Conto

A Mulher de Preto

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em abril e maio de 1868, assinado J.J.

III

Estêvão Soares visitou Meneses no dia seguinte.

O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estêvão marcara a hora da visita, que impossibilitava a presença de Meneses na Câmara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à Câmara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estevão.

Meneses estava no gabinete quando o criado anunciou-lhe a chegada do médico. Foi recebê-lo à porta.

- Pontual como um rei - disse-lhe alegremente.

- Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.

- E agradeço-lho.

Sentaram-se os dous.

- Agradeço-lhe porque eu receava sobretudo que me houvesse compreendido mal; e que os impulsos da minha simpatia não merecessem da sua parte nenhuma consideração...

Estêvão ia protestar.

- Perdão - continuou Meneses -, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho 47 anos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.

- A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amada quando é amável. Mas V. Excia. não é velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer que está na segunda mocidade.

- Parece-lhe isso...

- Parece e é.

- Seja como for - disse Meneses - a verdade é que podemos ser amigos. Quantos anos tem?

- Vinte e quatro.

- Olhe lá, podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?

- Morreram há quatro anos.

- Lembra-me haver dito que era solteiro...

- É verdade.

- De maneira que os seus cuidados são todos para a ciência?

- É a minha esposa.

- Sim, a sua esposa intelectual; mas essa não basta a um homem como o senhor... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.

Durante este diálogo, Estevão contemplava e observava Meneses, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janelas. Era uma cabeça severa, cheia de cabelos já grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinhava-se porém que deviam ter sido vivos e ardentes. As suíças também grisalhas eram como as de lorde Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. É que o sorriso era amável, mas não era alegre.

Todo aquele conjunto impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez mais arrastado para aquele homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.

A conversa continuou no tom afetuoso com que começara; a primeira entrevista da amizade é o oposto da primeira entrevista do amor; nesta a mudez é a grande eloquência; naquela inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das ideias.

Não se falou de política. Estêvão aludiu de passagem às funções de Meneses, mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou atenção.

No fim de uma hora, Estêvão levantou-se para sair; tinha de ir ver um doente.

- O motivo é sagrado; senão retinha-o.

- Mas eu voltarei outras vezes.

- Sem dúvida alguma, e eu irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... Olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da Câmara estou completamente livre.

Estêvão saiu prometendo tudo.

Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dous amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e os sentimentos. Meneses gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso, estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via em Meneses um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Meneses parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Meneses voltava logo aos seus modos habituais.

"Não é um misantropo", pensava então Estêvão; "mas este homem tem um drama dentro de si."

A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no Teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Meneses para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.

- Não conheço aquela mulher - disse Estêvão. Sabe quem é?

Meneses olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:

- Não conheço.

A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Meneses, e este duas vezes para ela, encontrando-se os olhos de ambos.

No fim do espetáculo, os dous amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Meneses passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, pararam os dous porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se passo apressado; Meneses voltou o rosto, e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade.

Estêvão compreendeu, mas nada viu.

Pela sua parte, Meneses não deu sinal algum.

Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico.

- Que efeito lhe faz - perguntou ele - quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes?

Estêvão respondeu distraidamente, e Meneses continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.

IV

Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai.

A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu.

Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor.

Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.

A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas feições. Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar à casa não pôde dormir.

Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemáticas, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva.

O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu.

Mas sonhou com a viúva.

Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade.

Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu.

- Casar-me! - disse ele-. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher... e boa noite.

Começou a vestir-se.

Trouxeram-lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes.

Mas ao passar pela rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não o decorou.

Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número da casa naquele momento.

Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.

No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela rua do Conde a ver se descobria a encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando ia tomar um tilbury e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrara Madalena.

Estêvão já tinha pensado nele; mas imediatamente tirou dali o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viúva era uma cousa que podia traí-lo.

Estêvão já empregava o verbo trair.

O homem em questão, depois de cumprimentar ao médico, e trocar com ele algumas palavras, disse-lhe que ia à casa de Madalena, e despediu-se.

Estêvão estremeceu de satisfação.

Acompanhou de longe o amigo e viu-o entrar em uma casa.

"É ali", pensou ele.

E afastou-se rapidamente.

Quando entrou em casa achou uma carta para ele; a letra, que lhe era desconhecida, estava traçada com elegância e cuidado: a carta recendia de sândalo.

O médico rompeu o lacre.

