IV
A festa
No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte correra uma chusma de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo.
Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto de outras eras que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contemporâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer. No tempo em que esta história se passa, uma das mais genuínas festas do Espírito Santo era a da cidade de Santa Luzia.
O tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do divino, estava em uma casa que possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o bando dos pastores, composto de homens e mulheres, com o seu pitoresco vestuário, e acompanhado pelo clássico velho, que era um sujeito de calção e meia, sapato raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mão.
Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos pastores, com alguns músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram logo, ali mesmo na rua, um círculo; um pastor e uma pastora iniciaram a dança clássica. Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala do coronel, que estava literalmente a lamber-se de gosto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca será liquidado, se o tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de Estado a ser imperador do Espírito Santo.
E todavia aquilo era apenas uma amostra da grandeza do tenente-coronel. O sol do domingo devia alumiar maiores cousas. Parece que esta razão determinou o rei da luz a trazer nesse dia os seus melhores raios. O céu nunca se mostrara mais limpidamente azul. Algumas nuvens grossas, durante a noite, chegaram a emurchecer as esperanças dos festeiros; felizmente sobre a madrugada soprara um vento rijo que varreu o céu e purificou a atmosfera.
A população correspondeu à solicitude da natureza. Logo cedo apareceu ela com os seus vestidos domingueiros - jovial, risonha, palreira -, nada menos que feliz.
O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à cerimônia religiosa.
Camilo passara a noite na cidade em casa do padre Maciel, e foi acordado, mais cedo do que supusera, com os repiques e foguetada e mais demonstrações da cidade alegre. Em casa do pai continuara o moço os seus hábitos de Paris, em que o comendador julgou não dever perturbá-lo. Acordava portanto às 11 horas da manhã, exceto os domingos, em que ia à missa, para de todo em todo não ofender os hábitos da terra.
- Que diabo é isto, padre? - gritou Camilo do quarto onde estava, e no momento em que uma girândola lhe abria definitivamente os olhos.
- Que há de ser? - respondeu o padre Maciel, metendo a cabeça pela porta -. É a festa.
- Então a festa começa de noite?
- De noite? - exclamou o padre -. É dia claro.
Camilo não pôde conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se. Almoçou com o padre, contou duas anedotas, confessou ao hóspede que Paris era o ideal das cidades, e saiu para ir ter à casa do imperador do divino. O padre saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro Soares.
- Não me dirá, padre - perguntou Camilo -, por que razão a filha do Dr. Matos não atende àquele pobre rapaz que gosta tanto dela?
Maciel concertou os óculos e expôs a seguinte reflexão:
- Você parece tolo.
- Não tanto, como lhe pareço - replicou o filho do comendador -, porque mais de uma pessoa tem feito a mesma pergunta.
- Assim é, na verdade - disse o padre -; mas há cousas que outros dizem e a gente não repete. A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente porque não gosta.
- Não lhe parece que essa moça é um tanto esquisita?
- Não - disse o padre -, parece-me uma grande finória.
- Ah! Por quê?
- Suspeito que tem muita ambição; não aceita o amor do Soares, a ver se pilha algum casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas.
- Ora - disse Camilo levantando os ombros.
- Não acredita?
- Não.
- Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual dá uma explicação à isenção de Isabel; todas as explicações porém me parecem absurdas; a minha é a melhor.
Camilo fez algumas objeções à explicação do padre, e despediu-se dele para ir à casa do tenente-coronel.
O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez que exercia aquele cargo honorífico e timbrava em fazê-lo brilhantemente, e até melhor que os seus predecessores. Ao natural desejo de não ficar por baixo, acrescia o elemento da inveja política. Alguns adversários seus diziam pela boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar conta da mão.
- Pois verão se sou capaz - foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos a malícia dos adversários.
Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas ordens relativas ao jantar que se devia seguir à festa, e ouvia algumas informações que lhe dava um irmão definidor acerca de uma cerimônia da sacristia.
- Não ouso falar-lhe, coronel - disse o filho do comendador, quando o Veiga ficou só com ele -; não ouso interrompê-lo.
- Não interrompe - acudiu o imperador do divino -; agora deve tudo estar acabado. O comendador vem?
- Já cá deve estar.
- Já viu a igreja?
- Ainda não.
- Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não desmerecerá das outras, e até em algumas cousas há de ir melhor.
Era absolutamente impossível não concordar com esta opinião, quando aquele que a exprimia fazia assim o seu próprio louvor. Camilo encareceu ainda mais o mérito da festa. O coronel ouvia-o com um riso de satisfação íntima, e dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda não apreciava bem a situação, quando este desviou a conversa, perguntando:
- Ainda não veio o Dr. Matos?
- Já.
- Com a família?
