Romance

Dom Casmurro

1900

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Dom Casmurro foi o sétimo romance publicado por Machado de Assis, seguindo-se a Quincas Borba (1891) e precedendo Esaú e Jacó (1904). Objeto de numerosos estudos e releituras, a obra é considerada por grande parte da crítica o ápice da ficção machadiana, e seu enredo e personagens instalaram-se como poucos no imaginário literário brasileiro.

Desde A mão e a luva, todos os romances de Machado vinham sendo publicados primeiramente em diferentes periódicos, saindo depois em livro, às vezes poucos meses depois de publicado na imprensa o último capítulo. Dom Casmurro, reencontrando Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, sai direto em volume, começando a circular no Brasil em janeiro de 1900, embora a data oficial de publicação seja 1899, quando, nos últimos dias de dezembro, o livro ficou pronto, em Paris, sede da casa editora Garnier.

Nem só por esse aspecto por assim dizer editorial o romance de 1899 reencontra o de 1872. Vários críticos têm apontado semelhanças entre os dois enredos, em que a insegurança do protagonista se constitui como barreira à felicidade conjugal possível, já que ambos - Félix, de Ressurreição, e Bentinho, de Dom Casmurro - deixam-se dominar pela dúvida, pela suspeita em relação à fidelidade das mulheres que amam. No caso do primeiro romance, a jovem viúva Lívia, com quem Félix não chega a se casar, é vítima das dúvidas do noivo, que desconfia, infundadamente, de que ela poderia ter sido infiel ao marido e que, portanto, poderia também vir a traí-lo. No caso de Dom Casmurro, a coisa se complica, pois a narrativa é de primeira pessoa, e o narrador-protagonista procura impor sua visão dos fatos, permeada de embustes, manipulações e indicações sagazmente dispostas ao longo do texto para incutir no leitor a dúvida em relação ao que está sendo dito. Com o seu relato, quer convencer-nos de que a mulher o traiu com seu melhor amigo. A ausência de um narrador neutro, de terceira pessoa, impossibilita qualquer certeza por parte do leitor. Afinal, só se conhece a sua versão dos fatos. Quem sabe, caso fosse permitido a Capitu narrar os acontecimentos do seu ponto de vista, teríamos outra história? Assim, Dom Casmurro é um romance permanentemente aberto, deixando ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perplexidades do que convicções. E talvez seja esse o seu maior encanto, que se reencena a cada leitura, para além da questão que vem ocupando a mente de muitas gerações: Capitu traiu ou não traiu o marido?

De fato, o romance é uma obra-prima de concisão, elegância, ambiguidade, trazendo quase a cada página um desmentido ao que se leu na página anterior. Basta aqui um exemplo: o narrador quer que acreditemos que o filho que tem com Capitu é na verdade filho de seu grande amigo, Escobar, e chega a essa conclusão pela semelhança física que parece haver entre os dois. No entanto, ao narrar uma visita que faz à casa de uma amiga de Capitu, quando ainda eram adolescentes enamorados, relata candidamente que o pai da amiga lhe aponta um retrato da mulher, com quem Capitu seria parecidíssima, embora não houvesse entre elas qualquer parentesco (capítulo LXXXII). E põe na voz dessa personagem, Gurgel, a seguinte frase: "Na vida, há dessas semelhanças esquisitas." Não seria o caso, então, de o leitor perguntar, ao fim do livro, se a eventual semelhança de Ezequiel com Escobar não seria também uma dessas semelhanças esquisitas?

O livro tem, porém, muitos outros encantos além do famoso enigma do enredo. Trata-se de uma narrativa quase impressionista, apresentando passagens onde a imprecisão de contornos, a mistura de tons, a preferência por atmosferas crepusculares aproximam o romance das narrativas do Impressionismo do fim do século XIX e mesmo do início do século XX. Veja-se, por exemplo, o capítulo LI, poeticamente intitulado "Entre luz e fusco". Trata-se do momento em que Bentinho vai despedir-se de Capitu antes de ir para o seminário, em cumprimento a uma promessa de sua mãe ainda antes de ele nascer. Talvez, na primeira leitura, o leitor nem se detenha sobre essa passagem. Mas, quando lê de novo, vislumbra a poesia escondida sob a prosa enxuta, em que os três segmentos do período oracional são redondilhas menores (versos de cinco sílabas métricas) disfarçadas, como se o narrador tivesse pudor do próprio lirismo: "Entre luz e fusco/ tudo há de ser breve/ como esse instante."

