Dom Casmurro
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Dom Casmurro foi o sétimo romance publicado por Machado de Assis, seguindo-se a Quincas Borba (1891) e precedendo Esaú e Jacó (1904). Objeto de numerosos estudos e releituras, a obra é considerada por grande parte da crítica o ápice da ficção machadiana, e seu enredo e personagens instalaram-se como poucos no imaginário literário brasileiro.
Desde A mão e a luva, todos os romances de Machado vinham sendo publicados primeiramente em diferentes periódicos, saindo depois em livro, às vezes poucos meses depois de publicado na imprensa o último capítulo. Dom Casmurro, reencontrando Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, sai direto em volume, começando a circular no Brasil em janeiro de 1900, embora a data oficial de publicação seja 1899, quando, nos últimos dias de dezembro, o livro ficou pronto, em Paris, sede da casa editora Garnier.
Nem só por esse aspecto por assim dizer editorial o romance de 1899 reencontra o de 1872. Vários críticos têm apontado semelhanças entre os dois enredos, em que a insegurança do protagonista se constitui como barreira à felicidade conjugal possível, já que ambos - Félix, de Ressurreição, e Bentinho, de Dom Casmurro - deixam-se dominar pela dúvida, pela suspeita em relação à fidelidade das mulheres que amam. No caso do primeiro romance, a jovem viúva Lívia, com quem Félix não chega a se casar, é vítima das dúvidas do noivo, que desconfia, infundadamente, de que ela poderia ter sido infiel ao marido e que, portanto, poderia também vir a traí-lo. No caso de Dom Casmurro, a coisa se complica, pois a narrativa é de primeira pessoa, e o narrador-protagonista procura impor sua visão dos fatos, permeada de embustes, manipulações e indicações sagazmente dispostas ao longo do texto para incutir no leitor a dúvida em relação ao que está sendo dito. Com o seu relato, quer convencer-nos de que a mulher o traiu com seu melhor amigo. A ausência de um narrador neutro, de terceira pessoa, impossibilita qualquer certeza por parte do leitor. Afinal, só se conhece a sua versão dos fatos. Quem sabe, caso fosse permitido a Capitu narrar os acontecimentos do seu ponto de vista, teríamos outra história? Assim, Dom Casmurro é um romance permanentemente aberto, deixando ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perplexidades do que convicções. E talvez seja esse o seu maior encanto, que se reencena a cada leitura, para além da questão que vem ocupando a mente de muitas gerações: Capitu traiu ou não traiu o marido?
De fato, o romance é uma obra-prima de concisão, elegância, ambiguidade, trazendo quase a cada página um desmentido ao que se leu na página anterior. Basta aqui um exemplo: o narrador quer que acreditemos que o filho que tem com Capitu é na verdade filho de seu grande amigo, Escobar, e chega a essa conclusão pela semelhança física que parece haver entre os dois. No entanto, ao narrar uma visita que faz à casa de uma amiga de Capitu, quando ainda eram adolescentes enamorados, relata candidamente que o pai da amiga lhe aponta um retrato da mulher, com quem Capitu seria parecidíssima, embora não houvesse entre elas qualquer parentesco (capítulo LXXXII). E põe na voz dessa personagem, Gurgel, a seguinte frase: "Na vida, há dessas semelhanças esquisitas." Não seria o caso, então, de o leitor perguntar, ao fim do livro, se a eventual semelhança de Ezequiel com Escobar não seria também uma dessas semelhanças esquisitas?
O livro tem, porém, muitos outros encantos além do famoso enigma do enredo. Trata-se de uma narrativa quase impressionista, apresentando passagens onde a imprecisão de contornos, a mistura de tons, a preferência por atmosferas crepusculares aproximam o romance das narrativas do Impressionismo do fim do século XIX e mesmo do início do século XX. Veja-se, por exemplo, o capítulo LI, poeticamente intitulado "Entre luz e fusco". Trata-se do momento em que Bentinho vai despedir-se de Capitu antes de ir para o seminário, em cumprimento a uma promessa de sua mãe ainda antes de ele nascer. Talvez, na primeira leitura, o leitor nem se detenha sobre essa passagem. Mas, quando lê de novo, vislumbra a poesia escondida sob a prosa enxuta, em que os três segmentos do período oracional são redondilhas menores (versos de cinco sílabas métricas) disfarçadas, como se o narrador tivesse pudor do próprio lirismo: "Entre luz e fusco/ tudo há de ser breve/ como esse instante."