- Sim, com a família.
Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma música que se aproximava.
- São eles! - disse Veiga -; vêm buscar-me. Há de dar-me licença.
O coronel estava até então de calça preta e rodaque de brim. Correu a preparar-se com o traje e as insígnias do seu elevado cargo. Camilo chegou à janela para ver o cortejo. Não tardou que este aparecesse composto de uma banda de música, da irmandade do Espírito Santo e dos pastores da véspera. Os irmãos vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo que enchia a rua e se aglomerava à porta do tenente-coronel para vê-lo sair.
Quando o cortejo parou em frente da casa do tenente-coronel cessou a música de tocar e todos os olhos se voltaram curiosamente para as janelas. Mas o imperador estreante estava ainda por completar a sua edição, e os curiosos tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr. Camilo. Entretanto, quatro ou seis irmãos mais graduados destacaram-se do grupo e subiram as escadas do tenente-coronel.
Minutos depois cumprimentava Camilo os ditos irmãos graduados, um dos quais, mais graduado que os outros, não o era só no cargo, mas também, e sobretudo, no tamanho. E a estatura do major Brás seria a cousa mais notável da sua pessoa, se lhe não pedisse meças a magreza do próprio major. A opa do major, apesar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia até abaixo da curva da perna como a dos outros, nem lhe ficava na cintura, como devera, no caso de ter sido feita pela mesma medida. Era uma opa termo médio. Ficava-lhe entre a cintura e a curva, e foi feita assim de propósito para conciliar os princípios da elegância com a estatura do major.
Todos os irmãos graduados estenderam a mão ao filho do comendador e perguntaram ansiosamente pelo tenente-coronel.
- Não tarda; foi vestir-se - respondeu Camilo.
- A igreja está cheia - disse um dos irmãos graduados -; só se espera por ele.
- É justo esperar - opinou o major Brás.
- Apoiado - disse o coro dos irmãos.
- Demais - continuou o imenso oficial -, temos tempo; e não vamos para longe.
Os outros irmãos apoiaram com o gesto esta opinião do major, que, ato contínuo, começou a dizer a Camilo os mil trabalhos que a festa lhes dera, a ele e aos cavalheiros que o acompanhavam naquela ocasião, não menos que ao tenente-coronel.
- Como recompensa dos nossos débeis esforços (Camilo fez um sinal negativo a estas palavras do major Brás), temos consciência de que a cousa não sairá de todo mal.
Ainda estas palavras não tinham bem saído dos lábios do digno oficial, quando assomou à porta da sala o tenente-coronel em todo o esplendor da sua transformação.
Camilo perdera de todo as noções que tinha a respeito do traje e insígnias de um imperador do Espírito Santo. Não foi pois sem grande pasmo que viu assomar à porta da sala a figura do tenente-coronel.
Além da calça preta que já tinha no corpo quando ali chegou Camilo, o tenente-coronel envergara uma casaca, que pela regularidade e elegância do corte podia rivalizar com as dos mais apurados membros do Cassino Fluminense. Até aí tudo ia bem. Ao peito rutilava uma vasta comenda da Ordem da Rosa, que lhe não ficava mal. Mas o que excedeu a toda a expectação, o que pintou no rosto do nosso Camilo a mais completa expressão de assombro, foi uma brilhante e vistosa coroa de papelão forrado de papel dourado, que o tenente-coronel trazia na cabeça.
Camilo recuou um passo e cravou os olhos na insígnia imperial do tenente-coronel. Já lhe não lembrava aquele acessório indispensável em ocasiões semelhantes, e tendo vivido oito anos no meio de uma civilização diversa, não imaginava que ainda existissem costumes que ele julgava enterrados.
O tenente-coronel apertou a mão a todos os amigos e declarou que estava pronto a acompanhá-los.
- Não façamos esperar o povo - disse ele.
Imediatamente, desceram à rua. Houve no povo um movimento de curiosidade, quando viu aparecer à porta a opa encarnada de um dos irmãos que haviam subido. Logo atrás apareceu outra opa, e não tardou que as restantes opas aparecessem também flanqueando o vistoso imperador. A coroa dourada, apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a despedir faíscas quase inverossímeis. O tenente-coronel olhou a um lado e outro, fez algumas inclinações leves de cabeça a uma ou outra pessoa da multidão, e foi ocupar o seu lugar de honra no cortejo. A música rompeu logo uma marcha, que foi executada pelo tenente-coronel, a irmandade e os pastores, na direção da igreja.
