Conto

A Parasita Azul

1873
* Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, de junho a setembro de 1872, assinado por Job.

II

Para Goiás

Daí a dias seguiam ambos para Santos, de lá, para São Paulo e tomavam a estrada de Goiás.

Soares, à medida que ia reavendo a antiga intimidade com o filho do comendador, contava-lhe as memórias da sua vida, durante os oito anos de separação, e, à falta de cousa melhor, era isto o que entretinha o médico nas ocasiões e lugares em que a natureza lhe não oferecia algum espetáculo dos seus. Ao cabo de umas quantas léguas de marcha estava Camilo informado das rixas eleitorais de Soares, das suas aventuras na caça, das suas proezas amorosas, e de muitas cousas mais, umas graves, outras fúteis, que Soares narrava com igual entusiasmo e interesse.

Camilo não era espírito observador; mas a alma de Soares andava-lhe tão patente nas mãos, que era impossível deixar de a ver e examinar. Não lhe pareceu mau rapaz; notou-lhe, porém, certa fanfarronice, em todo o gênero de cousas, na política, na caça, no jogo, e até nos amores. Neste último capítulo havia um parágrafo sério; era o que dizia respeito a uma moça que ele amava loucamente, de tal modo que prometia aniquilar a quem quer que ousasse levantar olhos para ela.

- É o que lhe digo, Camilo - confessava o filho do comerciante -, se alguém tiver o atrevimento de pretender essa moça pode contar que há no mundo mais dois desgraçados, ele e eu. Não há de acontecer assim felizmente; lá todos me conhecem; sabem que não cochilo para executar o que prometo. Há poucos meses o major Valente perdeu a eleição só porque teve o atrevimento de dizer que ia arranjar a demissão do juiz municipal. Não arranjou a demissão, e por castigo tomou taboca; saiu na lista dos suplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A cousa foi...

- Mas por que não se casa com essa moça? - perguntou Camilo desviando cautelosamente a narração da última vitória eleitoral de Soares.

- Não me caso porque... Tem muita curiosidade de o saber?

- Curiosidade... de amigo e nada mais.

- Não me caso porque ela não quer.

Camilo estacou o cavalo.

- Não quer? - disse ele espantado -. Então por que motivo pretende impedir que ela...

- Isso é uma história muito comprida. A Isabel...

- Isabel?... - interrompeu Camilo -. Ora espere, será a filha do Dr. Matos, que foi juiz de direito há dez anos?

- Essa mesma.

- Deve estar uma moça?

- Tem seus vinte anos bem contados.

- Lembra-me que era bonitinha aos doze.

- Oh! Mudou muito... para melhor! Ninguém a vê que não fique logo com a cabeça voltada. Tem rejeitado já uns poucos de casamentos. O último noivo recusado fui eu. A causa por que me recusou foi ela mesma que me veio dizer.

- E que causa era?

- "Olhe, Sr. Soares", disse-me ela. "O senhor merece bem que uma moça o aceite por marido; eu era capaz disso, mas não o faço porque nunca seríamos felizes."

- Que mais?

- Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar.

- Nunca mais se falaram?

- Pelo contrário, falamo-nos muitas vezes. Não mudou comigo; trata-me como dantes. A não serem aquelas palavras que ela me disse, e que ainda me doem cá dentro, eu podia ter esperanças. Vejo, porém, que seriam inúteis; ela não gosta de mim.

- Quer que lhe diga uma cousa com franqueza?

- Diga.

- Parece-me um grande egoísta.

- Pode ser; mas sou assim. Tenho ciúmes de tudo, até do ar que ela respira. Eu, se a visse gostar de outro, e não pudesse impedir o casamento, mudava de terra. O que me vale é a convicção que tenho de que ela não há de gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais.

