Conto

Ernesto de Tal

1873
Este conto foi publicado originalmente no Jornal das Famílias, em março e abril de 1873, curiosamente assinado por dois "autores": J.J. e Job.

CAPITULO PRIMEIRO

Aquele moço que ali está parado na rua Nova do Condeesquina do campo da Aclamação, às dez horas da noite, não é nenhum ladrão, não é sequer um filósofo. Tem um ar misterioso, é verdade; de quando em quando leva a mão ao peito, bate uma palmada na coxa, ou atira fora um charuto apenas encetado. Filósofo já se vê que não era. Ratoneiro também não; se algum sujeito acerta de passar pelo mesmo lado, o vulto afasta-se cauteloso, como se tivesse medo de ser conhecido.

De dez em dez minutos, sobe a rua até o lugar em que ela faz ângulo com a rua do Areal, torna a descer dez minutos depois, para de novo subir e descer, descer e subir, sem outro resultado mais que aumentar cinco por cento a cólera que lhe murmura no coração.

Quem o visse fazer estas subidas e descidas, bater na perna, acender e apagar charutos, e não tivesse outra explicação, suporia plausivelmente que o homem estava doudo ou perto disso. Não, senhor; Ernesto de Tal (não estou autorizado para dizer o nome todo) anda simplesmente apaixonado por uma moça que mora naquela rua; está colérico porque ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou nessa manhã.

Convém dizer que dous dias antes tinha havido um pequeno arrufo. Ernesto quebrara o protesto de namorado que lhe fizera, de nunca mais escrever-lhe, mandando nessa manhã uma epístola de quatro laudas incendiárias, com muitos sinais admirativos e várias liberdades de pontuação. A carta foi, mas a resposta não veio.

De cada vez que o nosso namorado operava a descida ou subida da rua, parava defronte de uma casa assobradada, onde se dançava ao som de um piano. Era ali que morava a dama dos seus pensamentos. Mas parava debalde; nem ela aparecia à janela, nem a carta lhe chegava às mãos.

Ernesto mordia então os beiços para não soltar um grito de desespero e ia desafogar os seus furores na próxima esquina.

"Mas que explicação tem isto", dizia ele consigo mesmo; "por que razão não me atira ela o papel de cima da janela? Não tem que ver; está toda entregue à dança, talvez ao namoro, não se lembra que eu estou aqui na rua, quando podia estar lá..."

Neste ponto calou-se o namorado, e em vez do gesto de desespero que devia fazer, soltou apenas um longo e magoado suspiro. A explicação deste suspiro, inverossímil num homem que está rebentando de cólera, é um tanto delicada para se dizer em letra redonda. Mas vá lá; ou não se há de contar nada, ou se há de dizer tudo.

Ernesto dava-se em casa do Sr. Vieira, tio de Rosina, que é o nome da namorada. Lá costumava ir com frequência, e lá mesmo é que se arrufou com ela dous dias antes deste sábado de outubro de 1850, em que se passa o acontecimento que estou narrando. Ora, por que razão não figura Ernesto entre os cavalheiros que estão dançando ou tomando chá? Na véspera de tarde o Sr. Vieira, encontrando-se com Ernesto, participou-lhe que dava no dia seguinte uma pequena partida para solenizar não sei que acontecimento da família.

- Resolvi isto hoje de manhã - concluiu ele -; convidei pouca gente, mas espero que a festa esteja brilhante. Ia mandar-lhe agora um convite; mas creio que me dispensa?...

- Sem dúvida - apressou-se a dizer Ernesto, esfregando as mãos de contente.

- Não falte!

- Não senhor!

- Ah! Esquecia-me avisá-lo de uma cousa - disse Vieira, que já havia dado alguns passos -; como vai o subdelegado, que além disso é comendador, eu desejava que todos os meus convidados aparecessem de casaca. Sacrifique-se à casaca, sim?

- Com muito gosto - respondeu o outro ficando pálido como um defunto.