Apenas da igreja avistaram o cortejo, o sineiro, que já estava à espreita, pôs em obra as lições mais complicadas do seu ofício, enquanto uma girândola, entremeada de alguns foguetes soltos, anunciava às nuvens do céu que o imperador do divino era chegado. Na igreja houve um rebuliço geral apenas se anunciou que era chegado o imperador. Um mestre-de-cerimônias ativo e desempenado ia abrindo alas, com grande dificuldade, porque o povo, ansioso por ver a figura do tenente-coronel, aglomerava-se desordenadamente e desfazia a obra do mestre de cerimônias. Afinal aconteceu o que sempre acontece nessas ocasiões; as alas foram-se abrindo por si mesmas, e ainda que com algum custo o tenente-coronel atravessou a multidão, precedido e acompanhado pela irmandade, até chegar ao trono que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com firmeza os degraus do trono, e sentou-se nele, tão orgulhoso como se governasse dali todos os impérios juntos do mundo.
Quando Camilo chegou à igreja, já a festa havia começado. Achou um lugar sofrível, ou antes inteiramente bom, porque dali podia dominar um grande grupo de senhoras, entre as quais descobriu a formosa Isabel.
Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. O encontro na estrada e a singular perspicácia de que a moça dera prova nessa ocasião não lhe haviam saído da cabeça. A moça pareceu não dar por ele; mas Camilo era tão versado em tratar com o belo sexo, que não lhe foi difícil perceber que ela o tinha visto e intencionalmente não voltava os olhos para o lado dele. Esta circunstância, ligada aos incidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no espírito a seguinte pergunta:
- Mas que tem ela contra mim?
A festa prosseguiu sem novidade. Camilo não tirava os olhos de sua bela charada, nome que já lhe dava, mas a charada parecia refratária a todo o sentimento de curiosidade. Uma vez porém, quase no fim, encontraram-se os olhos de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz surpreendeu a moça a olhar para ele. Cumprimentou-a; foi correspondido; nada mais. Acabada a festa foi a irmandade levar o tenente-coronel até a casa. No meio da lufa-lufa da saída, Camilo, que estava embebido a olhar para Isabel, ouviu uma voz desconhecida que lhe dizia ao ouvido:
- Veja o que faz!
Camilo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos miúdos e vivos, pobre mas asseadamente trajado. Encararam-se alguns segundos sem dizer palavra. Camilo não conhecia aquela cara e não se atrevia a pedir a explicação das palavras que ouvira, conquanto ardesse por saber o resto.
- Há um mistério - continuou o desconhecido -. Quer descobri-lo?
Houve algum tempo de silêncio.
- O lugar não é próprio - disse Camilo -; mas se tem alguma cousa que me dizer...
- Não; descubra o senhor mesmo.
E dizendo isto desapareceu no meio do povo o homem baixinho e magro, de olhos vivos e miúdos. Camilo acotovelou umas dez ou doze pessoas, pisou uns quinze ou vinte calos, pediu outras tantas vezes perdão da sua imprudência, até que se achou na rua sem ver nada que se parecesse com o desconhecido.
- Um romance! - disse ele -; estou em pleno romance.
Nisto saíam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Matos. Camilo aproximou-se do grupo e cumprimentou-os. Matos deu o braço a D. Gertrudes; Camilo ofereceu timidamente o seu a Isabel. A moça hesitou; mas não era possível recusar. Passou o braço no do jovem médico e o grupo dirigiu-se para a casa onde o tenente-coronel já estava e mais algumas pessoas importantes da localidade. No meio do povo havia um homem que também se dirigia para a casa do coronel e que não tirava os olhos de Camilo e de Isabel. Esse homem mordia o lábio até fazer sangue. Será preciso dizer que era Leandro Soares?
V
Paixão
A distância da igreja à casa era pequena; e a conversa entre Isabel e Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la. A aurora de um novo sentimento começava a dourar as cumeadas do coração de Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si para si que a interessante patrícia tinha qualidades superiores às da bela princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no fim do jantar, o coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu investigador espírito.
A conversa, entretanto, não passou de cousas totalmente indiferentes; mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o nosso ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graças juntas.
O jantar correu sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário, o juiz municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta a outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do divino, já então restituído ao seu vestuário comum, fazia as honras da mesa com verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da geral conversa, entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos estavam de acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
O major Brás tinha por costume fazer um ou dous brindes longos e eloquentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade com que ele se exprimia não tinha rival em toda a província. Além disso, como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o auditório, que o simples levantar-se era já meio triunfo.
Não podia o major Brás deixar passar incólume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloquente major pediu licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio, equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe iam cair da boca.
- O ilustre auditório que me escuta - disse ele - desculpará a minha ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o coração. Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha voz nada adiantaria...
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro membro desta última frase, e com restrições, o segundo; isto é, cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da seguinte maneira:
- O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do Espírito Santo tem havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o tenente-coronel Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a que se filiou...
