Romance

Dom Casmurro

1900

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Dom Casmurro foi o sétimo romance publicado por Machado de Assis, seguindo-se a Quincas Borba (1891) e precedendo Esaú e Jacó (1904). Objeto de numerosos estudos e releituras, a obra é considerada por grande parte da crítica o ápice da ficção machadiana, e seu enredo e personagens instalaram-se como poucos no imaginário literário brasileiro.

Desde A mão e a luva, todos os romances de Machado vinham sendo publicados primeiramente em diferentes periódicos, saindo depois em livro, às vezes poucos meses depois de publicado na imprensa o último capítulo. Dom Casmurro, reencontrando Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, sai direto em volume, começando a circular no Brasil em janeiro de 1900, embora a data oficial de publicação seja 1899, quando, nos últimos dias de dezembro, o livro ficou pronto, em Paris, sede da casa editora Garnier.

Nem só por esse aspecto por assim dizer editorial o romance de 1899 reencontra o de 1872. Vários críticos têm apontado semelhanças entre os dois enredos, em que a insegurança do protagonista se constitui como barreira à felicidade conjugal possível, já que ambos - Félix, de Ressurreição, e Bentinho, de Dom Casmurro - deixam-se dominar pela dúvida, pela suspeita em relação à fidelidade das mulheres que amam. No caso do primeiro romance, a jovem viúva Lívia, com quem Félix não chega a se casar, é vítima das dúvidas do noivo, que desconfia, infundadamente, de que ela poderia ter sido infiel ao marido e que, portanto, poderia também vir a traí-lo. No caso de Dom Casmurro, a coisa se complica, pois a narrativa é de primeira pessoa, e o narrador-protagonista procura impor sua visão dos fatos, permeada de embustes, manipulações e indicações sagazmente dispostas ao longo do texto para incutir no leitor a dúvida em relação ao que está sendo dito. Com o seu relato, quer convencer-nos de que a mulher o traiu com seu melhor amigo. A ausência de um narrador neutro, de terceira pessoa, impossibilita qualquer certeza por parte do leitor. Afinal, só se conhece a sua versão dos fatos. Quem sabe, caso fosse permitido a Capitu narrar os acontecimentos do seu ponto de vista, teríamos outra história? Assim, Dom Casmurro é um romance permanentemente aberto, deixando ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perplexidades do que convicções. E talvez seja esse o seu maior encanto, que se reencena a cada leitura, para além da questão que vem ocupando a mente de muitas gerações: Capitu traiu ou não traiu o marido?

De fato, o romance é uma obra-prima de concisão, elegância, ambiguidade, trazendo quase a cada página um desmentido ao que se leu na página anterior. Basta aqui um exemplo: o narrador quer que acreditemos que o filho que tem com Capitu é na verdade filho de seu grande amigo, Escobar, e chega a essa conclusão pela semelhança física que parece haver entre os dois. No entanto, ao narrar uma visita que faz à casa de uma amiga de Capitu, quando ainda eram adolescentes enamorados, relata candidamente que o pai da amiga lhe aponta um retrato da mulher, com quem Capitu seria parecidíssima, embora não houvesse entre elas qualquer parentesco (capítulo LXXXII). E põe na voz dessa personagem, Gurgel, a seguinte frase: "Na vida, há dessas semelhanças esquisitas." Não seria o caso, então, de o leitor perguntar, ao fim do livro, se a eventual semelhança de Ezequiel com Escobar não seria também uma dessas semelhanças esquisitas?

