Dom Casmurro
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Dom Casmurro foi o sétimo romance publicado por Machado de Assis, seguindo-se a Quincas Borba (1891) e precedendo Esaú e Jacó (1904). Objeto de numerosos estudos e releituras, a obra é considerada por grande parte da crítica o ápice da ficção machadiana, e seu enredo e personagens instalaram-se como poucos no imaginário literário brasileiro.
Desde A mão e a luva, todos os romances de Machado vinham sendo publicados primeiramente em diferentes periódicos, saindo depois em livro, às vezes poucos meses depois de publicado na imprensa o último capítulo. Dom Casmurro, reencontrando Ressurreição (1872), o primeiro romance de Machado de Assis, sai direto em volume, começando a circular no Brasil em janeiro de 1900, embora a data oficial de publicação seja 1899, quando, nos últimos dias de dezembro, o livro ficou pronto, em Paris, sede da casa editora Garnier.
Nem só por esse aspecto por assim dizer editorial o romance de 1899 reencontra o de 1872. Vários críticos têm apontado semelhanças entre os dois enredos, em que a insegurança do protagonista se constitui como barreira à felicidade conjugal possível, já que ambos - Félix, de Ressurreição, e Bentinho, de Dom Casmurro - deixam-se dominar pela dúvida, pela suspeita em relação à fidelidade das mulheres que amam. No caso do primeiro romance, a jovem viúva Lívia, com quem Félix não chega a se casar, é vítima das dúvidas do noivo, que desconfia, infundadamente, de que ela poderia ter sido infiel ao marido e que, portanto, poderia também vir a traí-lo. No caso de Dom Casmurro, a coisa se complica, pois a narrativa é de primeira pessoa, e o narrador-protagonista procura impor sua visão dos fatos, permeada de embustes, manipulações e indicações sagazmente dispostas ao longo do texto para incutir no leitor a dúvida em relação ao que está sendo dito. Com o seu relato, quer convencer-nos de que a mulher o traiu com seu melhor amigo. A ausência de um narrador neutro, de terceira pessoa, impossibilita qualquer certeza por parte do leitor. Afinal, só se conhece a sua versão dos fatos. Quem sabe, caso fosse permitido a Capitu narrar os acontecimentos do seu ponto de vista, teríamos outra história? Assim, Dom Casmurro é um romance permanentemente aberto, deixando ao leitor mais dúvidas do que certezas, mais perplexidades do que convicções. E talvez seja esse o seu maior encanto, que se reencena a cada leitura, para além da questão que vem ocupando a mente de muitas gerações: Capitu traiu ou não traiu o marido?
De fato, o romance é uma obra-prima de concisão, elegância, ambiguidade, trazendo quase a cada página um desmentido ao que se leu na página anterior. Basta aqui um exemplo: o narrador quer que acreditemos que o filho que tem com Capitu é na verdade filho de seu grande amigo, Escobar, e chega a essa conclusão pela semelhança física que parece haver entre os dois. No entanto, ao narrar uma visita que faz à casa de uma amiga de Capitu, quando ainda eram adolescentes enamorados, relata candidamente que o pai da amiga lhe aponta um retrato da mulher, com quem Capitu seria parecidíssima, embora não houvesse entre elas qualquer parentesco (capítulo LXXXII). E põe na voz dessa personagem, Gurgel, a seguinte frase: "Na vida, há dessas semelhanças esquisitas." Não seria o caso, então, de o leitor perguntar, ao fim do livro, se a eventual semelhança de Ezequiel com Escobar não seria também uma dessas semelhanças esquisitas?