- E no qual pretendo morrer - completou o tenente-coronel.
- Nem outra cousa era de esperar de V. Exa. - disse o orador mudando de voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e cinco minutos com grande mágoa do padre Maciel, que namorava de longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal, que estava ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco mais ou menos assim:
- Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário, de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e não vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de desaprovação), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde de S. Exa.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:
- Os elogios que me acaba de fazer o distinto major Brás são verdadeiros favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores; devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou nas atenções que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal; Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre; Soares também interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença, talvez o desdém, com que tratava o filho do comendador.
"Nem eu, nem ele", dizia consigo o pretendente.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta transformação. Fazendo de si próprio melhor ideia que do rival, Camilo dizia consigo:
"Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho de Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar?"
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e das palavras que lhe dissera.
- Algum mistério haverá - dizia ele -; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia conhecer; redobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso sujeito.
Entretanto Camilo frequentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para comunicar à bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um coração de neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora o deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.
VI
Revelação
Não há mistérios para um autor que sabe investigar todos os recantos do coração. Enquanto o povo de Santa Luzia faz mil conjecturas a respeito da causa verdadeira da isenção que até agora tem mostrado a formosa Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela ama.
- E a quem ama? - pergunta vivamente o leitor.
Ama... uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita. Deve ser então uma flor muito linda - um milagre de frescura e de aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de flor, seco, mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no pé, mas que hoje na cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira, a não ser de curiosidade. Sim, porque é realmente curioso que uma moça de vinte anos, em toda a força das paixões, pareça indiferente aos homens que a cercam, e concentre todos os seus afetos nos restos descorados e secos de uma flor.
Ah! Mas aquela foi colhida em circunstâncias especiais. Dera-se o caso alguns anos antes. Um moço da localidade gostava então muito de Isabel, porque era uma criança engraçada, e costumava chamá-la sua mulher, gracejo inocente que o tempo não sancionou. Isabel também gostava do rapaz, a ponto de fazer nascer no espírito do pai da moça a seguinte ideia:
"Se daqui a alguns anos as cousas não mudarem por parte dela, e se ele vier a gostar seriamente da pequena, creio que os posso casar."
Isabel ignorava completamente esta ideia do pai; mas continuava a gostar do moço, o qual continuava a achá-la uma criança interessantíssima.
Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma árvore.
- Que bonita flor! - disse ela.
- Aposto que você a quer?
- Queria, sim... - disse a menina que, sem aprender, conhecia já esse falar oblíquo e disfarçado.
O moço despiu o paletó com a sem-cerimônia de quem trata com uma criança e trepou pela árvore acima. Isabel ficou embaixo ofegante e ansiosa pelo resultado. Não tardou que o complacente moço deitasse a mão à flor e delicadamente a colhesse.
- Apanhe! - disse ele de cima.
Isabel aproximou-se da árvore e recolheu a flor no regaço. Contente por ter satisfeito o desejo da menina, tratou o rapaz de descer, mas tão desastradamente o fez, que no fim de dous minutos jazia no chão aos pés de Isabel. A menina deu um grito de angústia e pediu socorro; o rapaz procurou tranquilizá-la dizendo que nada era, e tentando levantar-se alegremente. Levantou-se com efeito, com a camisa salpicada de sangue; tinha ferido a cabeça.
A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moço completamente restabelecido.
A impressão que Isabel recebeu naquela ocasião foi profunda. Gostava até então do rapaz; daí em diante passou a adorá-lo. A flor que ele lhe colhera veio naturalmente a secar; Isabel guardou-a como se fora uma relíquia; beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante até chorava sobre ela. Uma espécie de culto supersticioso prendia o coração da moça àquela mirrada parasita.
Não era ela porém tão mau coração que não ficasse vivamente impressionada quando soube da doença de Camilo. Fez indagar com assiduidade do estado do moço, e cinco dias depois foi com o pai visitá-lo à fazenda do comendador.
A simples visita da moça, se não curou o doente, deu em resultado consolá-lo e animá-lo; viçaram-lhe algumas esperanças, que já estavam mais secas e mirradas que a parasita cuja história acima narrei.
"Quem sabe se me não amará agora?", pensou ele.
Apenas ficou restabelecido foi o seu primeiro cuidado ir à fazenda do Dr. Matos; o comendador quis acompanhá-lo. Não o acharam em casa; estavam apenas a irmã e a filha. A irmã era uma pobre velha, que além desse achaque, tinha mais dous: era surda e gostava de política. A ocasião era boa; enquanto a tia de Isabel confiscava a pessoa e a atenção do comendador, Camilo teve tempo de dar um golpe decisivo e rápido, dirigindo à moça estas palavras:
- Agradeço-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha moléstia. Essa mesma bondade anima-me a pedir-lhe uma cousa mais...
