Romance

Dom Casmurro

1900

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Dom Casmurro foi o sétimo romance publicado por Machado de Assis, seguindo-se a Quincas Borba (1891) e precedendo Esaú e Jacó (1904). Objeto de numerosos estudos e releituras, a obra é considerada por grande parte da crítica o ápice da ficção machadiana, e seu enredo e personagens instalaram-se como poucos no imaginário literário brasileiro.

Desde A mão e a luva, todos os romances de Machado vinham sendo publicados primeiramente em diferentes periódicos, saindo depois em livro, às vezes poucos meses depois de publicado na imprensa o último capítulo. Dom Casmurro, reencontrando Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, sai direto em volume, começando a circular no Brasil em janeiro de 1900, embora a data oficial de publicação seja 1899, quando, nos últimos dias de dezembro, o livro ficou pronto, em Paris, sede da casa editora Garnier.

Nem só por esse aspecto por assim dizer editorial o romance de 1899 reencontra o de 1872. Vários críticos têm apontado semelhanças entre os dois enredos, em que a insegurança do protagonista se constitui como barreira à felicidade conjugal possível, já que ambos - Félix, de Ressurreição, e Bentinho, de Dom Casmurro - deixam-se dominar pela dúvida, pela suspeita em relação à fidelidade das mulheres que amam. No caso do primeiro romance, a jovem viúva Lívia, com quem Félix não chega a se casar, é vítima das dúvidas do noivo, que desconfia, infundadamente, de que ela poderia ter sido infiel ao marido e que, portanto, poderia também vir a traí-lo. No caso de Dom Casmurro, a coisa se complica, pois a narrativa é de primeira pessoa, e o narrador-protagonista procura impor sua visão dos fatos, permeada de embustes, manipulações e indicações sagazmente dispostas ao longo do texto para incutir no leitor a dúvida em relação ao que está sendo dito. Com o seu relato, quer convencer-nos de que a mulher o traiu com seu melhor amigo. A ausência de um narrador neutro, de terceira pessoa, impossibilita qualquer certeza por parte do leitor. Afinal, só se conhece a sua versão dos fatos. Quem sabe, caso fosse permitido a Capitu narrar os acontecimentos do seu ponto de vista, teríamos outra história? Assim, Dom Casmurro é um romance permanentemente aberto, deixando ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perplexidades do que convicções. E talvez seja esse o seu maior encanto, que se reencena a cada leitura, para além da questão que vem ocupando a mente de muitas gerações: Capitu traiu ou não traiu o marido?

De fato, o romance é uma obra-prima de concisão, elegância, ambiguidade, trazendo quase a cada página um desmentido ao que se leu na página anterior. Basta aqui um exemplo: o narrador quer que acreditemos que o filho que tem com Capitu é na verdade filho de seu grande amigo, Escobar, e chega a essa conclusão pela semelhança física que parece haver entre os dois. No entanto, ao narrar uma visita que faz à casa de uma amiga de Capitu, quando ainda eram adolescentes enamorados, relata candidamente que o pai da amiga lhe aponta um retrato da mulher, com quem Capitu seria parecidíssima, embora não houvesse entre elas qualquer parentesco (capítulo LXXXII). E põe na voz dessa personagem, Gurgel, a seguinte frase: "Na vida, há dessas semelhanças esquisitas." Não seria o caso, então, de o leitor perguntar, ao fim do livro, se a eventual semelhança de Ezequiel com Escobar não seria também uma dessas semelhanças esquisitas?

O livro tem, porém, muitos outros encantos além do famoso enigma do enredo. Trata-se de uma narrativa quase impressionista, apresentando passagens onde a imprecisão de contornos, a mistura de tons, a preferência por atmosferas crepusculares aproximam o romance das narrativas do Impressionismo do fim do século XIX e mesmo do início do século XX. Veja-se, por exemplo, o capítulo LI, poeticamente intitulado "Entre luz e fusco". Trata-se do momento em que Bentinho vai despedir-se de Capitu antes de ir para o seminário, em cumprimento a uma promessa de sua mãe ainda antes de ele nascer. Talvez, na primeira leitura, o leitor nem se detenha sobre essa passagem. Mas, quando lê de novo, vislumbra a poesia escondida sob a prosa enxuta, em que os três segmentos do período oracional são redondilhas menores (versos de cinco sílabas métricas) disfarçadas, como se o narrador tivesse pudor do próprio lirismo: "Entre luz e fusco/ tudo há de ser breve/ como esse instante."