Pálido, por quê? Leitor, por mais ridícula e lastimosa que te pareça esta declaração, não hesito de dizer-te que o nosso Ernesto não possuía uma só casaca nova nem velha. A exigência de Vieira era absurda; mas não havia fugir-lhe; ou não ir, ou ir de casaca. Cumpria sair a todo custo desta gravíssima situação. Três alvitres se apresentaram ao espírito do atribulado moço: encomendar, por qualquer preço, uma casaca para a noite seguinte; comprá-la a crédito; pedi-la a um amigo.

Os dous primeiros alvitres foram desprezados por impraticáveis; Ernesto não tinha dinheiro nem crédito tão alto. Restava o terceiro. Fez Ernesto uma lista dos amigos e casacas prováveis, meteu-a na algibeira e saiu em busca do velocino.

A desgraça porém que o perseguia fez com que o primeiro amigo tivesse de ir no dia seguinte a um casamento e o segundo, a um baile; o terceiro tinha a casaca rota, o quarto tinha a casaca emprestada, o quinto não emprestava a casaca, o sexto não tinha casaca. Recorreu ainda a mais dous amigos suplementares; mas um partira na véspera para Iguaçu e o outro estava destacado na Fortaleza de São João, como alferes da Guarda Nacional.

Imagine-se o desespero de Ernesto; mas admire-se também a requintada crueldade com que o destino tratava a este moço, que ao voltar para casa encontrou três enterros, dous dos quais com muitos carros, cujos ocupantes iam todos de casaca. Era mister curvar a cabeça à fatalidade; Ernesto não insistiu. Mas como tomara a peito reconciliar-se com Rosina, escreveu-lhe a carta de que falei acima e mandou-a levar pelo moleque da casa, dizendo-lhe que à noite lhe desse a resposta na esquina do Campo. Já sabemos que tal resposta não veio. Ernesto não compreendia a causa do silêncio; muitos arrufos tivera com a moça, mas nenhum deles resistia à primeira carta nem durava mais de quarenta e oito horas.

Desenganado enfim de que a resposta viesse naquela noite, Ernesto dirigiu-se para casa com o desespero no coração. Morava na rua da Misericórdia. Quando lá chegou estava cansado e abatido. Nem por isso dormiu logo. Despiu-se precipitadamente. Esteve a ponto de rasgar o colete, cuja fivela teimava em prender-se a um botão da calça. Atirou com as botinas sobre um aparador e quase esmigalhou uma das jarras. Deu cerca de sete ou oito murros na mesa; fumou dous charutos, descompôs o destino, a moça, a si mesmo, até que sobre a madrugada pôde conciliar o sono.

Enquanto ele dorme, indaguemos a causa do silêncio da namorada.

CAPÍTULO II

Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguém... exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá ficam ainda mais caçadores e espertinhos. É galante e graciosa; se o não fora, não se deixaria prender por ela o nosso infeliz Ernesto, que era rapaz de apurado gosto. Alta não era, mas baixinha, viva, travessa. Tinha bastante afetação nos modos e no falar; mas Ernesto, a quem um amigo notara isso mesmo, declarou que não gostava de moscas mortas.

- Eu nem de moscas vivas - acudiu o amigo encantado por ter apanhado no ar este trocadilho.

Trocadilho de 1850.

Não veste com luxo porque o tio não é rico; mas ainda assim está garrida e elegante. Na cabeça tem por enfeite apenas dous laços de fita azul.

- Ah! Se aquelas fitas me quisessem enforcar! - dizia um gamenho de bigode preto e cabelo partido ao meio.

- Se aquelas fitas me quisessem levar ao céu! - dizia outro de suíças castanhas e orelhas pequeninas.

Desejos ambiciosos os destes dous rapazes - ambiciosos e vãos, porque ela, se alguém lhe prende a atenção, é um moço de bigode louro e nariz comprido que está agora conversando com o subdelegado. Para ele é que Rosina dirige de quando em quando os olhos, com disfarce é verdade, não tanto porém que o não percebam as duas moças que estão ao pé dela.