"Não admira que não saiba amar", reflexionou Camilo pondo os olhos no horizonte como se estivesse ali a imagem da formosa súbdita do tzar. "Nem todas receberam do céu esse dom, que é o verdadeiro distintivo dos espíritos seletos. Algumas há, porém, que sabem dar a vida e a alma a um ente querido, que lhe enchem o coração de profundos afetos, e deste modo fazem jus a uma perpétua adoração. São raras, bem sei, as mulheres desta casta; mas existem..."

Camilo terminou esta homenagem à dama dos seus pensamentos abrindo as asas a um suspiro que, se não chegou ao seu destino, não foi por culpa do autor. O companheiro não compreendeu a intenção do discurso, insistiu em dizer que a formosa goiana estava longe de gostar de ninguém, e ele ainda mais longe de lho consentir.

O assunto agradava aos dois comprovincianos; falaram dele longamente até o aproximar da tarde. Pouco depois chegaram a um pouso, onde deviam pernoitar.

Tirada a carga dos animais, cuidaram os criados primeiramente do café, e depois, do jantar. Nessas ocasiões ainda mais pungiam ao nosso herói as saudades de Paris. Que diferença entre os seus jantares dos restaurants dos boulevards e aquela refeição ligeira e tosca, num miserável pouso de estrada, sem os acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Figaro ou da Gazette des Tribunaux!

Camilo suspirava consigo mesmo; tornava-se então ainda menos comunicativo. Não se perdia nada porque o seu companheiro falava por dois.

Acabada a refeição, acendeu Camilo um charuto e Soares, um cigarro de palha. Era já noite. A fogueira do jantar alumiava um pequeno espaço em roda; mas nem era precisa, porque a lua começava a surgir de trás de um morro; pálida e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas águas tranquilas do rio que serpeava ali ao pé.

Um dos tropeiros sacou a viola e começou a gargantear uma cantiga, que a qualquer outro encantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao filho do comendador apenas fez lembrar com tristeza as volatas da Ópera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bela moscovita, molemente sentada num camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, para contemplá-lo de longe cheirando um raminho de violetas.

Soares atirou-se à rede e adormeceu.

O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silêncio no pouso.

Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e solene. Não faltava ao jovem goiano a inteligência do belo; e a quase novidade daquele espetáculo, que uma longa ausência lhe fizera esquecer, não deixava de o impressionar imensamente.

De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longínquos, de alguma fera que vagueava na solidão. Outras vezes eram aves noturnas, que soltavam ao perto os seus pios tristonhos. Os grilos, e também as rãs e os sapos formavam o coro daquela ópera do sertão, que o nosso herói admirava decerto, mas à qual preferia indubitavelmente a ópera cômica.

Assim esteve longo tempo, cerca de duas horas, deixando vagar o seu espírito ao sabor das saudades, e levantando e desfazendo mil castelos no ar. De repente foi chamado a si pela voz do Soares, que parecia vítima de um pesadelo. Afiou o ouvido e escutou estas palavras soltas e abafadas que o seu companheiro murmurava:

- Isabel... querida Isabel... Que é isso?... Ah! Meu Deus! Acudam!

As últimas sílabas eram já mais aflitas que as primeiras. Camilo correu ao companheiro e fortemente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se, olhou em roda de si e murmurou:

- Que é?

- Um pesadelo.

- Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas são?

- Ainda é noite.

- Já está levantado?

- Agora é que me vou deitar. Durmamos, que é tempo.

- Amanhã lhe contarei o sonho.

No dia seguinte efetivamente, logo depois das primeiras vinte braças de marcha, referiu Soares o terrível sonho da véspera.

- Estava eu ao pé de um rio - disse ele - com a espingarda na mão, espiando as capivaras. Olho casualmente para a ribanceira que ficava muito acima, do lado oposto, e vejo uma moça montada num cavalo preto, vestida de preto, e com os cabelos, que também eram pretos, caídos sobre os ombros...

- Era tudo uma escuridão - interrompeu Camilo.

- Espere; admirei-me de ver ali, e por aquele modo, uma moça que me parecia franzina e delicada. Quem pensava o senhor que era?

- A Isabel.