Outro expediente narrativo que faz de Dom Casmurro um romance que resiste a inúmeras leituras é o recurso à intertextualidade, isto é, a presença, na obra, de várias obras da literatura universal, com as quais o texto machadiano dialoga de maneira fecunda. Deixando de lado a relação com Otelo, de Shakespeare, peça com a qual o diálogo é explicitado pelo narrador em várias passagens, veja-se o possível significado que pode ter uma menção aparentemente ingênua a Ariosto. Depois de contar um episódio em que a imaginação de Bentinho (o menino que ele foi, antes de se transformar em Dom Casmurro) é quase um delírio, o narrador comenta: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, (...)" (capítulo XXIX). O leitor, se sabe quem é Ariosto, entende que o parâmetro contra o qual Dom Casmurro dimensiona a imaginação de Bentinho é formidavelmente imaginoso, intricando ação prodigiosa em ação prodigiosa, ao longo dos 46 cantos de Orlando Furioso. O que talvez lhe escape é que a alusão é a Ariosto, autor de uma obra épica cujo herói-título enlouquece ao descobrir que foi preterido pela amada. É possível entrever o autor, por trás do narrador, a piscar-nos o olho por termos, finalmente, atinado com a sua astúcia. Não há como negar que é possível ouvir, nesse capítulo, a voz autoral de Machado de Assis inscrevendo no discurso de seu narrador Dom Casmurro um dado fundamental: há homens que enlouquecem de ciúme.

Em síntese: Dom Casmurro é um romance da maturidade plena de seu autor. Para alguns, é o romance perfeito, articulando de maneira impecável as várias instâncias narrativas: enredo, narrador, tempo, espaço, personagens. E é também um romance, como já se disse antes, sempre aberto, passível de inúmeras e enriquecedoras releituras.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1900) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1899), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "cousa"/"coisa", "cálix"/"cálice"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego do adjetivo "centelhantes", atualizado pela edição Aguilar como "cintilantes"; o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia maluca"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado."

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, adotou-se uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós [...]"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("[...] enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.") e não uso de vírgula ("Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.") antes de oração consecutiva. Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Considerando-se a falta de rigor do original, no qual as falas das personagens vêm às vezes entre aspas, mas, na grande maioria das vezes, em novo parágrafo iniciado por travessão, decidiu-se respeitar a lição das edições utilizadas como fonte.

A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Dom Casmurro, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje. Sendo o enredo do romance o que é, "Deus" ocorre no texto inúmeras vezes. Para evitar a repetição do link em todas as ocorrências, optou-se por restringir a referência ao capítulo IX (em que Deus e Satanás aparecem como personagens da fantasia do tenor Marcolini, que concebe a vida como uma ópera e atribui o libreto ao primeiro e a música, ao segundo) e a frases feitas (como "Deus é soberano"). Nas demais ocorrências, quando "Deus" se refere à divindade consagrada na tradição judaico-cristã, não haverá links.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

abril de 2010

Revisto em fevereiro de 2011.

XLVII

"A SENHORA SAIU."

- Está bom, acabou - disse eu finalmente -; mas, explique-me só uma cousa, por que é que você me perguntou se eu tinha medo de apanhar?

- Não foi por nada - respondeu Capitu, depois de alguma hesitação -... Para que bulir nisso?

- Diga sempre. Foi por causa do seminário?

- Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu também não creio.

A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que "a senhora saiu", quando a senhora não quer falar a ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... A verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento. E eu não desci triste nem zangado; achei a criada galante, apetecível, melhor que a ama.

As andorinhas vinham agora em sentido contrário, ou não seriam as mesmas. Nós é que éramos os mesmos; ali ficamos somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.