Outro expediente narrativo que faz de Dom Casmurro um romance que resiste a inúmeras leituras é o recurso à intertextualidade, isto é, a presença, na obra, de várias obras da literatura universal, com as quais o texto machadiano dialoga de maneira fecunda. Deixando de lado a relação com Otelo, de Shakespeare, peça com a qual o diálogo é explicitado pelo narrador em várias passagens, veja-se o possível significado que pode ter uma menção aparentemente ingênua a Ariosto. Depois de contar um episódio em que a imaginação de Bentinho (o menino que ele foi, antes de se transformar em Dom Casmurro) é quase um delírio, o narrador comenta: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, (...)" (capítulo XXIX). O leitor, se sabe quem é Ariosto, entende que o parâmetro contra o qual Dom Casmurro dimensiona a imaginação de Bentinho é formidavelmente imaginoso, intricando ação prodigiosa em ação prodigiosa, ao longo dos 46 cantos de Orlando Furioso. O que talvez lhe escape é que a alusão é a Ariosto, autor de uma obra épica cujo herói-título enlouquece ao descobrir que foi preterido pela amada. É possível entrever o autor, por trás do narrador, a piscar-nos o olho por termos, finalmente, atinado com a sua astúcia. Não há como negar que é possível ouvir, nesse capítulo, a voz autoral de Machado de Assis inscrevendo no discurso de seu narrador Dom Casmurro um dado fundamental: há homens que enlouquecem de ciúme.

Em síntese: Dom Casmurro é um romance da maturidade plena de seu autor. Para alguns, é o romance perfeito, articulando de maneira impecável as várias instâncias narrativas: enredo, narrador, tempo, espaço, personagens. E é também um romance, como já se disse antes, sempre aberto, passível de inúmeras e enriquecedoras releituras.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1900) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1899), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "cousa"/"coisa", "cálix"/"cálice"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego do adjetivo "centelhantes", atualizado pela edição Aguilar como "cintilantes"; o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia maluca"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado."

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, adotou-se uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós [...]"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("[...] enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.") e não uso de vírgula ("Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.") antes de oração consecutiva. Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Considerando-se a falta de rigor do original, no qual as falas das personagens vêm às vezes entre aspas, mas, na grande maioria das vezes, em novo parágrafo iniciado por travessão, decidiu-se respeitar a lição das edições utilizadas como fonte.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Dom Casmurro, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje. Sendo o enredo do romance o que é, "Deus" ocorre no texto inúmeras vezes. Para evitar a repetição do link em todas as ocorrências, optou-se por restringir a referência ao capítulo IX (em que Deus e Satanás aparecem como personagens da fantasia do tenor Marcolini, que concebe a vida como uma ópera e atribui o libreto ao primeiro e a música, ao segundo) e a frases feitas (como "Deus é soberano"). Nas demais ocorrências, quando "Deus" se refere à divindade consagrada na tradição judaico-cristã, não haverá links.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

abril de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

LXXVI

EXPLICAÇÃO

Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me achasse estirado na cama, com os olhos no teto, lembrou-me a recomendação que minha mãe fazia de me não deitar depois do jantar para evitar alguma congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitu ria agora menos e falava mais baixo; estaria aflita com a minha reclusão, mas nem por isso me abalou.

Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava diferente. A minha dor agora complicava-se do receio de haver ido além do que convinha, deixando de examinar o negócio. Posto que a cabeça me doesse um pouco, simulei maior incômodo, com o fim de não ir ao seminário e falar a Capitu. Podia estar zangada comigo, podia não querer-me agora e preferir o cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-la e julgá-la; podia ser que tivesse defesa e explicação.

Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão da véspera, disse-me que era grande injúria que lhe fazia; não podia crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse que pudesse crer... E aqui romperam-lhe lágrimas, e fez um gesto de separação; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe das mãos e beijei-as com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e pelas lágrimas; depois suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que ali passavam às tardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular.

- E que poderia haver, se ele vai casar? - concluiu.

- Vai casar?

Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da rua dos Barbonos. Esta razão quadrou-me mais que tudo, e ela o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir mais à janela.

- Não! Não! Não! Não lhe peço isto!

Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, à primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entre nós. Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir; era a primeira suspeita e a última.

LXXVII

PRAZER DAS DORES VELHAS

Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa que não sei se explico bem, e é que as dores daquela quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo que ele me lembra outros que não quisera lembrar por nada.

LXXVIII

SEGREDO POR SEGREDO

De resto, naquele mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar a alguém o que se passava entre mim e Capitu. Não referi tudo, mas só uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminário, na quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era sua intenção ir ver-me, se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o que é que tivera, e se estava bom de todo.

- Estou.

Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias depois disse que me estavam achando muito distraído; era bom disfarçar o mais que pudesse. Ele, à sua parte, tinha razões para andar distraído também, mas buscava ficar atento.

- Então parece-lhe...?

- Sim, você às vezes está que não ouve nada, olhando para ontem; disfarce, Santiago.

- Tenho motivos...

- Creio; ninguém se distrai à toa.

- Escobar...

Hesitei; ele esperou.

- Que é?

- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho propriamente um amigo.

- Se eu disser a mesma cousa - retorquiu ele sorrindo - perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.

Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.

- Escobar, você é capaz de guardar um segredo?

- Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso...

- Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço sério, e faço de conta que me confesso a um padre.

- Se precisa de absolvição, está absolvido.

- Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e esperam; mas eu não posso ser padre.

- Nem eu, Santiago.

- Nem você?

- Segredo por segredo; também eu tenho o propósito de não acabar o curso; meu desejo é o comércio, mas não diga nada, absolutamente nada; fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou religioso, mas o comércio é a minha paixão.

- Só isso?

- Que mais há de ser?

Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidência, tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse "uma pessoa..." com reticência. Uma pessoa...? Não foi preciso mais para que ele entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem cuides que pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os olhos. Então contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assunto. Escobar escutava com interesse; no fim da nossa conversação, declarou-me que era segredo enterrado em cemitério. Deu-me de conselho que não me fizesse padre. Não podia levar para a Igreja um coração que não era do céu, mas da terra; seria um mau padre, nem seria padre. Ao contrário, Deus protegia os sinceros; uma vez que eu só podia servi-lo no mundo, aí me cumpria ficar.

Não calculas o prazer que me deu a confidência que lhe fiz. Era como que uma felicidade mais. Aquele coração moço que me ouvia e me dava razão trazia a este mundo um aspecto extraordinário. Era um grande e belo mundo, a vida, uma carreira excelente, e eu nem mais nem menos, um mimoso do céu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo, nem o melhor; não lhe referi o capítulo do penteado, por exemplo, nem outros assim; mas o contado era muito.

Que voltamos ao assunto, não é preciso dizê-lo. Voltamos uma e muitas vezes; eu louvava as qualidades morais de Capitu, matéria adequada à admiração de um seminarista, a simpleza, a modéstia, o amor do trabalho e os costumes religiosos. Não lhe tocava nas graças físicas, nem ele me perguntava por elas; apenas insinuei a conveniência de a conhecer de vista.

- Agora não é possível - disse-lhe na primeira semana, ao voltar de casa -; Capitu vai passar uns dias com uma amiga da rua dos Inválidos. Quando ela vier, você irá lá; mas pode ir antes, pode ir sempre; por que não foi ontem jantar comigo?

- Você não me convidou.

- Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito de você.

- Também eu fiquei gostando de todos, mas se é possível fazer distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora adorável.

- Não é verdade? - retorqui cheio de alvoroço.

LXXIX

VAMOS AO CAPÍTULO

Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que trazia no rosto impressa aquela qualidade. Nem de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara com ela quatro palavras. Uma só bastava a penetrar-lhe a essência íntima; sim, sim, minha mãe era adorável. Por mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria, não podia deixar de sentir que era adorável, como uma santa.

E porventura era certo que me obrigava à carreira eclesiástica? Aqui chego a um ponto, que esperei viesse depois, tanto que já pesquisava em que altura lhe daria um capítulo. Realmente, não cabia dizer agora o que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, melhor é acabar com ele. É grave e complexo, delicado e sutil, um destes em que o autor tem de atender ao filho, e o filho há de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa mais adorável, sem prejuízo (ao contrário!) da parte humana e terrestre que havia nela. Basta de prefácio ao capítulo; vamos ao capítulo.

LXXX

VENHAMOS AO CAPÍTULO

Venhamos ao capítulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que a minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo está contado oportunamente. Outrossim, sabes que, para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus projetos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria, no mais íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, é possível que alterasse os planos, e, como tinha a vocação da política, é provável que me encaminhasse somente à política, embora os dous ofícios não fossem nem sejam inconciliáveis, e mais de um padre entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu pai morrera sem saber nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora.

Um dos aforismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na páscoa, a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras, e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a adiar a minha entrada no seminário. É o que se chama, comercialmente falando, reformar uma letra. O credor era arquimilionário, não dependia daquela quantia para comer, e consentiu nas transferências de pagamento, sem sequer agravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de entregar o preço ajustado; está num dos capítulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a São José.