O livro tem, porém, muitos outros encantos além do famoso enigma do enredo. Trata-se de uma narrativa quase impressionista, apresentando passagens onde a imprecisão de contornos, a mistura de tons, a preferência por atmosferas crepusculares aproximam o romance das narrativas do Impressionismo do fim do século XIX e mesmo do início do século XX. Veja-se, por exemplo, o capítulo LI, poeticamente intitulado "Entre luz e fusco". Trata-se do momento em que Bentinho vai despedir-se de Capitu antes de ir para o seminário, em cumprimento a uma promessa de sua mãe ainda antes de ele nascer. Talvez, na primeira leitura, o leitor nem se detenha sobre essa passagem. Mas, quando lê de novo, vislumbra a poesia escondida sob a prosa enxuta, em que os três segmentos do período oracional são redondilhas menores (versos de cinco sílabas métricas) disfarçadas, como se o narrador tivesse pudor do próprio lirismo: "Entre luz e fusco/ tudo há de ser breve/ como esse instante."

Outro expediente narrativo que faz de Dom Casmurro um romance que resiste a inúmeras leituras é o recurso à intertextualidade, isto é, a presença, na obra, de várias obras da literatura universal, com as quais o texto machadiano dialoga de maneira fecunda. Deixando de lado a relação com Otelo, de Shakespeare, peça com a qual o diálogo é explicitado pelo narrador em várias passagens, veja-se o possível significado que pode ter uma menção aparentemente ingênua a Ariosto. Depois de contar um episódio em que a imaginação de Bentinho (o menino que ele foi, antes de se transformar em Dom Casmurro) é quase um delírio, o narrador comenta: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, (...)" (capítulo XXIX). O leitor, se sabe quem é Ariosto, entende que o parâmetro contra o qual Dom Casmurro dimensiona a imaginação de Bentinho é formidavelmente imaginoso, intricando ação prodigiosa em ação prodigiosa, ao longo dos 46 cantos de Orlando Furioso. O que talvez lhe escape é que a alusão é a Ariosto, autor de uma obra épica cujo herói-título enlouquece ao descobrir que foi preterido pela amada. É possível entrever o autor, por trás do narrador, a piscar-nos o olho por termos, finalmente, atinado com a sua astúcia. Não há como negar que é possível ouvir, nesse capítulo, a voz autoral de Machado de Assis inscrevendo no discurso de seu narrador Dom Casmurro um dado fundamental: há homens que enlouquecem de ciúme.

Em síntese: Dom Casmurro é um romance da maturidade plena de seu autor. Para alguns, é o romance perfeito, articulando de maneira impecável as várias instâncias narrativas: enredo, narrador, tempo, espaço, personagens. E é também um romance, como já se disse antes, sempre aberto, passível de inúmeras e enriquecedoras releituras.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1900) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1899), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "cousa"/"coisa", "cálix"/"cálice"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego do adjetivo "centelhantes", atualizado pela edição Aguilar como "cintilantes"; o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia maluca"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado."

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, adotou-se uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós [...]"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("[...] enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.") e não uso de vírgula ("Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.") antes de oração consecutiva. Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Considerando-se a falta de rigor do original, no qual as falas das personagens vêm às vezes entre aspas, mas, na grande maioria das vezes, em novo parágrafo iniciado por travessão, decidiu-se respeitar a lição das edições utilizadas como fonte.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Dom Casmurro, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje. Sendo o enredo do romance o que é, "Deus" ocorre no texto inúmeras vezes. Para evitar a repetição do link em todas as ocorrências, optou-se por restringir a referência ao capítulo IX (em que Deus e Satanás aparecem como personagens da fantasia do tenor Marcolini, que concebe a vida como uma ópera e atribui o libreto ao primeiro e a música, ao segundo) e a frases feitas (como "Deus é soberano"). Nas demais ocorrências, quando "Deus" se refere à divindade consagrada na tradição judaico-cristã, não haverá links.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

abril de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

XCV

O PAPA

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar atrás. Na primeira semana disse-me este em casa:

- Agora é certo que você vai sair já do seminário.

- Como?

- Espere até amanhã. Vou jogar com eles, que me chamaram; amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na rua, indo à missa, conto-lhe o que há. A ideia é tão santa que não está mal no santuário. Amanhã, Bentinho.

- Mas é cousa certa?

- Certíssima!