A carta dizia assim:

Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quiser vir passar algumas horas conosco dar-nos-á sumo prazer.

Madalena C...

Estêvão leu e releu o bilhete; teve ideia de levá-lo aos lábios, mas envergonhado diante de si próprio por uma ideia que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e meteu-o no bolso.

Estêvão era um pouco fatalista.

"Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as cousas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas ideias, e continuar a vida tranquila que tenho tido."

Estava nisto quando Meneses lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para jantar. Estêvão saiu com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas.

Por exemplo:

- Acredita no destino, meu amigo? Pensa que há um deus do bem e um deus do mal, em conflito travado sobre a vida do homem?

- O destino é a vontade - respondia Meneses -; cada homem faz o seu destino.

- Mas enfim nós temos pressentimentos... Às vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deus benfazejo que no-los segreda?

- Fala como um pagão; eu não creio em nada disso. Creio que tenho o estômago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no Hotel de Europa em vez de ir à rua do Lavradio.

Subiram ao Hotel de Europa.

Ali havia vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses. Estêvão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viúva, a carta e o sândalo.

Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estêvão.

Dizia por exemplo um deputado:

- O governo é reator; as províncias não podem mais suportá-lo. Os princípios estão todos preteridos, na minha província foram demitidos alguns subdelegados pela circunstância única de serem meus parentes; meu cunhado, que era diretor das rendas, foi posto fora do lugar, e este deu-se a um peralta contraparente dos Valadares. Eu confesso que vou romper amanhã a oposição.

Estêvão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto:

"Com efeito, Madalena é bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos de matar. Os cabelos são lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Contudo sinto que vou amá-la. Já é irresistível; é preciso amá-la; e ela? Que quer dizer aquele convite? Amar-me-á?"

Estêvão embebera-se tanto nesta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estêvão entregue ao seu pensamento respondeu:

- É lindíssima!

- Ah! - disse o deputado -, vejo que o senhor é ministerialista.

Estêvão sorriu; mas Meneses franziu o sobrolho.

Compreendera tudo.

V

Quando saíram, o deputado disse ao médico:

- Meu amigo, você é desleal comigo...

- Por quê? - perguntou Estêvão meio sério e meio risonho, não compreendendo a observação do deputado.

- Sim - continuou Meneses -; você esconde-me um segredo...

- Eu?

- É verdade: e um segredo de amor.

- Ah!... - disse Estêvão -; por que diz isso?

- Reparei há pouco que, ao passo que os mais conversavam em política, você pensava em uma mulher, e mulher... lindíssima...

Estêvão compreendeu que estava descoberto; não negou.

- É verdade, pensava em uma mulher.

- E eu serei o último a saber?

- Mas saber o quê? Não há amor, não há nada. Encontrei uma mulher que me impressionou e ainda agora me preocupa; mas é bem possível que não passe disto. Aí está. É um capítulo interrompido; um romance que fica na primeira página. Eu lhe digo: há de me ser difícil amar.

- Por quê?

- Eu sei? Custa-me a crer no amor.

Meneses olhou fixamente para Estêvão, sorriu, abanou a cabeça e disse:

- Olhe, deixe a descrença para os que já sofreram as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda nada desse sentimento. Na sua idade ninguém é cético... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que daqui a pouco há de dizer-me o contrário.

- Pode ser... - respondeu Estêvão.

E ao mesmo tempo entrou a pensar nas palavras de Meneses, palavras que ele comparava ao episódio do Teatro Lírico.

Entretanto, Estêvão foi ao convite de Madalena. Preparou-se e perfumou-se como se fosse falar a uma noiva. Que sairia daquele encontro? Viria de lá livre ou cativo? Já seria amado? Estêvão não deixou de pensá-lo; aquele convite parecia-lhe uma prova irrecusável. O médico, entrando num tilbury, começou a formar vários castelos no ar.

Enfim chegou à casa.

VI

Madalena estava na sala acompanhada de um filho.

Ninguém mais.

Eram nove horas e meia.

- Viria eu cedo demais? - perguntou ele à dona da casa.

- O senhor nunca vem cedo.

Estêvão inclinou-se.

Madalena continuou:

- Se me acha só, é porque, tendo enfermado um pouco, mandei desavisar as poucas pessoas que eu havia convidado.

- Ah! Mas eu não recebi...

- Naturalmente; eu não lhe mandei dizer nada. Era a primeira vez que o convidava; não queria por modo algum arredar de casa um homem tão distinto.