Ora, nesse mesmo capítulo, verteu ela umas lágrimas, que enxugou sem explicar, e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, nem prima Justina, nem o agregado José Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atrás da porta, não as entendi mais que eles. Bem examinadas, apesar da distância, vê-se que eram saudades prévias, a mágoa da separação - e pode ser também (é o princípio do ponto), pode ser que arrependimento da promessa. Católica e devota, sentia muito bem que as promessas se cumprem; a questão é se é oportuno e adequado fazê-las todas, e naturalmente inclinava-se à negativa. Por que é que Deus a puniria, negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem necessidade de lha dedicar ab ovo. Era um raciocínio tardio; devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminário.

Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava com os seus grandes olhos ingênuos. Minha mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para conservar-me consigo, fora do clero, casado e pai; é o que presumo, assim como suponho que rejeitou tal ideia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti sempre na corrente da vida ordinária.

Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-se-lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anunciado), a esperança de que o nosso amor, tornando-me absolutamente incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus nem pelo diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguém a importância de uma dívida para levá-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro.

Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o céu e a terra, por modo idêntico ou análogo. O céu e a terra acabam conciliando-se; eles são quase irmãos gêmeos, tendo o céu sido feito no segundo dia e a terra, no terceiro. Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No momento de fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: "Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus". Tal seria a esperança secreta de minha mãe.

Capitu era naturalmente o anjo da Escritura. A verdade é que minha mãe não podia tê-la agora longe de si. A afeição crescente era manifesta por atos extraordinários. Capitu passou a ser a flor da casa, o sol das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre ambas como a senha da vida futura.

LXXXI

UMA PALAVRA

Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma palavra de minha mãe. Agora se entenderá que ela me dissesse, no primeiro sábado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitu estava na rua dos Inválidos, com sinhazinha Gurgel:

- Por que não vais vê-la? Não me disseste que o pai de Sancha te ofereceu a casa?

- Ofereceu.

- Pois então? Mas é se queres. Capitu devia ter voltado hoje para acabar um trabalho comigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse lá.

- Talvez ficassem namorando - insinuou prima Justina.

Não a matei por não ter à mão ferro nem corda, pistola nem punhal; mas os olhos que lhe deitei, se pudessem matar, teriam suprido tudo. Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vítima. Prima Justina escapou aos meus; eu é que não escapei ao efeito da insinuação, e no domingo, às onze horas, corri à rua dos Inválidos.

O pai de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava enferma; caíra na véspera com uma febre, que se ia agravando. Como ele queria muito à filha, pensava já vê-la morta, e anunciou-me que se mataria também. Eis aqui um capítulo fúnebre como um cemitério, mortes, suicídios e assassinatos. Eu ansiava por um raio de luz clara e céu azul. Foi Capitu que os trouxe à porta da sala, vindo dizer ao pai de Sancha que a filha o mandara chamar.

- Está pior? - perguntou Gurgel assustado.

- Não, senhor, mas quer falar-lhe.

- Fique aqui um bocadinho - disse-lhe ele; e voltando-se para mim -: É a enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu já volto.

Capitu trazia sinais de fadiga e comoção, mas tão depressa me viu, ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca e lépida, não menos que espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me, quis que lhe falasse, e efetivamente conversamos por alguns minutos, mas tão baixo e abafado que nem as paredes ouviram, elas que têm ouvidos. De resto, se elas ouviram algo, nada entenderam, nem elas nem os móveis, que estavam tão tristes como o dono.

LXXXII

O CANAPÉ

Deles, só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação moral, visto que nos ofereceu os serviços da sua palhinha, com tal insistência que os aceitamos e nos sentamos. Data daí a opinião particular que tenho do canapé. Ele faz aliar a intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido; mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturais dirão outra cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu. Vagamente lembra-me que lhe perguntei se a demora ali seria grande...

- Não sei; a febre parece que cede... mas...

Também me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita à rua dos Inválidos, com a pura verdade, isto é, a conselho de minha mãe.

- Conselho dela? - murmurou Capitu.

E acrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente:

- Seremos felizes!

Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os seus serviços às nossas mãos presas e às nossas cabeças juntas ou quase juntas.

LXXXIII

O RETRATO

Gurgel tornou à sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu levantei-me depressa e não achei compostura; metia os olhos pelas cadeiras. Ao contrário, Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre aumentara.

- Não - disse ele.

Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de mistério da parte de Capitu; voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor. Todas as minhas invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?

- Está uma moça - observou Gurgel olhando também para ela.

Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras, as formas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a mesma cousa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até à cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca, outro império. Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o retrato.

Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa. Também achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao gênio, era um; pareciam irmãs.

- Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha; a mãe não era mais amiga dela... Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas.

A+
A-