- Namoro ferrado! - dizia uma delas à outra fazendo um sinal de cabeça para o lado do moço de nariz comprido.

- Ora, Justina!

- Calúnias! - acudiu a outra moça.

- Cala-te, Amélia!

- Você quer enganar a gente? - insistia Justina -. Tire o cavalo da chuva! Lá está ele olhando... Parece que nem ouve o comendador. Pobre comendador! Para pau de cabeleira está grosso demais.

- Olha, se você não se cala eu vou-me embora - disse Rosina fingindo-se enfadada.

- Pois vá!

- Coitado do Ernesto! - suspirou Amélia do outro lado.

- Olhe que titia pode ouvir - observou Rosina olhando de esguelha para uma velha gorda, que, assentada ao pé do sofá, referia a uma comadre as diversas peripécias da última moléstia do marido.

- Mas por que não veio o Ernesto? - perguntou Justina.

- Mandou dizer a papai que tinha um trabalho urgente.

- Quem sabe se algum namoro também? - insinuou Justina.

- Não é capaz! - acudiu Rosina.

- Bravo! Que confiança!

- Que amor!

- Que certeza!

- Que defensora!

- Não é capaz - repetiu a moça -; o Ernesto não é capaz de namorar a outra; estou certa disso... O Ernesto é um...

Engoliu o resto.

- Um quê? - perguntou Amélia.

- Um quê? - perguntou Justina.

Neste momento tocou-se uma valsa, e o rapaz do nariz comprido, a quem o subdelegado deixara para ir conversar com Vieira, aproximou-se do sofá e pediu a Rosina a honra de lhe dar aquela valsa. A moça abaixou os olhos com singular modéstia, murmurou algumas palavras que ninguém ouviu, levantou-se e foi valsar. Justina e Amélia chegaram-se então uma para a outra e comentaram o procedimento de Rosina e a sua maneira de valsar sem graça. Mas como ambas eram amigas de Rosina, não foram estas censuras feitas em tom ofensivo, mas com brandura, como os amigos devem censurar os amigos ausentes.

E não tinham muita razão as duas amigas. Rosina valsava com graça e podia pedir meças a quem soubesse aquele gênero de dança. Agora quanto ao namoro, pode ser que tivessem razão, e tinham efetivamente; a maneira por que ela olhava e falava ao rapaz de nariz comprido despertava suspeitas no espírito mais desprevenido a seu respeito.

Acabada a valsa, passearam um pouco e foram depois para o vão de uma janela. Era então uma hora, e já o desgraçado Ernesto palmilhava na direção da rua da Misericórdia.

- Eu passarei amanhã às seis horas da tarde.

- Às seis horas, não! - disse Rosina.

Era a hora em que Ernesto costumava ir lá.

- Então às cinco...

- Às cinco?... Sim, às cinco - concordou a moça.

O rapaz de nariz comprido agradeceu com um sorriso esta ratificação do seu tratado amoroso, e proferiu algumas palavras que a moça ouviu derretida e envergonhada, entre vaidosa e modesta. O que ele dizia era que Rosina não só era a flor do baile, mas também a flor da rua do Conde, e não só a flor da rua do Conde, mas também a flor da cidade inteira.

Isto era o que lhe dissera muitas vezes Ernesto; o rapaz de nariz comprido, entretanto, tinha uma maneira particular de elogiar uma moça. A graça, por exemplo, com que ele metia o dedo polegar da mão esquerda no bolso esquerdo do colete, brincando depois com os outros dedos como se tocasse piano, era de todo ponto inimitável; nem havia ninguém, pelo menos naquelas imediações, que tivesse mais elegância na maneira de arquear os braços, de concertar os cabelos, ou simplesmente de oferecer uma xícara de chá.

Tais foram os dotes que venceram o coração inconstante da graciosa Rosina. Só esses? Não. A simples circunstância de não ter Ernesto a interessante vestidura que ornava o corpo e realçava as graças do seu afortunado rival pode já dar algumas luzes ao leitor de boa-fé. Rosina ignorava sem dúvida a situação precária de Ernesto a respeito da casaca; mas sabia que ele ocupava um emprego somenos no Arsenal de Guerra, ao passo que o rapaz de nariz comprido tinha um bom lugar numa casa comercial.