O livro tem, porém, muitos outros encantos além do famoso enigma do enredo. Trata-se de uma narrativa quase impressionista, apresentando passagens onde a imprecisão de contornos, a mistura de tons, a preferência por atmosferas crepusculares aproximam o romance das narrativas do Impressionismo do fim do século XIX e mesmo do início do século XX. Veja-se, por exemplo, o capítulo LI, poeticamente intitulado "Entre luz e fusco". Trata-se do momento em que Bentinho vai despedir-se de Capitu antes de ir para o seminário, em cumprimento a uma promessa de sua mãe ainda antes de ele nascer. Talvez, na primeira leitura, o leitor nem se detenha sobre essa passagem. Mas, quando lê de novo, vislumbra a poesia escondida sob a prosa enxuta, em que os três segmentos do período oracional são redondilhas menores (versos de cinco sílabas métricas) disfarçadas, como se o narrador tivesse pudor do próprio lirismo: "Entre luz e fusco/ tudo há de ser breve/ como esse instante."
Outro expediente narrativo que faz de Dom Casmurro um romance que resiste a inúmeras leituras é o recurso à intertextualidade, isto é, a presença, na obra, de várias obras da literatura universal, com as quais o texto machadiano dialoga de maneira fecunda. Deixando de lado a relação com Otelo, de Shakespeare, peça com a qual o diálogo é explicitado pelo narrador em várias passagens, veja-se o possível significado que pode ter uma menção aparentemente ingênua a Ariosto. Depois de contar um episódio em que a imaginação de Bentinho (o menino que ele foi, antes de se transformar em Dom Casmurro) é quase um delírio, o narrador comenta: "Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, (...)" (capítulo XXIX). O leitor, se sabe quem é Ariosto, entende que o parâmetro contra o qual Dom Casmurro dimensiona a imaginação de Bentinho é formidavelmente imaginoso, intricando ação prodigiosa em ação prodigiosa, ao longo dos 46 cantos de Orlando Furioso. O que talvez lhe escape é que a alusão é a Ariosto, autor de uma obra épica cujo herói-título enlouquece ao descobrir que foi preterido pela amada. É possível entrever o autor, por trás do narrador, a piscar-nos o olho por termos, finalmente, atinado com a sua astúcia. Não há como negar que é possível ouvir, nesse capítulo, a voz autoral de Machado de Assis inscrevendo no discurso de seu narrador Dom Casmurro um dado fundamental: há homens que enlouquecem de ciúme.
Em síntese: Dom Casmurro é um romance da maturidade plena de seu autor. Para alguns, é o romance perfeito, articulando de maneira impecável as várias instâncias narrativas: enredo, narrador, tempo, espaço, personagens. E é também um romance, como já se disse antes, sempre aberto, passível de inúmeras e enriquecedoras releituras.
O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1900) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1899), também existente na biblioteca da Fundação.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "cousa"/"coisa", "cálix"/"cálice"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego do adjetivo "centelhantes", atualizado pela edição Aguilar como "cintilantes"; o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia maluca"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado."
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, adotou-se uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós [...]"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("[...] enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão.") e não uso de vírgula ("Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia escusar o extraordinário da aventura.") antes de oração consecutiva. Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Dous homens sentados nele podem debater o destino de um império, e duas mulheres, a graça de um vestido"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Considerando-se a falta de rigor do original, no qual as falas das personagens vêm às vezes entre aspas, mas, na grande maioria das vezes, em novo parágrafo iniciado por travessão, decidiu-se respeitar a lição das edições utilizadas como fonte.
A presente edição, ao apresentar notas que esclarecem as muitas citações e alusões feitas pela obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Dom Casmurro, no tocante ao seu já citado caráter intertextual. Dessa forma, o leitor poderá identificar com maior agilidade as inúmeras influências (e afluências) do romance e refletir acerca do modo com que o autor as utiliza. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje. Sendo o enredo do romance o que é, "Deus" ocorre no texto inúmeras vezes. Para evitar a repetição do link em todas as ocorrências, optou-se por restringir a referência ao capítulo IX (em que Deus e Satanás aparecem como personagens da fantasia do tenor Marcolini, que concebe a vida como uma ópera e atribui o libreto ao primeiro e a música, ao segundo) e a frases feitas (como "Deus é soberano"). Nas demais ocorrências, quando "Deus" se refere à divindade consagrada na tradição judaico-cristã, não haverá links.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XXV
NO PASSEIO PÚBLICO
Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar ânimo, falei do jardim:
- Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.