No dia seguinte revelou-me o mistério. Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele, estava arrependida do que fizera, e desejaria ver-me cá fora, mas entendia que o vínculo moral da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompê-lo, e para tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos apóstolos. Assim que, ele e eu iríamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me parecia?

- Parece-me bem - respondi depois de alguns segundos de reflexão -. Pode ser um bom remédio.

- É o único, Bentinho, é o único! Vou já hoje conversar com D. Glória, exponho-lhe tudo, e podemos partir daqui a dous meses, ou antes...

- Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

- Oh! Bentinho! - interrompeu o agregado -. Pensar em quê? Você o que quer... Digo? Não se amofina com o seu velho? Você o que quer é consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pés juntos que quisesse consultar ninguém. E que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe confiasse tal assunto. Não, nem reitor, nem professor, nem ninguém; era só o tempo de refletir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a ideia não me parecia má.

- Não?

- Não.

- Pois resolvamos hoje mesmo.

- Não se vai a Roma brincando.

- Quem tem boca vai a Roma, e boca no nosso caso é a moeda. Ora, você pode muito bem gastar consigo... Comigo, não; um par de calças, três camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como São Paulo, que vivia do ofício enquanto ia pregando a palavra divina. Pois eu vou, não pregá-la, mas buscá-la. Levaremos cartas do internúncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a objeção que se pode opor a esta ideia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta refletir que é muito mais solene e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com o sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao santíssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na terra seja igualmente amado no céu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capítulo, e ele não acabou o discurso. Falou a todos os meus sentimentos de católico e de namorado. Vi a alma aliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu só geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente, também, mas a distância que estaria da vontade de Capitu é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe, não iria; mas era preciso ouvi-la, e assim também a Escobar, que me daria um bom conselho.

XCVI

UM SUBSTITUTO

Expus a Capitu a ideia de José Dias. Ouviu-me atentamente, e acabou triste.

- Você indo - disse ela -, esquece-me inteiramente.

- Nunca!

- Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D. Glória está morta para que você saia do seminário.

- Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitu não achava outra ideia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediu-me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.

- Juro.

- Por Deus?

- Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.

- Mas se o papa não tiver ainda soltado a você?

- Mando dizer isso mesmo.

- E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse. Capitu meteu o negócio à bulha, rindo e chamando-me disfarçado. Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim não consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa, e eu que visse também por meu lado.

Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu com igual atenção e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quase me comeram de contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de ideia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade:

- Não, Bentinho, não é preciso isso. Há melhor - não digo melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo, mas há cousa que produz o mesmo efeito.

- Que é?

- Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você...

- Entendo, entendo, é isso mesmo.

- Não acha? - continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário -; ele lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se ele hesitar, fala-se ao Sr. bispo.

Eu, refletindo:

- Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre.

Escobar observou que, pelo lado econômico, a questão era fácil; minha mãe gastaria o mesmo que comigo, e um órfão não precisaria grandes comodidades. Citou a soma dos aluguéis das casas, 1.070$000, além dos escravos...

- Não há outra cousa - disse eu.

- E saímos juntos.

- Você também?

- Também eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O próprio latim não é preciso; para que no comércio?

- In hoc signo vinces - disse eu rindo.

Sentia-me pilhérico. Oh! Como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim, quando tornei de longe, e agradeci de novo o plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me contentíssimo.

- Ainda uma vez - disse ele gravemente -, a religião e a liberdade fazem boa companhia.

XCVII

A SAÍDA

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminário no fim do ano.

Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já, debaixo do recolhimento casto, uns assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.

XCVIII

CINCO ANOS

Venceu a razão; fui-me aos estudos.

Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dois era bacharel em direito.

Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabelos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha graduação, e descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel fosse ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis dar demissão da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a ideia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus primeiros tentâmens comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque: "D. Glória é medrosa e não tem ambição."

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou - adivinha com quem -, casou com a boa Sancha, a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua cunhadinha". Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.

XCIX

O FILHO É A CARA DO PAI

Minha mãe, quando eu regressei bacharel, quase estalou de felicidade. Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos abraçados:

- Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!