XLVIII

JURAMENTO DO POÇO

- Não! - exclamei de repente.

- Não quê?

Tinha havido alguns minutos de silêncio, durante os quais refleti muito e acabei por uma ideia; o tom da exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha vizinha.

- Não há de ser assim - continuei -. Dizem que não estamos em idade de casar, que somos crianças, criançolas - já ouvi dizer "criançolas". Bem; mas dous ou três anos passam depressa. Você jura uma cousa? Jura que só há de casar comigo?

Capitu não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira:

- Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não casando nunca.

- Que eu case com outra?

- Tudo pode ser, Bentinho. Você pode achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ela e casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim nessa ocasião?

- Mas eu também juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que só me casarei com você. Basta isto?

- Devia bastar - disse ela -; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você jura... Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja o que houver.

Compreendeis a diferença; era mais que a eleição do cônjuge, era a afirmação do matrimônio. A cabeça da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente, a fórmula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podíamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do poço. Esta fórmula era melhor, e tinha a vantagem de me fortalecer o coração contra a investidura eclesiástica. Juramos pela segunda fórmula, e ficamos tão felizes que todo receio de perigo desapareceu. Éramos religiosos, tínhamos o céu por testemunha. Eu nem já temia o seminário.

- Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um colégio qualquer; não tomo ordens.

Capitu temia a nossa separação, mas acabou aceitando este alvitre, que era o melhor. Não afligíamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrário, qualquer resistência ao seminário confirmaria a denúncia de José Dias. Esta reflexão não foi minha, mas dela.

XLIX

UMA VELA AOS SÁBADOS

Eis aqui como, após tantas canseiras, tocávamos o porto a que nos devíamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo. Estávamos contentes, entramos a falar do futuro. Eu prometia à minha esposa uma vida sossegada e bela, na roça ou fora da cidade. Viríamos aqui uma vez por ano. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde ninguém nos fosse aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena, um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi móveis, uma sege e um oratório. Sim, havíamos de ter um oratório bonito, alto, de jacarandá, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que no resto, em parte porque éramos religiosos, em parte para compensar a batina que eu ia deitar às urtigas; mas ainda restava uma parte que atribuo ao intuito secreto e inconsciente de captar a proteção do céu. Havíamos de acender uma vela aos sábados...

L

UM MEIO-TERMO

Meses depois fui para o seminário de São José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padeci muito. Minha mãe também padeceu, mas sofria com alma e coração; demais, o padre Cabral achara um meio-termo: experimentar-me a vocação; se, no fim de dous anos, eu não revelasse vocação eclesiástica, seguiria outra carreira.

- As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha que Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que o costume do seminário não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou...

Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a relevação da dívida. Os olhos dela brilharam, mas a boca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais próximo, e apoiou o "alvitre do Sr. protonotário"; só lhe parecia que um ano era bastante.

- Estou certo - disse ele, piscando-me o olho - que dentro de um ano a vocação eclesiástica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. Há de dar um padre de mão-cheia. Também, se não vier em um ano...

E a mim, mais tarde, em particular:

- Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a Europa.

Capitu deu-me igual conselho, quando minha mãe lhe anunciou a minha ida definitiva para o seminário:

- Minha filha, você vai perder o seu companheiro de criança...

Fez-lhe tão bem este tratamento de filha (era a primeira vez que minha mãe lho dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar tudo com paciência; no fim de um ano as cousas estariam mudadas, e um ano andava depressa. Não foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na véspera, por um modo que pede capítulo especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendíamos um ao outro, ela ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé dela, com os olhos nela. Minha mãe era de natural simpático, e igualmente sensível; tanto se doía como se aprazia de qualquer cousa. Entrou a achar em Capitu uma porção de graças novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias. Não consentiu em fotografar-se, como a pequena lhe pedia, para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco anos, e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lha. Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. Beijou o retrato com paixão, minha mãe fez-lhe a mesma cousa a ela. Tudo isto me lembra a nossa despedida.

LI

ENTRE LUZ E FUSCO

Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com o outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes... Oh! Minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de São José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.