Uma moça que professasse ideias filosóficas a respeito do amor e do casamento diria que os impulsos do coração estavam antes de tudo. Rosina não era inteiramente avessa aos impulsos do coração e à filosofia do amor; mas tinha ambição de figurar alguma cousa, morria por vestidos novos e espetáculos frequentes, gostava enfim de viver à luz pública. Tudo isso podia dar-lhe, com o tempo, o rapaz de nariz comprido, que ela antevia já na direção da casa em que trabalhava; o Ernesto porém era difícil que passasse do lugar que tinha no Arsenal, e em todo o caso não subiria muito nem depressa.

Pesados os merecimentos de um e de outro, quem perdia era o mísero Ernesto.

Rosina conhecia o novo candidato desde algumas semanas; mas só naquela noite tivera ocasião de o tratar de perto, de consolidar, digamos assim, a sua situação. As relações, até então puramente telegráficas, passaram a ser verbais; e se o leitor gosta de um estilo arrebicado e gongórico, dir-lhe-ei que tantos foram os telegramas trocados durante a noite entre eles, que os Estados vizinhos, receosos de perder uma aliança provável, chamaram às armas a milícia dos agrados, mandaram sair a armada dos requebros, assestaram a artilharia dos olhos ternos, dos lenços na boca, e das expressões suavíssimas; mas toda essa leva de broquéis nenhum resultado deu porque a formosa Rosina, ao menos naquela noite, achava-se entregue a um só pensamento.

Quando acabou o baile, e Rosina entrou na sua alcova, viu um papelinho dobrado no toucador.

- Que é isto? - disse ela.

Abriu: era a resposta à carta de Ernesto que ela se esquecera de mandar. Se alguém a tivesse lido? Não; não era natural. Dobrou a cartinha com muito cuidado, fechou-a com obreia, guardou-a numa gavetinha, dizendo consigo:

"É preciso mandá-la amanhã de manhã."

CAPÍTULO III

- Um palerma - é o que Rosina queria dizer quando defendeu a fidelidade de Ernesto, maliciosamente atacada pelas duas amigas.

Havia apenas três meses que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira, que se carteava com ela, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e nesse curto espaço de tempo tinha já descoberto cinco ou seis mouros na costa. Nessas ocasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha mágica, trazia o rapaz a bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe quatro palavras de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ela era excessivamente misericordiosa para com ele.

- Merecia bem que eu o não amasse mais - observava Rosina com gracioso enfado.

- Oh! Não!

- Para que há de inventar essas cousas?

- Eu não invento... disseram-me.

- Pois fez mal em acreditar.

- Fiz mal, sim... você é um anjo do céu!

Rosina perdoava-lhe a calúnia, e as cousas continuavam como dantes.

Um amigo a quem Ernesto confiava todas as suas alegrias e mágoas, a quem tomava por conselheiro e que era seu companheiro de casa, muitas vezes lhe dizia:

- Olha, Ernesto, eu creio que estás perdendo o teu trabalho.

- Como assim?

- Ela não gosta de ti.

- Impossível!

- Tu és apenas um passatempo.

- Enganas-te; ama-me.

- Mas ama também a outros muitos.

- Jorge!

- Em suma...

- Nem mais uma palavra!

- É uma namoradeira - concluía o amigo tranquilamente.

Ouvindo este peremptório juízo do amigo, Ernesto despedia um olhar longo e profundo, capaz de paralisar todos os movimentos conhecidos da mecânica; como porém o rosto do amigo não revelasse a menor impressão de temor ou arrependimento, Ernesto recolhia o olhar - mais cordato neste ponto que o senador D. Manuel, a quem o visconde de Jequitinhonha dizia um dia no Senado que recolhesse um riso, e continuava a rir - e tudo acabava em boa e santa paz.