- A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra fronteira ao lugar onde ela estava, e perguntei-lhe o que fazia ali. Ela esteve algum tempo calada. Depois, apontando para o fundo do grotão, disse:

- O meu chapéu caiu lá embaixo.

- Ah!

- O senhor ama-me? - disse ela passados alguns minutos.

- Mais que a vida!

- Fará o que eu lhe pedir?

- Tudo.

- Bem, vá buscar o meu chapéu.

- Olhei para baixo. Era um imenso grotão em cujo fundo fervia e roncava uma água barrenta e grossa. O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo, ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossível. Olhei para todos os lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia...

- Veja o que é imaginação escaldada! - observou Camilo.

- Já eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da sua terrível ideia, quando senti pousar-me uma mão no ombro. Voltei-me; era um homem, era o senhor.

- Eu?

- É verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para ela e depois olhou para o abismo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como, estava o senhor embaixo e estendia a mão para tirar o chapelinho fatal.

- Ah!

- A água, porém, engrossando subitamente, ameaçava submergi-lo. Então Isabel, soltando um grito de angústia, esporeou o cavalo e atirou-se pela ribanceira abaixo. Gritei... chamei por socorro; tudo foi inútil. Já a água os enrolava em suas dobras... quando fui acordado pelo senhor.

Leandro Soares concluiu esta narração do seu pesadelo parecendo ainda assustado do que lhe acontecera... imaginariamente. Convém dizer que ele acreditava nos sonhos.

- Veja o que é uma digestão mal feita! - exclamou Camilo quando o comprovinciano terminou a narração -. Que porção de tolices! O chapéu, a ribanceira, o cavalo, e mais que tudo a minha presença nesse melodrama fantástico, tudo isso é obra de quem digeriu mal o jantar. Em Paris há teatros que representam pesadelos assim - piores do que o seu porque são mais compridos. Mas o que eu vejo também é que essa moça não o deixa nem dormindo.

- Nem dormindo!

Soares disse estas duas palavras quase como um eco, sem consciência. Desde que concluíra a narração, e logo depois das primeiras palavras de Camilo, entrara a fazer consigo uma série de reflexões que não chegaram ao conhecimento do autor desta narrativa. O mais que lhes posso dizer é que não eram alegres, porque a fronte lhe descaiu, enrugou-se-lhe a testa, e ele, cravando os olhos nas orelhas do animal, recolheu-se a um inviolável silêncio.

A viagem, daquele dia em diante, foi menos suportável para Camilo de que até ali. Além de uma leve melancolia que se apoderara do companheiro, ia-se-lhe tornando enfadonho aquele andar léguas e léguas que pareciam não acabar mais. Afinal voltou Soares à sua habitual verbosidade, mas já então não podia vencer o tédio mortal que se apoderara do mísero Camilo.

Quando porém avistou a cidade, perto da qual estava a fazenda onde vivera as primeiras auroras da sua mocidade, Camilo sentiu abalar-se-lhe fortemente o coração. Um sentimento sério o dominava. Por algum tempo, ao menos, Paris com os seus esplendores cedia o lugar à pequena e honesta pátria dos Seabras.

III

O encontro

Foi um verdadeiro dia de festa aquele em que o comendador cingiu ao peito o filho que oito anos antes mandara a terras estranhas. Não pôde reter as lágrimas o bom velho - não pôde, que elas vinham de um coração ainda viçoso de afetos e exuberante de ternura. Não menos intensa e sincera foi a alegria de Camilo. Beijou repetidamente as mãos e a fronte do pai, abraçou os parentes, os amigos de outro tempo, e durante alguns dias - não muitos - parecia completamente curado dos seus desejos de regressar à Europa.