Isabel franziu a testa.
- Reviveu-me uma esperança há dias - continuou Camilo -, esperança que já estava morta. Será ilusão minha? Uma sua palavra, um gesto seu resolverá esta dúvida.
Isabel ergueu os ombros.
- Não compreendo - disse ela.
- Compreende - disse Camilo em tom amargo -. Mas eu serei mais franco, se o exige. Amo-a; disse-lho mil vezes; não fui atendido. Agora porém...
Camilo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse diante de si a pessoa que ele desejava o ouvisse. Isabel, porém, não lhe deu tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem fazer um gesto, atravessou a extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade, onde a velha tia punha à prova os excelentes pulmões do comendador.
O desapontamento de Camilo estava além de toda a descrição. Pretextando um calor que não existia saiu para tomar ar, e ora vagaroso, ora apressado, conforme triunfava nele a irritação ou o desânimo, o mísero pretendente deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de vingança, ideou mil maneiras de ir lançar-se aos pés da moça, rememorou todos os fatos que se haviam dado com ela, e ao cabo de uma longa hora chegou à triste conclusão de que tudo estava perdido. Nesse momento deu acordo de si: estava ao pé de um riacho que atravessava a fazenda do Dr. Matos. O lugar era agreste e singularmente feito para a situação em que ele se achava. A uns duzentos passos viu uma cabana, onde pareceu que alguém entoava uma cantiga do sertão.
Importuna cousa é a felicidade alheia quando somos vítima de algum infortúnio. Camilo sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente perguntou a si mesmo se alguém podia ser feliz estando ele com o coração a sangrar de desespero. Daí a nada aparecia à porta da cabana um homem e saía na direção do riacho. Camilo estremeceu; pareceu-lhe reconhecer o misterioso que lhe falara no dia do Espírito Santo. Era a mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se rapidamente e parou a cinco passos de distância. O homem voltou o rosto: era ele!
Camilo correu ao desconhecido.
- Enfim! - disse ele.
O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mão que Camilo lhe oferecia.
- Quer descansar? - perguntou-lhe.
- Não - respondeu o médico -. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz, mas desde já, por favor, desejo que me explique as palavras que me disse outro dia na igreja.
Novo sorriso do desconhecido.
- Então? - disse Camilo vendo que o homem não respondia.
- Antes de mais nada, diga-me: gosta deveras da moça?
- Oh! Muito!
- Jura que a faria feliz?
- Juro!
- Então ouça. O que vou contar a V. Sa. é verdade, porque o soube por minha mulher, que foi mucama de D. Isabel. É aquela que ali está.
Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para ele com curiosidade.
- Agora - continuou o desconhecido - afastemo-nos um pouco; para que ela nos não ouça, porque eu não desejo venha a saber-se de quem V. Sa. ouviu esta história.
Afastaram-se com efeito costeando o riacho. O desconhecido narrou então a Camilo toda a história da parasita, e o culto que até então a moça votava à flor já seca. Um leitor menos sagaz imagina que o namorado ouviu essa narração triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha logo que a confidência do desconhecido despertou na alma de Camilo os mais incríveis sobressaltos de alegria.
- Aqui está o que há - disse o desconhecido ao concluir -, creio que V. Sa. com isto pode saber em que terreno pisa.
- Oh! Sim! Sim! - disse Camilo -. Sou amado! Sou amado!
Sabedor daquela novidade ardia o médico por voltar a casa, donde saíra havia tanto tempo. Meteu a mão na algibeira, abriu a carteira e tirou uma nota de vinte mil-réis.
- O serviço que me acaba de prestar é imenso - disse ele -; não tem preço. Isto porém é apenas uma lembrança...
Dizendo estas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se desdenhosamente sem responder palavra. Depois, estendeu a mão à nota que Camilo lhe oferecia, e, com grande pasmo deste, atirou-a ao riacho. O fio d'água, que ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou consigo o bilhete, de envolta com uma folha que o vento lhe levara também.
- Deste modo - disse o desconhecido -, nem o senhor fica devendo um obséquio, nem eu recebo a paga dele. Não pense que tive tenção de servir a V. Sa.; não. Meu desejo é fazer feliz a filha do meu benfeitor. Sabia que ela gostava de um moço, e que esse moço era capaz de a fazer feliz; abri caminho para que ele chegue até onde ela está. Isto não se paga; agradece-se apenas.
Acabando de dizer estas palavras, o desconhecido voltou as costas ao médico, e dirigiu-se para a cabana. Camilo acompanhou com os olhos aquele homem rústico. Pouco tempo depois estava em casa de Isabel, onde já era esperado com alguma ansiedade. Isabel viu-o entrar, alegre e radiante.