Minha mãe, entre lágrimas:

- Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

- Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno - concluiu por chalaça -. E diga-me agora, mana Glória, não foi melhor que ele não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz.

- Como vai o meu substituto?

- Vai indo, ordena-se para o ano - respondeu tio Cosme -. Hás de ir ver a ordenação; eu também, se o meu senhor coração consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.

- Justamente! - exclamou minha mãe -. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco...

- Sim, mana Glória, o bigode realmente... Mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever. Tio Cosme, para alegrá-la, chamava-me doutor, José Dias também, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Pádua, a filha, e ela mesma repetiam-me o título.

C

"TU SERÁS FELIZ, BENTINHO"

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava, calado e zeloso. Uma fada invisível desceu ali e me disse em voz igualmente macia e cálida: "Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz."

- E por que não seria feliz? - perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me.

- Você ouviu? - perguntei eu erguendo-me também, espantado.

- Ouviu o quê?

- Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

- É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: "Tu serás rei, Macbeth!" - "Tu serás feliz, Bentinho!" Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:

- ... Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali está, que não é favor de ninguém. A distinção que tirou em todas as matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a glória, é também outra cousa... Ah! Você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias está aí para um canto, é caju chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é moço muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar...

- Mas que é?

- Que há de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é um anjíssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição daquela moça. Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que é que não me contou também o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?

- Mamãe aprova deveras?

- Pois então? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. Pádua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e entregá-lo à filha. A filha é que distribui o dinheiro, paga as contas, faz o rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o ano passado. E quanto à formosura você sabe melhor que ninguém...

- Mas, deveras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento?

- Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitu não daria uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D. Glória não negou e até deu um ar de riso.

- Mamãe, sempre que me escrevia, falava de Capitu.

- Você sabe que elas se dão muito, e por isso é que sua prima anda cada vez mais amuada. Talvez agora case mais depressa.

- Prima Justina?

- Não sabe? São contos, naturalmente; mas enfim, o doutor João da Costa enviuvou há poucos meses, e dizem (não sei, o protonotário é que me contou), dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si, casando-se. Há de ver que não há nada, mas não é fora de propósito, conquanto ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos... Só se ela é um cemitério - comentou rindo; e logo sério -: Digo isto por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia, mas já então sem palavras: "Tu serás feliz, Bentinho!" E a voz de Capitu me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim também a de Escobar, os quais ambos me confirmaram a notícia de José Dias pela sua própria impressão. Enfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação própria de mãe: "Tu serás feliz, meu filho!"

CI

NO CÉU

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. São Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: "As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida..."Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do Cântico, tão concertadamente, que desmentiriam a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. A música ia com o texto, como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner. Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura. É verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: "Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado". Quanto às de São Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo.

CII

DE CASADA

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro, mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.

De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos da adolescência, a denúncia que está nos primeiros capítulos, e ríamos de José Dias, que conspirou a nossa desunião, e acabou festejando o nosso consórcio. Uma ou outra vez, falávamos em descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir.

Não obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer. Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim.

- Eu?

- Parece.

- Você há de ser sempre criança - disse ela fechando-me a cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus -. Então eu esperei tantos anos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é realmente assim, creio que eles podem estar desejosos de ver-nos e imaginar alguma doença; e confesso, pela minha parte, que queria ver papai.

- Pois vamos amanhã.

- Não; há de ser com tempo encoberto - redarguiu rindo.

Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciência continuou, e descemos com sol.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: "Quem são?" E um sabido explicava: "Este é o doutor Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Matacavalos." E ambos os dous: "É uma mocetona!"

CIII

A FELICIDADE TEM BOA ALMA

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a única pessoa cá de baixo que nos visitou na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras que eram músicas verdadeiras; não as ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves criadas em dous vãos de telhados contíguos. Imagina o resto, as aves emplumando as asas e subindo ao céu, e o céu agora mais largo para poder contê-las também. Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alma.

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