Na cidade e seus arredores não se falava em outra cousa. O assunto, não principal, mas exclusivo das palestras e comentários era o filho do comendador. Ninguém se fartava de o elogiar. Admiravam-lhe as maneiras e a elegância. A mesma superioridade com que ele falava a todos achava entusiastas sinceros. Durante muitos dias foi totalmente impossível que o rapaz pensasse em outra cousa que não fosse contar as suas viagens aos amáveis conterrâneos. Mas pagavam-lhe a maçada, porque a menor cousa que ele dissesse tinha aos olhos dos outros uma graça indefinível. O padre Maciel, que o batizara vinte e sete anos antes, e que o via já homem completo, era o primeiro pregoeiro da sua transformação.

- Pode gabar-se, Sr. comendador - dizia ele ao pai de Camilo -, pode gabar-se de que o céu lhe deu um rapaz de truz! Santa Luzia vai ter um médico de primeira ordem, se me não engana o afeto que tenho a esse que era ainda ontem um pirralho. E não só médico, mas até bom filósofo; é verdade, parece-me bom filósofo. Sondei-o ontem nesse particular, e não lhe achei ponto fraco ou duvidoso.

O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho Camilo. O tenente-coronel Veiga agradecia à Providência a chegada do Dr. Camilo nas proximidades do Espírito Santo.

- Sem ele, o meu baile seria incompleto.

O Dr. Matos não foi o último que visitou o filho do comendador. Era um velho alto e bem feito, ainda que um tanto quebrado pelos anos.

- Venha, doutor - disse o velho Seabra apenas o viu assomar à porta -; venha ver o meu homem.

- Homem, com efeito - respondeu Matos contemplando o rapaz -. Está mais homem do que eu supunha. Também já lá vão oito anos! Venha de lá esse abraço!

O moço abriu os braços ao velho. Depois, como era costume fazer a quantos o iam ver, contou-lhe alguma cousa das suas viagens e estudos. É perfeitamente inútil dizer que o nosso herói omitiu sempre tudo quanto pudesse abalar o bom conceito em que estava no ânimo de todos. A dar-lhe crédito, vivera quase como um anacoreta; e ninguém ousava pensar o contrário.

Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem médico, lisonjeado com a inesperada recepção que teve, continuou a não pensar muito em Paris. Mas o tempo corre, e as nossas sensações com ele se modificam. No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as árvores, monótonas, os rios, monótonos, a cidade, monótona, ele próprio, monótono. Invadiu-o então uma cousa a que podemos chamar - nostalgia do exílio.

"Não", dizia ele consigo, "não posso ficar aqui mais três meses. Paris ou o cemitério, tal é o dilema que se me oferece. Daqui a três meses, estarei morto ou em caminho da Europa."

O aborrecimento de Camilo não escapou aos olhos do pai, que quase vivia a olhar para ele.

"Tem razão", pensava o comendador. "Quem viveu por essas terras que dizem ser tão bonitas e animadas, não pode estar aqui muito alegre. É preciso dar-lhe alguma ocupação... a política, por exemplo."

- Política! - exclamou Camilo, quando o pai lhe falou nesse assunto -. De que me serve a política, meu pai?

- De muito. Serás primeiro deputado provincial; podes ir depois para a Câmara no Rio de Janeiro. Um dia interpelas o ministério, e se ele cair, podes subir ao governo. Nunca tiveste ambição de ser ministro?

- Nunca.

- É pena!

- Por quê?

- Porque é bom ser ministro.

- Governar os homens, não é? - disse Camilo rindo -; é um sexo ingovernável; prefiro o outro.

Seabra riu-se do repente, mas não perdeu a esperança de convencer o herdeiro.

Havia já vinte dias que o médico estava em casa do pai, quando se lembrou da história que lhe contara Soares e do sonho que este tivera no pouso. A primeira vez que foi à cidade e esteve com o filho do negociante, perguntou-lhe:

- Diga-me, como vai sua Isabel, que ainda a não vi?

Soares olhou para ele com o sobrolho carregado e levantou os ombros resmungando um seco:

- Não sei.

Camilo não insistiu.

"A moléstia ainda está no período agudo", disse ele consigo.