- Perdoe-me - atalhou ele -, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?
- É verdade, mas foi tão de passagem...
- Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.
- Mas eu andei algumas vezes...
- Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...
- Perdão - interrompi suspendendo o passo -, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia, não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas câmaras".
José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:
- Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.
Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.
- Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício - disse eu depois de alguns instantes.
- Pois que outra cousa, Bentinho?
- Neste caso, peço-lhe um favor.
- Um favor? Mande, ordene, que é?
- Mamãe...
Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.
- Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
- Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre - disse finalmente.
José Dias endireitou-se pasmado.
- Não posso - continuei eu, não menos pasmado que ele -, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser; mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.
Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptório, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:
- Conto com o senhor para salvar-me.
Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:
- Mas que posso eu fazer? - perguntou.
- Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...
- São bondades - retorquiu lisonjeado -. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Aí está! Nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais; por quê? Porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitíssimo. Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim, confesso que o tenho, mas é só um - é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.
- Há de ter também o de proteger os amigos, como eu.
- Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter Bentinho no seminário".
Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde.
- Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.
- Se eu quiser? Mas que outra cousa quero eu, senão servi-lo? Que desejo, senão que seja feliz, como merece?
- Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para São Paulo...
XXVI
AS LEIS SÃO BELAS
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia - uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:
- É tarde - disse ele -; mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são belas, meu querido... Pode ir a São Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo; fale também a seu tio.
- Hei de falar.
- Pegue-se também com Deus - com Deus e a Virgem Santíssima - concluiu apontando para o céu.
O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés, na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me:
- Deus fará o que o senhor quiser.
- Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer na teologia, que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa. Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! As leis são belíssimas!
- Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?
- Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ah! Você não imagina o que é a Europa; oh! A Europa...
Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos.
- Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
XXVII
AO PORTÃO
Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.
- Sim, meu devoto!
- Chamo-me Bento - acrescentei para esclarecê-lo.
XXVIII
NA RUA
José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era à rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.
XXIX
O IMPERADOR
Em caminho, encontramos o imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma ideia fantástica, a ideia de ir ter com o imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta ideia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à espera, até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o imperador! É o imperador! Toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?". A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando - não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos - pedia a minha mãe que me não fizesse padre - e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
- A medicina - por que lhe não manda ensinar medicina?
- Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...
- Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
- Mamãe querendo.
- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro; o imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola". E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.
XXX
O SANTÍSSIMO
Terás entendido que aquela lembrança do imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para São Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.
- Parece que vai sair o Santíssimo - disse alguém no ônibus -. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!
O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre, que lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma cousa. Pádua solicitava ao sacristão uma das varas do pálio. José Dias pediu uma para si.
- Há só uma disponível - disse o sacristão.
- Pois essa - disse José Dias.
- Mas eu tinha pedido primeiro - aventurou Pádua.
- Pediu primeiro, mas entrou tarde - retorquiu José Dias -; eu já cá estava. Leve uma tocha.
Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na paróquia, como José Dias. Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.
- Ainda não, mas vai sê-lo - respondeu José Dias, piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.
- Bem, cedo ao nosso Bentinho - suspirou o pai de Capitu.
Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.
Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam, fiquei comovido. Pádua roía a tocha amargamente. É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na rua do Senado.
A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quinze ou dezesseis anos, que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça; os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante, o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:
- Não chore assim!
A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:
- Não ria assim!
Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distância, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distância menor, o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.
Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.
XXXI
AS CURIOSIDADES DE CAPITU
Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:
- Não, Bentinho, deixemos o imperador sossegado - replicou -; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?
- Não marcou dia; prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.
Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.
Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.
- Anda apanhar um capotinho, Capitu - dizia-lhe ele.
Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.
Um dia, Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e latins:
- César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?
Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! Que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércios!
- E quanto valia cada sestércio?
José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:
- É o maior homem da história!
A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as joias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.
- São joias viúvas, como eu, Capitu.
- Quando é que botou estas?
- Foi pelas festas da Coroação.
- Oh! Conte-me as festas da Coroação!
Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...