Estas palavras de Madalena não valiam cousa alguma, nem mesmo como desculpa, porque a desculpa é fraquíssima.

Estêvão compreendeu logo que havia algum motivo oculto.

Seria o amor?

Estêvão pensou que era, e doeu-se, porque, apesar de tudo, sonhara uma paixão mais reservada e menos precipitada. Não queria, embora lhe agradasse, ser objeto daquela preferência; e mais que tudo achava-se embaraçadíssimo diante de uma mulher a quem começava a amar, e que talvez o amasse. Que lhe diria? Era a primeira vez que o médico achava-se em tais apuros. Há toda a razão para supor que Estêvão naquele momento preferia estar cem léguas distante, e contudo, longe que estivesse, pensaria nela.

Madalena era excessivamente bela, embora mostrasse no rosto sinais de longo sofrimento. Era alta, cheia, tinha um belíssimo colo, magníficos braços, olhos castanhos e grandes, boca feita para ninho de amores.

Naquele momento trajava um vestido preto.

A cor preta ia-lhe muito bem.

Estêvão contemplava aquela figura com amor e adoração; ouvia-a falar e sentia-se encantado e dominado por um sentimento que não podia explicar.

Era um misto de amor e de receio.

Madalena mostrou-se delicada e solícita. Falou no merecimento do rapaz e na sua nascente reputação, e instou com ele para que fosse algumas vezes visitá-la.

Às 10 horas e meia serviu-se o chá na sala. Estêvão conservou-se lá até às 11 horas.

Chegando à rua o médico estava completamente namorado. Madalena tinha-o atado no seu carro, e o pobre rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo.

Caminhando para casa ia ele formando projetos: via-se casado com ela, amado e amante, causando inveja a todos, e mais que tudo feliz no seu interior.

Quando chegou à casa, lembrou-se de escrever uma carta que mandaria no dia seguinte a Meneses. Escreveu cinco e rasgou-as todas.

Afinal redigiu um simples bilhete nestes termos:

Meu amigo.

Você tem razão; na minha idade crê-se; eu creio e amo. Nunca o pensei; mas é verdade. Amo... Quer saber a quem? Hei de apresentá-lo em casa dela. Há de achá-la bonita... Se o é!...

A carta dizia muitas cousas mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo mote.

Estêvão voltou à casa de Madalena e as suas visitas começaram a ser regulares e assíduas.

A viúva usava para com ele de tanta solicitude que não era possível duvidar do sentimento que a dirigia. Pelo menos Estêvão assim o pensava. Achava-a quase sempre só, e deliciava-se em ouvi-la. A intimidade começou a estabelecer-se.

Logo na segunda visita, Estêvão falou-lhe em Meneses, pedindo licença para apresentá-lo. A viúva disse que teria muito prazer em receber amigos de Estêvão; mas pedia-lhe que adiasse a apresentação. Todos os pedidos e todas as razões de Madalena eram dignas para o médico; não disse mais nada.

Como era natural, ao passo que as visitas à viúva eram mais assíduas, as visitas ao amigo eram mais raras.

Meneses não se queixou; compreendeu, e disse-o ao rapaz.

- Não se desculpe - acrescentou o deputado -; é natural; a amizade deve ceder o passo ao amor. O que eu quero é que seja feliz.

Um dia Estêvão pediu ao amigo que lhe contasse o motivo que o tinha feito descrer do amor, e se algum grande infortúnio lhe havia acontecido.

- Nada me aconteceu - disse Meneses.

Mas ao mesmo tempo, compreendendo que o médico merecia-lhe toda a confiança, e podia não acreditá-lo absolutamente, disse:

- Por que negá-lo? Sim, aconteceu-me um grande infortúnio; amei também, mas não encontrei no amor as doçuras e a dignidade do sentimento; enfim, é um drama íntimo de que não quero falar: limite-se a pateá-lo.

VII

- Quando quiser que eu lhe apresente o meu amigo Meneses... - dizia Estêvão uma noite à viúva Madalena.

- Ah! É verdade; um dia destes. Vejo que o senhor é amigo dele.

- Somos amigos íntimos.

- Verdadeiros?

- Verdadeiros.

Madalena sorriu; e como estava brincando com os cabelos do filho deu-lhe um beijo na testa.

A criança riu alegremente e abraçou a mãe.

A ideia de vir a ser pai honorário do pequeno apresentou-se ao espírito de Estêvão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousaram os lábios de Madalena.