Teve porém curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra deitara aquele verboso cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em dez léguas em redor, havia já falado o jovem médico. Isabel era a única esquiva até então. Esquiva não digo bem. Camilo fora uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram.

- Descanse - dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impaciência de conhecer a amada de Leandro Soares -; há de vê-la no baile do coronel Veiga, ou na festa do Espírito Santo, ou em outra qualquer ocasião.

A beleza da moça, que ele não julgava pudesse ser superior nem sequer igual à da viúva do príncipe Alexis, a paixão incurável de Soares, e o tal ou qual mistério com que se falava de Isabel, tudo isso excitou ao último ponto a curiosidade do filho do comendador.

No domingo próximo, oito dias antes do Espírito Santo, saiu Camilo da fazenda para ir à missa na igreja da cidade, como já fizera nos domingos anteriores. O cavalo ia a passo lento, a compasso com o pensamento do cavaleiro, que se espreguiçava pelo campo fora em busca de sensações que já não tinha e que ansiava ter de novo.

Mil singulares idéias atravessavam o cérebro de Camilo. Ora almejava alar-se com cavalo e tudo, rasgar os ares e ir cair defronte do Palais Royal, ou em outro qualquer ponto da capital do mundo. Logo depois fazia a si mesmo a descrição de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-se almoçando no Café Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o padre Maciel.

De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas senhoras a cavalo acompanhadas por um pajem. Picou de esporas e dentro de pouco tempo estava junto dos três cavaleiros. Uma das senhoras voltou a cabeça, sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a cabeça descoberta, e estendeu-lhe a mão, que ela apertou.

A senhora a quem cumprimentara era a esposa do tenente-coronel Veiga. Representava ter quarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A outra senhora, sentindo o movimento da companheira, fez parar também o cavalo, e voltou igualmente a cabeça. Camilo não olhava então para ela. Estava ocupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel.

- Agora só pensa na festa - dizia ela -; já deve estar na igreja. Vai à missa, não?

- Vou.

- Vamos juntos.

Trocadas estas palavras, que foram rápidas, Camilo procurou com os olhos a outra cavaleira. Ela porém ia já alguns passos adiante. O médico colocou-se ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva continuou a andar. Iam assim conversando havia já uns dez minutos, quando o cavalo da senhora que ia adiante estacou.

- Que é, Isabel? - perguntou D. Gertrudes.

- Isabel! - exclamou Camilo, sem dar atenção ao incidente que provocara a pergunta da esposa do coronel.

A moça voltou a cabeça e levantou os ombros respondendo secamente:

- Não sei.

A causa era um rumor que o cavalo sentira por trás de uma espessa moita de taquaras que ficava à esquerda do caminho. Antes porém que o pajem ou Camilo fosse examinar a causa da relutância do animal, a moça fez um esforço supremo e, chicoteando vigorosamente o cavalo, conseguiu que este vencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante dos companheiros.

- Isabel! - disse Camilo a D. Gertrudes -. Aquela moça será a filha do Dr. Matos?

- É verdade. Não a conhecia?

- Há oito anos que não a vejo. Está uma flor! Já me não admira que se fale aqui tanto na sua beleza. Disseram-me que estava doente...

- Esteve; mas as suas doenças são cousas de pequena monta. São nervos; assim se diz, creio eu, quando se não sabe do que uma pessoa padece...

Isabel parara ao longe e, voltada para a esquerda da estrada, parecia admirar o espetáculo da natureza. Daí a alguns minutos estavam perto dela os seus companheiros. A moça ia prosseguir a marcha, quando D. Gertrudes lhe disse:

- Isabel!

A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela.

- Não te lembras do Dr. Camilo Seabra?

- Talvez não se lembre - disse Camilo -. Tinha doze anos quando eu saí daqui, e já lá vão oito!

- Lembro-me - respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem olhar para o médico.

E, chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais singular que fosse aquela maneira de reatar conhecimento antigo, o que mais impressionou então o filho do comendador foi a beleza de Isabel, que lhe pareceu estar na altura da reputação.