- Sei tudo - disse-lhe Camilo pouco antes de sair.
A moça olhou espantada para ele.
- Tudo? - repetiu ela.
- Sei que me ama, sei que esse amor nasceu há longos anos, quando era criança, e que ainda hoje...
Foi interrompido pelo comendador que se aproximava. Isabel estava pálida e confusa; estimou a interrupção, porque não saberia que responder.
No dia seguinte escreveu-lhe Camilo uma extensa carta apaixonada, invocando o amor que ela conservara no coração, e pedindo-lhe que o fizesse feliz. Dous dias esperou Camilo a resposta da moça. Veio no terceiro dia. Era breve e seca. Confessava que o amara durante aquele longo tempo, e jurava não amar nunca a outro.
“Apenas isso - concluía Isabel -. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quisera entregar a minha vida a quem tivesse um amor igual ao meu. O seu amor é de ontem; o meu é de nove anos; a diferença de idade é grande demais; não pode ser bom consórcio. Esqueça-me e adeus.”
Dizer que esta carta não fez mais do que aumentar o amor de Camilo é escrever no papel aquilo que o leitor já adivinhou. O coração de Camilo só esperava uma confissão escrita da moça para transpor o limite que o separava da loucura. A carta transtornou-o completamente.
VII
Precipitam-se os acontecimentos
O comendador não perdera a ideia de meter o filho na política. Justamente nesse ano havia eleição; o comendador escreveu às principais influências da província para que o rapaz entrasse na respectiva assembleia. Camilo teve notícia desta premeditação do pai; limitou-se a erguer os ombros, resolvido a não aceitar cousa nenhuma se não fosse a mão de Isabel. Em vão o pai, o padre Maciel, o tenente-coronel lhe mostravam um futuro esplêndido e todo semeado de altas posições. Uma só posição o contentava: casar com a moça.
Não era fácil, decerto: a resolução de Isabel parecia inabalável.
"Ama-me, porém", dizia o rapaz consigo; "é meio caminho andado."
E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo que o meio de ganhar a diferença da idade, era mostrar que o tinha mais violento e capaz de maiores sacrifícios.
Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou para ir vê-la todos os dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mão a estrela-d'alva, é muito provável que ele achasse meio de lha trazer.
Ao mesmo tempo cessara de a importunar com epístolas ou palavras amorosas. A última que lhe disse foi:
- Esperarei!
Nesta esperança andou ele muitas semanas, sem que a sua situação melhorasse sensivelmente.
Alguma leitora menos exigente há de achar singular a resolução de Isabel, ainda depois de saber que era amada. Também eu penso assim; mas não quero alterar o caráter da heroína, porque ela era tal qual a apresento nestas páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela única razão de ter o moço voltado de Paris, enquanto ela gastara largos anos a lembrar-se dele e a viver unicamente dessa recordação, entendia, digo eu, que isto a humilhava e, porque era imensamente orgulhosa, resolvera não casar com ele nem com outro. Será absurdo; mas era assim.
Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e, por outro lado, convencido de que era necessário mostrar uma dessas paixões invencíveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução, planeou Camilo um grande golpe.
Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se abalou com a ausência do moço, porque ele costumava dar longos passeios, quando porventura acordava mais cedo. A cousa porém começou a assustar à proporção que o tempo ia passando. Saíram emissários para todas as partes, e voltaram sem dar novas do rapaz.
O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a parte em dez léguas ao redor. No fim de cinco dias de infrutíferas pesquisas soube-se que um moço, com todos os sinais de Camilo, fora visto a meia légua da cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro asseverou depois ter visto um moço junto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte lhe traria uma queda.
O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse notícia segura do filho. Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e os campos, e nesta inútil labutação correu uma semana.
Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram dar notícia do desaparecimento de Camilo? A primeira impressão foi aparentemente nenhuma; o rosto não revelou a tempestade que imediatamente rebentara no coração. Dez minutos depois a tempestade subiu aos olhos e transbordou num verdadeiro mar de lágrimas.
Foi então que o pai teve conhecimento da paixão tão longo tempo incubada. Ao ver aquela explosão não duvidou que o amor da filha pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira ideia foi que o rapaz desaparecera para fugir a um enlace indispensável. Isabel tranquilizou-o dizendo que, pelo contrário, era ela quem se negara a aceitar o amor de Camilo.
- Fui eu que o matei! - exclamava a pobre moça.
O bom velho não compreendeu muito como é que uma moça apaixonada por um mancebo, e um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de caminharem para o casamento, tratassem de se separar um do outro. Lembrou-se que o seu procedimento fora justamente o contrário, logo que travou o primeiro namoro.
No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo nosso já conhecido morador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.
- Está salvo - disse ele.