LII

O VELHO PÁDUA

Já agora conto também os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto.

- Dá licença? - perguntou metendo a cabeça pela porta.

Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me com ternura.

- Seja feliz! - disse-me -. A mim e a toda a minha gente, creia que ficam muitas saudades. Todos nós estimamos muito o senhor, como merece. Se lhe disserem outra cousa, não acredite. São intrigas. Também eu, quando me casei, fui vítima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio - cousa que eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas... Não, eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos, não; eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, são os mais felizes!

"Por que falará assim?", pensei. "Naturalmente sabe que José Dias diz mal dele."

- Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a nossa companhia. Não é suficiente em importância, mas a afeição é imensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está às suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Pádua...

Suspirou e continuou:

- Não esqueça o seu velho Pádua, e, se tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer cousa, um botão de colete, cousa que já lhe não preste para nada. O valor é a lembrança.

Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabelos, tão grandes e tão bonitos, cortados na véspera. A intenção era levá-los a Capitu, ao sair; mas tive ideia de dá-lo ao pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do embrulho e dei-lho.

- Aqui está, guarde.

- Um cachinho dos seus cabelos! - exclamou Pádua abrindo e fechando o embrulho -. Oh! Obrigado! Obrigado por mim e pela minha gente! Vou dá-lo à velha, para guardá-lo, ou à pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma beleza destas? Dê cá um abraço! Outro! Mais outro! Adeus!

Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número - um número tão bonito!

LIII

A CAMINHO!

Fui para o seminário. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Há pessoas a quem as lágrimas não acodem logo nem nunca; diz-se que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava naturalmente os seus padecimentos íntimos, emendando os descuidos de minha mãe, fazendo-me recomendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão em despedida, disse-me rindo:

- Anda lá, rapaz, volta-me papa!

José Dias, composto e grave, não dizia nada a princípio; tínhamos falado na véspera, no quarto dele, onde fui ver se era ainda possível evitar o seminário. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente animou-me muito. Antes de um ano estaríamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se.

- Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlântico, vou indagar; se não for, iremos em março ou abril.

- Posso estudar medicina aqui mesmo.

José Dias correu os dedos pelos suspensórios com um gesto de impaciência, apertou os beiços, até que formalmente rejeitou o alvitre.

- Não duvidaria aprovar a ideia - disse ele -, se na Escola de Medicina não ensinassem, exclusivamente, a podridão alopata. A alopatia é o erro dos séculos, e vai morrer; é o assassinato, é a mentira, é a ilusão. Se lhe disserem que pode aprender na Escola de Medicina aquela parte da ciência comum a todos os sistemas, é verdade; a alopatia é erro na terapêutica. Fisiologia, anatomia, patologia, não são alopáticas nem homeopáticas, mas é melhor aprender logo tudo de uma vez, por livros e por língua de homens cultores da verdade...

Assim falara na véspera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia algum aforismo sobre a religião e a família; lembro-me deste: "Dividi-lo com Deus é ainda possuí-lo". Quando minha mãe me deu o último beijo: "Quadro amantíssimo!" - suspirou ele. Era manhã de um lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomavam a bênção: "Bênção, nhô Bentinho! Não se esqueça de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!" Na rua, José Dias insistiu nas esperanças:

- Aguente um ano; até lá tudo estará arranjado.

LIV

PANEGÍRICO DE SANTA MÔNICA

No seminário... Ah! Não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso um capítulo. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminário tive um companheiro que compôs versos, à maneira dos de Junqueira Freire, cujo livro de frade poeta era recente. Ordenou-se; anos depois encontrei-o no coro de São Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.

- Que versos? - perguntou meio espantado.

- Os seus. Pois não se lembra que no seminário...

- Ah! - sorriu ele.

Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que tinha de cantar no dia seguinte, confessou-me que não fizera mais versos depois de ordenado. Foram cócegas da mocidade; coçou-se, passou, estava bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de cousas do dia, a vida cara, um sermão do padre X..., uma vigairaria mineira...