Outro expediente narrativo que faz de Dom Casmurro um romance que resiste a inúmeras leituras é o recurso à intertextualidade, isto é, a presença, na obra, de várias obras da literatura universal, com as quais o texto machadiano dialoga de maneira fecunda. Deixando de lado a relação com Otelo, de Shakespeare, peça com a qual o diálogo é explicitado pelo narrador em várias passagens, veja-se o possível significado que pode ter uma menção aparentemente ingênua a Ariosto. Depois de contar um episódio em que a imaginação de Bentinho (o menino que ele foi, antes de se transformar em Dom Casmurro) é quase um delírio, o narrador comenta: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, (...)" (capítulo XXIX). O leitor, se sabe quem é Ariosto, entende que o parâmetro contra o qual Dom Casmurro dimensiona a imaginação de Bentinho é formidavelmente imaginoso, intricando ação prodigiosa em ação prodigiosa, ao longo dos 46 cantos de Orlando Furioso. O que talvez lhe escape é que a alusão é a Ariosto, autor de uma obra épica cujo herói-título enlouquece ao descobrir que foi preterido pela amada. É possível entrever o autor, por trás do narrador, a piscar-nos o olho por termos, finalmente, atinado com a sua astúcia. Não há como negar que é possível ouvir, nesse capítulo, a voz autoral de Machado de Assis inscrevendo no discurso de seu narrador Dom Casmurro um dado fundamental: há homens que enlouquecem de ciúme.
Em síntese: Dom Casmurro é um romance da maturidade plena de seu autor. Para alguns, é o romance perfeito, articulando de maneira impecável as várias instâncias narrativas: enredo, narrador, tempo, espaço, personagens. E é também um romance, como já se disse antes, sempre aberto, passível de inúmeras e enriquecedoras releituras.
O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1900) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1899), também existente na biblioteca da Fundação.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "cousa"/"coisa", "cálix"/"cálice"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego do adjetivo "centelhantes", atualizado pela edição Aguilar como "cintilantes"; o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia maluca"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado."
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, adotou-se uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós [...]"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("[...] enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.") e não uso de vírgula ("Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.") antes de oração consecutiva. Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Considerando-se a falta de rigor do original, no qual as falas das personagens vêm às vezes entre aspas, mas, na grande maioria das vezes, em novo parágrafo iniciado por travessão, decidiu-se respeitar a lição das edições utilizadas como fonte.
A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Dom Casmurro, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje. Sendo o enredo do romance o que é, "Deus" ocorre no texto inúmeras vezes. Para evitar a repetição do link em todas as ocorrências, optou-se por restringir a referência ao capítulo IX (em que Deus e Satanás aparecem como personagens da fantasia do tenor Marcolini, que concebe a vida como uma ópera e atribui o libreto ao primeiro e a música, ao segundo) e a frases feitas (como "Deus é soberano"). Nas demais ocorrências, quando "Deus" se refere à divindade consagrada na tradição judaico-cristã, não haverá links.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
CXV
DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS
Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrevê-los, quanto mais contá-los. Da circunstância nova que Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia nada.
- Nada?
- Quase nada.
- Então vale alguma cousa.
- Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vai tomar comigo.
- É tarde para tomar chá.
- Tomaremos depressa.
Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim desconfiado, como se cuidasse que eu recusava a circunstância nova por forrar-me a escrevê-la; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade.
Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina que possuía, um jeito, uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de Olímpio.
- Seria o negócio dos embargos - concluiu -; e ele que veio até aqui, a esta hora, é que está impressionado com a demanda.
- Tens razão.
Palavra puxa palavra, falei de outras dúvidas. Eu era então um poço delas; coaxavam dentro de mim, como verdadeiras rãs, a ponto de me tirarem o sono algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu!
- Já disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você; logo que eles passem e as saudades aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando o neto...
- Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel. Quando ele vai comigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças.
- Quem sabe se não anda doente?
- Vamos nós jantar com ela amanhã?
- Vamos... Não... Pois vamos.
Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus cabelos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse comparativamente fresco; era uma espécie de mocidade quinquagenária ou de ancianidade viçosa, à escolha... Mas nada de melancolias; não quero falar dos olhos molhados, à entrada e à saída. Pouco entrou na conversação. Também não era diferente da costumada. José Dias falou do casamento e suas belezas, da política, da Europa e da homeopatia, tio Cosme, das suas moléstias, prima Justina, da vizinhança, ou de José Dias, quando este saía da sala.
Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente me aconselhou que esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura. Dali em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infância. Ezequiel às vezes estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da saída, e ele enchia-me a cara de beijos.
CXVI
FILHO DO HOMEM
Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não havia nada, nem podia haver cousa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que ele ouvia "à bela e virtuosa Capitu".
- Agora, quando os ouço, entro também no coro; mas a princípio ficava envergonhadíssimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro confessar que ele foi uma verdadeira bênção do céu. Que digna senhora nos saiu a criança travessa de Matacavalos! O pai é que nos separou um pouco, enquanto não nos conhecíamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a sua nora e comadre...
- Então, mamãe?...
- Perfeitamente!
- Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?
- Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tem feito muito frio... Imagine a aflição dela, que andava o dia inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal...
Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando íamos nós a Matacavalos; mas não estendi tão longe a intimidade do agregado. José Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o Livro de Ezequiel, como soube depois) e perguntava-lhe: "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?" "Queres comer doce, filho do homem?"
- Que filho do homem é esse? - perguntou-lhe Capitu agastada.
- São os modos de dizer da Bíblia.
- Pois eu não gosto deles - replicou ela com aspereza.
- Tem razão, Capitu - concordou o agregado -. Você não imagina como a Bíblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vais, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?
- Não - atalhou Capitu -; já lhe vou tirando esse costume de imitar os outros.
- Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando?
- Não, Ezequiel - disse eu -, mamãe não quer.
Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar da cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando ria. Capitu ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começamos a falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias:
- O senhor anda assim.
Não pudemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou a cara, que o repreendeu e chamou a si foi Capitu.
- Não quero isso, ouviu?
CXVII
AMIGOS PRÓXIMOS
Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no Flamengo, casa que ainda ali vi, há dias, quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque os sonos, quando são pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas pode ser que fosse do mar, meio agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei por mim no Catete; tinha subido pela rua da Princesa, uma rua antiga... Ó ruas antigas! Ó casas antigas! Ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que no mau sentido, no sentido de velho e acabado.
Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo número. Não digo que número é para não irem indagar e cavar a história. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só casa, eu vivia na dele, ele, na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Matacavalos, com o seu muro de permeio.
Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei bárbaro algumas palavras mansas, quando os portugueses lhe propunham estabelecer ali ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo que eles viam dali. Que a sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde Ulisses e antes. Agora que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente há inimigos contíguos, mas também há amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia (salvo se ainda não era do seu tempo), esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter os corações agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passávamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dous pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória.
Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei:
- Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.
Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.
CXVIII
A MÃO DE SANCHA
Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis; ao contrário, a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas construções quase eternas.
O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos passado a noite no Flamengo, não só os dous casais inseparáveis, como ainda o agregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me à janela, disse-me que fôssemos lá jantar no dia seguinte; precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.
- Para os quatro? Uma contradança.
- Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.
Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para dentro, quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca.
- Vamos todos? - perguntei por fim.
- Vamos.
Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não se me daria beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez olhara para ela com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela desconhecida que passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora, e ela me fugisse outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencível... Invencível; esta palavra foi como uma bênção de padre à missa, que a gente recebe e repete em si mesma.
- O mar amanhã está de desafiar a gente - disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.
- Você entra no mar amanhã?
- Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões - disse ele batendo no peito -, e estes braços; apalpa.
Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra cousa; achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.
Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma sanção ao projeto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.
-... Uma senhora deliciosíssima - concluiu José Dias um discurso que vinha fazendo.
- Deliciosíssima! - repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me -: Realmente, uma bela noite!
- Como devem ser todas as daquela casa - continuou o agregado -. Cá fora, não; cá fora o mar está zangado; escute.
Ouvia-se o mar forte - como já se ouvia de casa -, a ressaca era grande e, a distância, viam-se crescer as ondas. Capitu e prima Justina, que iam adiante, detiveram-se numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal. Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora achava-lhes isto, agora, aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei mais que de costume.
O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que seria um prazer mais para elas irem juntas. Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado, nem têm maior duração. Agarrei-me a esta hipótese, que se conciliava com a mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e apertando...
Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra causa daquela crise; não é só o céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso, mas o acaso é um mero acidente; a melhor origem delas é o céu. Entretanto, como a timidez vem do céu, que nos dá a compleição, a virtude, filha dela, é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim refletiria, se pudesse; mas a princípio vaguei à toa. Paixão não era, nem inclinação. Capricho seria, ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.
CXIX
NÃO FAÇA ISSO, QUERIDA!
A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.
CXX
OS AUTOS
Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café, percorri os jornais e fui estudar uns autos. Capitu e prima Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desapareceu inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas, inadmissíveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Sousa...
Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um ano antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costas do cartão: "Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70". Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquela manhã, e espancaram de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha vista era boa; eu podia lê-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.
CXXI
A CATÁSTROFE
No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na cancela, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava:
- Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.
Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu e corri ao Flamengo.
Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadáver.
CXXII
O ENTERRO
A viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de lá cerca de onze horas; Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estúpido, outra, enfastiada apenas.
- Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.
Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos amigos foi numerosa. Praia, ruas, praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares. A casa, não sendo grande, não podiam lá caber todos; muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do morto. José Dias ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, mas havendo acordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco; estávamos em março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.
Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas linhas e mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me:
- Então, vamos ouvi-lo?
- Quatro palavras.
Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No tilbury em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas criaturas que prometiam ficar por muito tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou três perguntas sobre a minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a casa, deitei aquelas emoções ao papel; tal seria o discurso.
CXXIII
OLHOS DE RESSACA
Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres, todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.