- Salvo! - exclamaram o pai e a filha.
- É verdade - disse Miguel (era o nome do homem) -; fui encontrá-lo no fundo de uma ribanceira, quase sem vida, ontem de tarde.
- E por que não vieste dizer-nos?... - perguntou o velho.
- Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si quis ir outra vez tentar contra os seus dias; eu e minha mulher impedimo-lo de fazer tal. Está ainda um pouco fraco; por isso não veio comigo.
O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lágrimas, poucas e silenciosas, ainda lhe correram dos olhos; mas eram já de alegria e não de mágoa.
Miguel saiu com a promessa de que o velho iria lá buscar o filho do comendador.
- Agora, Isabel - disse o pai apenas ficou só com ela -, que pretendes fazer?
- O que me ordenar, meu pai!
- Eu só ordenarei o que te disser o coração. Que te diz ele?
- Diz...
- O quê?
- Que sim.
- É o que devia ter dito há muito tempo, porque...
O velho estacou.
"Mas se a causa deste suicídio for outra?", pensou ele. "Indagarei tudo."
Comunicada a notícia ao comendador, não tardou que este se apresentasse em casa do Dr. Matos, onde pouco depois chegou Camilo. O mísero rapaz trazia escrita no rosto a dor de haver escapado à morte trágica que procurara; pelo menos, assim o disse muitas vezes em caminho, ao pai de Isabel.
- Mas a causa dessa resolução? - perguntou-lhe o doutor.
- A causa... - balbuciou Camilo que espreitava a pergunta -; não ouso confessá-la...
- É vergonhosa? - perguntou o velho com um sorriso benévolo.
- Oh! Não!...
- Mas que causa é?
- Perdoa-me, se eu lha disser?
- Por que não?
- Não, não ouso... - disse resolutamente Camilo.
- É inútil, porque eu já sei.
- Ah!
- E perdoo a causa, mas não lhe perdoo a resolução; o senhor fez uma cousa de criança.
- Mas ela despreza-me!
- Não... ama-o!
Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e acompanhou o velho até a casa, onde encontrou o pai, que não sabia se devia mostrar-se severo ou satisfeito.
Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara no coração de Isabel.
- Ora pois! - disse o pai da moça -. Agora que o ressuscitamos é preciso prendê-lo à vida com uma cadeia forte.
E sem esperar a formalidade do costume nem atender às etiquetas normais da sociedade, o pai de Isabel deu ao comendador a novidade de que era indispensável casar os filhos.
O comendador ainda não voltara a si da surpresa de ter encontrado o filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a tribo dos Xavantes viesse cair em cima dele armada de arco e flecha não sentiria espanto maior. Olhou alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razão de um fato aliás mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camilo e Isabel, causa única do suicídio meio executado pelo filho. O comendador aprovou a escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer que no caso dele teria feito o mesmo, se não contasse com a vontade da moça.
- Serei enfim digno do seu amor? - perguntou o médico a Isabel quando se achou só com ela.
- Oh! Sim!... - disse ela -. Se morresse, eu morreria também!
Camilo apressou-se a dizer que a Providência velara por ele; e não se soube nunca o que é que ele chamava Providência.
Não tardou que o desenlace do episódio trágico fosse publicado na cidade e seus arredores.
Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e Camilo ficou literalmente fora de si. Mil projetos lhe acudiram à mente, cada qual mais sanguinário: em sua opinião eram dous pérfidos que o haviam traído; cumpria tirar uma solene desforra de ambos.
Nenhum déspota sonhou nunca mais terríveis suplícios do que os que Leandro Soares engendrou na sua escaldada imaginação. Dous dias e duas noites passou o pobre namorado em conjecturas estéreis. No terceiro dia resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe em rosto a sua vilania e assassiná-lo depois.
Muniu-se de uma faca e partiu.
Saía da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua imaginação ideava agora uma vida cheia de bem-aventurança e deleites celestes; a imagem da moça dava a tudo o que o rodeava uma cor poética. Ia todo engolfado nestes devaneios quando viu em frente de si o preterido rival. Esquecera-se dele no meio da sua felicidade; compreendeu o perigo e preparou-se para ele.
Leandro Soares, fiel ao programa que se havia imposto, desfiou um rosário de impropérios que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar à prática o ponto final sanguinolento, Camilo respondeu:
- Atendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade que vou casar com essa moça; mas também é verdade que ela o não ama. Qual é o nosso crime neste caso? Ora, ao passo que o senhor nutre a meu respeito sentimentos de ódio, eu pensava na sua felicidade.
- Ah! - disse Soares com ironia.