Contrário a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira. Chamava-se... Não é preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto um Panegírico de Santa Mônica, elogiado por algumas pessoas e então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimi-lo, e dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é história velha; o que é mais moço é que um dia, em 1882, indo ver certo negócio em repartição de marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de uma seção administrativa. Deixara seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegírico de Santa Mônica, umas vinte e nove páginas, que veio distribuindo pela vida fora. Como eu precisasse de algumas informações, fui pedir-lhas, e seria impossível achar melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso. Naturalmente conversamos do passado, memórias pessoais, casos de estudo, incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu cá fora, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso velho seminário. Ou porque eram dele, ou porque éramos então moços, as recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contrária houve então, não apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os companheiros do seminário.

- Também eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente às suas províncias, e os daqui tomaram vigairarias fora.

- Bom tempo! - suspirou ele.

E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos, perguntou-me:

- Conservou o meu Panegírico?

Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra; afinal, perguntei:

- Panegírico? Que panegírico?

- O meu Panegírico de Santa Mônica.

Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de alguns instantes de pesquisa mental, respondi que por muito tempo o conservara, mas as mudanças, as viagens...

- Hei de levar-lhe um exemplar.

Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho folheto de vinte e seis anos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna, e com uma dedicatória manuscrita e respeitosa.

- É o penúltimo exemplar - disse-me -; agora só me resta um, que não posso dar a ninguém.

E como me visse folhear o opúsculo:

- Veja se lhe lembra algum pedaço - disse-me.

Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais estreitas e assíduas, mas era cortesia, era quase caridade recordar alguma lauda; li uma delas, acentuando certas frases para lhe dar a impressão de que achavam eco em minha memória. Concordou que fossem belas, mas preferia outras, e apontou-as.

- Recorda-se bem?

- Perfeitamente. Panegírico de Santa Mônica! Como isto me faz remontar os anos da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminário, creia. Os anos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as sensações também, e vieram amizades novas, que também se foram depois, como é lei da vida... Pois, meu caro colega, nada fez apagar aquele tempo da nossa convivência, os padres, as lições, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? O padre Lopes, oh! O padre Lopes...

Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silêncio, recolhendo os olhos e um suspiro!

- Tem agradado muito este meu Panegírico!

LV

UM SONETO

Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com o Panegírico, e o que as folhas dele me lembraram foi tal que merece um capítulo ou mais. Antes, porém, e porque também eu tive o meu Panegírico, contarei a história de um soneto que nunca fiz. Era no tempo do seminário, e o primeiro verso é o que ides ler:

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!

Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com ele alguma cousa, um soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. Não escolhi logo, logo, o soneto; a princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto à ideia, o primeiro verso não era ainda uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos lençóis; francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!

Quem era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no teto, mas nem assim vinha mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que concluíam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitais no sentido e na forma. Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final, saindo cronologicamente dos treze anteriores, com dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi que me determinei a compor o último verso do soneto e, depois de muito suar, saiu este:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha um pensamento, a vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, é possível, mas também não era vulgar; e ainda agora não explico por que via misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos. Naquela ocasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro; depois repeti os dous versos seguidamente, e dispus-me a ligá-los pelos 12 centrais. A ideia agora, à vista do último verso, pareceu-me melhor não ser Capitu; seria a justiça. Era mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha. Também me ocorreu aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela a luta pela pátria, por exemplo; nesse caso a flor do céu seria a liberdade. Esta acepção, porém, sendo o poeta um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dous versos, cada um a seu modo, um languidamente:

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!

E o outro com grande brio:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a ideia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem quarto; não vinha nenhum. Tive alguns ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; pode ser que, escrevendo, os versos acudissem, mas...

Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do último verso, com a simples transposição de duas palavras, assim:

Ganha-se a vida, perde-se a batalha!

O sentido vinha a ser justamente o contrário, mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do céu. Criei forças novas e esperei. Não tinha janela; se tivesse, é possível que fosse pedir uma ideia à noite. E quem sabe se os vaga-lumes, luzindo cá embaixo, não seriam para mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos próprios?

Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dous versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta.

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