Tanto quanto se podia julgar à primeira vista, a esbelta cavaleira devia ser mais alta que baixa. Era morena - mas de um moreno acetinado e macio, com uns delicadíssimos longes cor-de-rosa - o que seria efeito da agitação, visto que afirmavam ser extremamente pálida. Os olhos - não lhes pôde Camilo ver a cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apesar de o não terem fitado, e compreendeu logo que com olhos tais a formosa goiana houvesse fascinado o mísero Soares.

Não averiguou, nem pôde, as restantes feições da moça; mas o que pôde contemplar à vontade, o que já vinha admirando de longe, era a elegância nativa do busto e o gracioso desgarro com que ela montava. Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquela porém tinha alguma cousa em que se avantajava às outras; era talvez o desalinho do gesto, talvez a espontaneidade dos movimentos, outra cousa talvez, ou todas juntas, que davam à interessante goiana incontestável supremacia.

Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra à esposa do coronel, a respeito de qualquer acidente - de um efeito de luz, de um pássaro que passava, de um som que se ouvia -, mas em nenhuma ocasião encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador. Absorvido na contemplação da moça, Camilo deixou cair a conversa, e havia já alguns minutos que ele e D. Gertrudes iam cavalgando, sem dizer palavra, ao lado um do outro. Foram interrompidos em sua marcha silenciosa por um cavaleiro que vinha atrás da comitiva a trote largo.

Era Soares.

O filho do negociante vinha bem diferente do que até ali andava. Cumprimentou-os sorrindo e jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do médico. Não era porém difícil conhecer que a alegria de Soares era um artifício. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou fazia um gesto de desespero que felizmente escapava aos outros. Ele receava o triunfo de um homem que, física e intelectualmente, lhe era superior; que, além disso, gozava naquela ocasião a grande vantagem de dominar a atenção pública, que era o urso da aldeia, o acontecimento do dia, o homem da situação. Tudo conspirava para derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver morrer a moça isenta de todo o vínculo conjugal! O infeliz namorado tinha o sestro, aliás comum, de querer ver quebrada ou inútil a taça que ele não podia levar aos lábios.

Cresceu porém seu receio quando, estando escondido no taquaral de que falei acima, para ver passar Isabel, como costumava fazer muitas vezes, descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Não pôde reter uma exclamação de surpresa, e chegou a dar um passo na direção da estrada. Deteve-se a tempo. Os cavaleiros, como vimos, passaram adiante, deixando o cioso pretendente a jurar aos céus e à terra que tomaria desforra do seu atrevido rival, se o fosse.

Não era rival, bem sabemos; o coração de Camilo guardava ainda fresca a memória da Artemisa moscovita, cujas lágrimas, apesar da distância, o rapaz sentia que eram ardentes e aflitivas. Mas quem poderia convencer a Leandro Soares que o elegante moço da Europa, como lhe chamavam, não ficaria enamorado da esquiva goiana?

Isabel, entretanto, apenas vira o infeliz pretendente, deteve o cavalo e estendeu-lhe afetuosamente a mão. Um adorável sorriso acompanhou esse movimento. Não era bastante para dissipar as dúvidas do pobre moço. Diversa foi porém a impressão de Camilo.

"Ama-o, ou é uma grande velhaca", pensou ele.

Casualmente - e pela primeira vez - olhava Isabel para o filho do comendador. Perspicácia ou adivinhação, leu-lhe no rosto esse pensamento oculto; franziu levemente a testa com uma expressão tão viva de estranheza, que o médico ficou perplexo e não pôde deixar de acrescentar, já então com os lábios, à meia voz falando para si:

- Ou fala com o diabo.

- Talvez - murmurou a moça com os olhos fitos no chão.

Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo não podia desviar os olhos da formosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois da palavra murmurada por ela em tão singulares condições. Soares olhava para Camilo com a mesma ternura com que um gavião espreita uma pomba. Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do padre Maciel e receber um reparo amigável do marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu imediatamente.

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