Estêvão tocava piano, e às vezes executava algum pedaço de música a pedido de Madalena.

Nessas e noutras distrações lá passavam as horas.

O amor não adiantava um passo.

Podiam ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davam o menor sinal de si.

Esta situação incomodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o sofrer; mas quando ele pensava em dar um ataque decisivo, era exatamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão.

Era o primeiro amor do rapaz: ele nem conhecia as palavras próprias desse sentimento.

Um dia resolveu escrever à viúva.

"É melhor", pensava ele; "uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe."

Entrou para o gabinete e começou uma carta.

Gastou nisso uma hora; cada frase ocupava-lhe muito tempo. Estêvão queria fugir à hipótese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frívolos nem maus; queria revelar-se puro como era.

Mas de quê não dependem às vezes os acontecimentos? Estêvão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com ele. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.

Entrou com um rolo de papel na mão.

Estêvão escondeu rapidamente a carta.

- Adeus, Estêvão! - disse o recém-chegado -. Estavas escrevendo algum libelo ou carta de namoro?

- Nem uma nem outra cousa - respondeu Estêvão secamente.

- Dou-te uma notícia.

- Que é?

- Entrei na literatura.

- Ah!

- É verdade, e venho ler-te a primeira comédia.

- Deus me livre! - disse Estêvão levantando-se.

- Hás de ouvir, meu amigo; ao menos algumas cenas; dar-se-á caso que não me protejas nas letras? Anda cá; ao menos duas cenas. Sim? É pouca cousa.

Estêvão sentou-se.

O dramaturgo continuou:

- Talvez prefiras ouvir a minha tragédia intitulada - O punhal de Bruto...

- Não, não; prefiro a comédia: é menos sanguinária. Vamos lá.

O Oliveira abriu o rolo, arranjou as folhas, tossiu e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa:

Cena I

CÉSAR (entrando pela direita); JOÃO (pela esquerda)

CÉSAR - Fechada! A sinhá já se levantou?

JOÃO - Já, sim senhor; mas está incomodada.

CÉSAR - O que tem?

JOÃO - Tem... está incomodada.

CÉSAR - Já sei. (Consigo) "Os incômodos do costume". (A João) Qual é então o remédio hoje?

JOÃO - O remédio? (Depois de uma pausa) Não sei.

CÉSAR - Está bom, vai-te!

Cena II

CÉSAR, FREITAS (pela direita)

CÉSAR - Bom dia. Sr. procurador...

FREITAS - De causas perdidas. Só me ocupo em procurar as perdidas.

Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?

CÉSAR - Disse-me o João que está incomodada.

FREITAS - Mesmo para V. Sa.?

CÉSAR - (Sentando-se) Mesmo para mim. Por que me olha com esse olhar? Tem inveja?

FREITAS - Não é inveja, é admiração! De ordinário ninguém corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. César, benza-o Deus, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas páginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campais.

CÉSAR - Pois também os procuradores dizem cousas destas?

FREITAS - De vez em quando. (Indo sentar-se) V. Sa. admira-se?

CÉSAR - (Tirando charutos) Como não é de costume... quer um charuto?

FREITAS - Obrigado... Eu tomo rapé. (Tira a boceta) Quer uma pitada?

CÉSAR - Obrigado.

FREITAS - (Sentando-se) Pois a causa da minha constituinte vai às mil maravilhas. A parte contrária requereu assinação de dez dias, mas eu vou...

CÉSAR - Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me fale linguagem do foro. Em resumo, ela vence?

FREITAS - Está claro. Tratando provar que...

CÉSAR - Vence, é quanto basta.

FREITAS - Pudera não vencer! Pois se eu ando nisto...

CÉSAR - Tanto melhor!

FREITAS - Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vésperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdê-la. Dito e feito. Provei o contrário do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.

CÉSAR - É a fênix dos procuradores.

FREITAS - (Modestamente) São os seus bons olhos...

CÉSAR - Mas a consciência?

FREITAS - Quem é a consciência?

CÉSAR - A consciência, a sua consciência?

FREITAS - A minha consciência? Ah! Essa também ganha.

CÉSAR - (Levantando-se) Ah! Também?...

FREITAS - (O mesmo) Tem V. Sa. alguma demandazinha?

CÉSAR - Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater à sua porta...

FREITAS - Sempre às ordens de V. Sa.

A+
A-