- É verdade. Disse comigo que um homem das suas aptidões não devia estar eternamente dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como meu pai quer à força fazer-me deputado provincial, disse-lhe que aceitava o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer resistências políticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede creio que lhe merece alguma estima - pelo menos não lhe merece tanto ódio.
Não creio que a língua humana possua palavras assaz enérgicas para pintar a indignação que se manifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue subiu-lhe todo às faces, enquanto os olhos pareciam despedir chispas de fogo. Os lábios trêmulos como que ensaiavam baixinho uma imprecação eloquente contra o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz rompeu nestes termos:
- A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava juntar-lhe o escárnio...
- O escárnio! - interrompeu Camilo.
- Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na verdade, é a sua, que depois de me roubar a maior, a única felicidade que eu podia ter vem oferecer-me uma compensação política!
Camilo conseguiu explicar que não lhe oferecia nenhuma compensação; pensara naquilo por conhecer as tendências políticas de Soares e julgar que deste modo lhe seria agradável.
- Ao mesmo tempo - concluiu gravemente o noivo - fui levado pela ideia de prestar um serviço à província. Creia que em nenhum caso, ainda que me devesse custar a vida, proporia cousa desvantajosa à província e ao país. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e pode crer que a minha opinião será a de todos.
- Mas o senhor falou de resistências... - disse Soares cravando no adversário um olhar inquisitorial.
- Resistências, não por oposição pessoal, mas por conveniências políticas - explicou Camilo -. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os verdadeiros princípios do partido que tem a honra de o possuir entre seus membros.
Leandro Soares não tirava os olhos de Camilo; nos lábios pairava-lhe agora um sorriso irônico e cheio de ameaças. Contemplou-o ainda alguns instantes sem dizer palavra, até que de novo rompeu o silêncio.
- Que faria o senhor no meu caso? - perguntou ele dando ao seu irônico sorriso um ar verdadeiramente lúgubre.
- Eu recusava - respondeu afoutamente Camilo.
- Ah!
- Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece o mesmo com o senhor, que a tem, e é por assim dizer o apoio do partido em toda esta comarca.
- Tenho essa convicção - disse Soares com orgulho.
- Não é o único: todos lhe fazem justiça.
Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaçavam-lhe na mente terríveis inspirações, ou a humanidade reclamava alguma moderação no gênero de morte que daria ao rival? Decorreram cinco minutos. Ao cabo deles, Soares parou em frente de Camilo e ex abrupto lhe perguntou:
- Jura-me uma cousa?
- O quê?
- Que a fará feliz?
- Já o jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.
- Seria meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra mim; não importa; estou disposto a tudo.
- Creia que eu sei avaliar o seu grande coração - disse Camilo estendendo-lhe a mão.
- Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que me fica na alma, a dor imensa que me há de acompanhar até à morte. Amores destes vão até à sepultura.
Parou e sacudiu a cabeça, como para expelir uma ideia sinistra.
- Que pensamento é o seu? - perguntou Camilo vendo o gesto de Soares.
- Descanse - respondeu este -; não tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei à sorte: e se aceito essa candidatura política que me oferece é unicamente para afogar nela a dor que me abafa o coração.
Não sei se este remédio eleitoral servirá para todos os casos de doença amorosa. No coração de Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em favor do doente.
Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de Soares; mas empenhou-se logo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal conseguiu-se que Leandro Soares fosse incluído numa chapa e apresentado aos eleitores na próxima campanha. Os adversários do rapaz, sabedores das circunstâncias em que lhe foi oferecida a candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons que ele vendera o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.
Havia já um ano que o filho do comendador estava casado, quando apareceu na sua fazenda um viajante francês. Levava cartas de recomendação de um dos seus professores de Paris. Camilo recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da França, que ele ainda amava, dizia, como a sua pátria intelectual. O viajante disse-lhe muitas cousas, e sacou por fim da mala um maço de jornais.
Era o Figaro.
- O Figaro! - exclamou Camilo, lançando-se aos jornais.
Eram atrasados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele tivera durante longos anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ela a vida atual, havia sempre uma natural curiosidade em despertar recordações de outro tempo.
No quarto ou quinto número que abriu deparou-se-lhe uma notícia que ele leu com espanto.
Dizia assim:
“Uma célebre Leontina Caveau, que se dizia viúva de um tal príncipe Alexis, súdito do tzar, foi ontem recolhida à prisão. A bela dama (era bela!) não contente de iludir alguns moços incautos, alapardou-se com todas as joias de uma sua vizinha, Mlle. B... A roubada queixou-se a tempo de impedir a fuga da pretendida princesa.”
Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notícia, quando Isabel entrou na sala.
- Estás com saudades de Paris? - perguntou ela vendo-o tão atento a ler o jornal francês.
- Não - disse o marido, passando-lhe o braço à roda da cintura -; estava com saudades de ti.