Tal era a confiança de Ernesto na flor da rua do Conde. Se ela lhe dissesse um dia que tinha na algibeira do vestido uma das torres da Candelária, não é certo, mas é muito provável que Ernesto lhe aceitasse a notícia.

Desta vez porém o arrufo era sério. Ernesto vira positivamente a moça receber uma cartinha, às furtadelas, da mão de uma espécie de primo que frequentava a casa de Vieira. Seus olhos faiscaram de raiva quando viram alvejar a misteriosa epístola nas mãos da moça. Fez um gesto de ameaça ao rapaz, lançou um olhar de desprezo à moça, e saiu. Depois escreveu a carta de que temos notícia, e foi esperar a resposta na esquina da rua. Que resposta, se ele vira o gesto de Rosina? Leitor ingênuo, ele queria uma resposta que lhe demonstrasse não ter visto cousa alguma, uma resposta que o fizesse olhar para si mesmo com desprezo e nojo. Não achava possível semelhante explicação; mas no fundo d`alma era isso o que ele queria.

A resposta veio no dia seguinte. O rapaz que morava com ele foi acordá-lo às oito horas da manhã, para lhe entregar uma cartinha de Rosina.

Ernesto deu um salto na cama, assentou-se, abriu a epístola, e leu-a rapidamente. Um ar de celeste bem-aventurança revelou ao companheiro de Ernesto o conteúdo da carta.

- Tudo está sanado - disse Ernesto fechando a carta e descendo da cama -; ela explicou tudo, eu tinha visto mal.

- Ah! - disse Jorge olhando com lástima para o amigo -; então que diz ela?

Ernesto não respondeu imediatamente; abriu a carta outra vez, leu-a para si, tornou a fechá-la, olhou para o teto, para as chinelas, para o companheiro, e só depois desta série de gestos indicativos da profunda abstração do seu espírito, é que respondeu a Jorge, dizendo:

- Ela explica tudo; a carta que eu pensei ser de amores era um bilhete do primo pedindo algum dinheiro ao tio. Diz que eu sou muito mau em obrigá-la a falar nestas fraquezas de família, e conclui jurando que me ama como nunca seria capaz de amar ninguém. Lê.

Jorge recebeu a carta e leu, enquanto Ernesto passeava de um para outro lado, gesticulando e monossilabando consigo mesmo, como se redigisse mentalmente um ato de contrição.

- Então? Que tal? - disse ele quando Jorge lhe entregou a carta.

- Tens razão, tudo se explica - respondeu Jorge.

Ernesto foi nessa mesma tarde à rua do Conde. Ela recebeu-o com um sorriso logo de longe. Na primeira ocasião que tiveram, tudo ficou explicado, declarando-se Ernesto compungido por haver suspeitado de Rosina, e levando a moça a sua generosidade ao ponto de lhe ceder um beijo, ao lusco-fusco, antes que a criada viesse acender as velas de spermacetti dos aparadores.

Agora tem a palavra o leitor para interpelar-me a respeito das intenções desta moça, que, preferindo a posição do rapaz de nariz comprido, ainda se carteava com Ernesto, e lhe dava todas as demonstrações de uma preferência que não existia.

As intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugais. Queria casar, e casar o melhor que pudesse. Para este fim aceitava a homenagem de todos os seus pretendentes, escolhendo lá consigo o que melhor correspondesse aos seus desejos, mas ainda assim sem desanimar os outros, porque o melhor deles podia falhar, e havia para ela uma cousa pior que casar mal, que era não casar absolutamente.

Este era o programa da moça. Junte a isso que era naturalmente loureira, que gostava de trazer ao pé de si uma chusma de pretendentes, muitos dos quais é preciso saber que não pretendiam casar, e namoravam por passatempo, o que revelava da parte desses cavalheiros uma incurável vadiação de espírito.

Quem não tem cão, caça com gato, diz o provérbio. Ernesto era pois, moral e conjugalmente falando, o gato possível de Rosina, uma espécie de pis-aller, - como dizem os franceses, - que convinha ter à mão.

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