproximou-se casualmente do rival; cumprimentaram-se com um sorriso acanhado e amarelo, e ficaram alguns segundos a olhar um para o outro. Já o guarda-livros ia tirando o chapéu e despedindo-se, quando Ernesto lhe perguntou:

- Vai hoje à rua do Conde?

- Talvez.

- A que horas?

- Não sei ainda. Por quê?

- Iríamos juntos. Eu vou às oito.

O rapaz de nariz comprido não respondeu.

- Para que lado vai agora? - perguntou Ernesto depois de algum silêncio.

- Vou ao Passeio Público, se o senhor lá não for - respondeu resolutamente o rival.

Ernesto empalideceu.

- Quer assim fugir de mim?

- Sim, senhor.

- Pois eu não; desejo até que haja uma explicação entre nós. Espere... não me volte as costas. Saiba que eu também sou atrevido, menos de língua ainda que de mão. Vamos, dê-me o braço e caminhemos ao Passeio Público.

O rapaz de nariz comprido teve ímpetos de atracar-se com o rival e experimentar-lhe as forças; mas estavam numa rua comercial; todo o seu futuro voaria pelos ares. Preferiu dar-lhe as costas e seguir caminho. Executava já este plano, quando Ernesto lhe gritou:

- Venha cá, namorado sem-ventura!

O pobre rapaz voltou-se rapidamente.

- Que diz o senhor? - perguntou ele.

- Namorado sem-ventura - repetiu Ernesto cravando os olhos no rosto do rival a ver se lhe descobria uma confissão qualquer.

- É singular - replicou o rapaz de nariz comprido -, é singular que o senhor me chame namorado sem-ventura, quando ninguém ignora a triste figura que tem feito para obter as boas graças de uma moça que é minha...

- Sua!

- Minha!

- Nossa, direi eu...

- Senhor!

O rapaz de nariz comprido engatilhou um soco; a segurança e tranquilidade com que Ernesto olhava para ele mudaram-lhe o curso das ideias. Falaria ele verdade? Essa moça, que tanto amor lhe jurava, com quem meditava casar dentro de pouco tempo, mas de quem alguma vez desconfiara, teria dado efetivamente àquele homem o direito de a chamar sua? Esta simples interrogação perturbou o espírito do rapaz, que esteve cerca de dous minutos a olhar mudamente para Ernesto, e este, a olhar mudamente para ele.

- O que o senhor disse agora é muito grave; preciso de uma explicação.

- Peço-lhe explicação igual - respondeu Ernesto.

- Vamos ao Passeio Público.

Seguiram caminho, a princípio silenciosos, não só porque a situação os acanhava naturalmente, mas também porque cada um deles receava ouvir uma cruel revelação. A conversa começou por monossílabos e frases truncadas, mas foi a pouco e pouco fazendo-se natural e correta. Tudo quanto os leitores sabem de um e outro foi ali exposto por ambos, e por ambos ouvido entre abatimento e cólera.

- Se tudo quanto o senhor diz é a expressão da verdade - observou o rapaz de nariz comprido descendo a rua das Marrecas -, a conclusão é que fomos enganados...

- Vilmente enganados - emendou Ernesto.

- Pela minha parte - tornou o primeiro -, recebo com isto um grande golpe porque eu amava-a muito, e pretendia fazê-la minha esposa, o que sucederia breve. A minha boa fortuna fez com que o senhor me avisasse a tempo...

- Talvez me censurem o passo que dei; mas o resultado que vamos colher justifica tudo. Nem por isso creia que padeço menos... Eu amava loucamente aquela moça!

Ernesto proferiu estas palavras tão de dentro, que elas repercutiram no coração do rival, e ambos ficaram algum tempo calados, a devorar consigo a dor e a humilhação. Ernesto rompeu o silêncio soltando um magoadíssimo suspiro, na ocasião em que entravam no Passeio. Só o guarda pôde ouvi-lo; o rapaz de nariz comprido ia revolvendo no espírito uma dúvida.

"Devo eu condenar tão ligeiramente aquela moça?", perguntou ele a si mesmo; "e não será este sujeito um pretendente vencido que, por semelhante meio, quer obter a minha neutralidade?"

O rosto de Ernesto não parecia dar razão à conjetura do rival; todavia, como o lance era grave e cumpria não ir por aparências, o rapaz de nariz comprido abriu de novo o capítulo das revelações, no que foi acompanhado pelo rival. Todas elas iam concordando entre si; os incidentes e os gestos que um relembrava tinham eco na memória do outro. O que porém decidiu tudo foi a apresentação de uma carta que cada um deles tinha casualmente no bolso. O texto de ambas mostrava que eram recentes; a expressão de ternura não era a mesma nas duas epístolas, porque Rosina, como sabemos, ia afrouxando o tom em relação a Ernesto; mas era quanto bastava para dar ao rapaz de nariz comprido o golpe de misericórdia.

- Desprezemo-la - disse este, quando acabou de ler a carta do rival.

- Só isso? - perguntou Ernesto -. O simples desprezo será bastante?

- Que vingança tiraríamos dela? - objetou o rapaz de nariz comprido -. Ainda que alguma fosse possível, não seria digna de nós...

Calou-se; mas tocado de uma súbita ideia exclamou:

- Ah! Lembra-me um meio.

- Qual?

- Mandemos-lhe uma carta de rompimento, mas uma carta de igual teor.

A ideia sorriu logo ao espírito de Ernesto, que parecia ainda mais humilhado que o outro, e ambos foram dali redigir a carta fatal.

No dia seguinte, logo depois do almoço, estava Rosina em casa muito sossegada, longe de esperar o golpe, e até forjando planos de futuro, que assentavam todos no rapaz de nariz comprido, quando o moleque lhe apareceu com duas cartas.

- Nhanhã Rosina - disse ele -, esta carta é de sinhô Ernesto, e esta...

- Que é isso? - disse a moça -; os dous...

- Não - explicou o moleque -; um estava na esquina de cima, outro, na esquina de baixo.

E fazendo tinir no bolso alguns cobres que os dous rivais lhe haviam dado, o moleque deixou a senhora moça ler à vontade as duas missivas. A primeira que abriu foi a de Ernesto. Dizia assim:

Senhora!

Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode arrancar do espírito, tomo a liberdade de lhe dizer que está livre e eu, reabilitado. Basta de humilhações! Pude dar-lhe crédito enquanto lhe era possível enganar-me. Agora... Adeus para sempre!

Rosina levantou os ombros ao ler esta carta. Abriu rapidamente a do rapaz de nariz comprido, e leu:

Senhora!

Hoje que tenho certeza da sua perfídia, certeza que já nada me pode...

Daqui para diante foi crescendo a surpresa. Ambos se despediam; ambos por igual teor. Logo, tinham descoberto tudo um ao outro. Não havia meio de reparar nada; tudo estava perdido!

Rosina não costumava chorar. Esfregava às vezes os olhos, para os fazer vermelhos, quando havia necessidade de mostrar a um namorado que se ressentia de alguma cousa. Desta vez porém chorou deveras; não de mágoa, mas de raiva. Triunfavam ambos os rivais; ambos lhe fugiam, e lhe davam de comum acordo o último golpe. Não havia resistir; entrou-lhe na alma o desespero. Por desgraça não havia no horizonte a mais ligeira vela. O primo a quem aludimos num dos capítulos anteriores andava com ideias a respeito de outra moça, e ideias já conjugais. Ela mesma descuidara o seu sistema durante os últimos trinta dias deixando sem resposta alguns olhares interrogadores. Estava pois abandonada de Deus e dos homens.

Não; ainda lhe restava um recurso.

A+
A-