Romance

A Mão e a Luva

1874

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

A mão e a luva, publicado no jornal O Globo entre 26 de setembro e 3 de novembro de 1874, saiu em forma de livro ainda no mesmo mês de novembro. Era o segundo romance de Machado de Assis, que, dois anos antes, estreara na narrativa longa com Ressurreição.

Na breve advertência ao leitor, Machado chama o livro de "novela" e se desculpa de possíveis falhas de estilo e de composição, imputando tais possíveis falhas "às urgências da publicação diária". Essa espécie de pedido de desculpas faz parte de uma estratégia retórica relativamente comum nos autores do século XIX, a maioria dos quais, no Brasil e no exterior, publicaram seus romances na grande imprensa de seus respectivos países antes de os oferecerem ao público em volume.

Não cabe nesta breve introdução discutir esse fenômeno. Se o mencionamos é porque o próprio autor se mostra preocupado com a opinião dos leitores, chegando a declarar, na mesma Advertência, que "se a escrevesse em outras condições" – isto é, sem pressa – a "novela" seria mais desenvolvida, e as personagens, mais profundamente caracterizadas. Portanto, está consciente – ou o simula – de que entrega ao público um livro "menor", em que os caracteres estão apenas "esboçados".

De fato, se comparado com Memórias póstumas de Brás Cubas ou com Dom Casmurro, este romance parece mais superficial, de estrutura mais simples, de enredo até certo ponto previsível, com personagens menos complexas. Entretanto, ao escrever a Advertência da segunda edição (1907), o autor, embora consciente de que, nos trinta e tantos anos decorridos entre a primeira edição e a segunda, o seu próprio estilo e maneira de compor os seus romances tinham mudado muito, prefere não alterar substancialmente o livro de 1874: tira-lhe 15 linhas e corrige erros tipográficos e de ortografia. Ora, isto é sinal claro de que reconhece valor no livro e considera que o mesmo tem um lugar na sua história de escritor de romances.

Tem razão o autor: A mão e a luva, a despeito do enredo relativamente simples, do desenho pouco elaborado das personagens e da estrutura narrativa sem grandes novidades em relação ao que se produzia no Brasil na época em que foi publicado, é um romance que já aponta para o Machado maduro, para o autor que seria, no Brasil, o grande mestre da arte de narrar, dando-lhe nova feição e novo fôlego, elevando a literatura brasileira a um patamar de qualidade comparável ao das melhores literaturas do Ocidente.

Em quatro aspectos A mão e a luva prenuncia claramente os romances da maturidade de Machado de Assis: o olhar sobre a sociedade, a análise psicológica, a utilização de citações e alusões literárias, bem como o aspecto formal. Atente o leitor para o caráter das relações de dependência na sociedade brasileira da época, especialmente na situação de Mrs. Oswald e da própria Guiomar na casa da baronesa. Como o autor declara na Advertência, as personagens constituem o seu "objeto principal" e, talvez por isso, a complexidade psicológica de Guiomar não deve ser desprezada: trata-se de uma mocinha até certo ponto ingênua, mas que é capaz de cálculo e dissimulação, antecipando as protagonistas dos romances da chamada segunda fase. No que diz respeito à intertextualidade, isto é, à presença de outras obras e outros autores no interior do texto machadiano, aqui já se revela a brilhante capacidade de Machado de Assis de utilizar citações e alusões a serviço, por exemplo, da caracterização das personagens, como quando, ao introduzir a figura de Mrs. Oswald, usa um verso de Virgílio para sugerir o caráter traiçoeiro e pouco confiável da governanta. Quanto à forma, A mão e a luva, ao apresentar vários episódios de autoconsciência narrativa, ou seja, de intromissões do narrador na sua história, revela uma moderna estratégia de controle da recepção do leitor, cuja opinião sobre fatos e personagens o narrador tenta manipular.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1907), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "dous"). Mantiveram-se usos hoje não consagrados pela norma culta, como "meia estátua, meia mulher"; ou como o uso do modo indicativo depois de palavras como "talvez" ("mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos pediam outro rosto em que caíssem melhor"), ou locuções como "ainda que" ("Estêvão, [...] observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação."; ou, ainda, como a alternativa "ou" utilizada na expressão "entre isso ou aquilo" ("A moça ficou algum tempo quieta, [...] como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intato a seu autor.").

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Na preparação desta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só,[...]"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico relevante no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Victor Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

outubro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

VIII

GOLPE

Um dia de manhã acordou Estêvão com a resolução feita de dar o golpe decisivo. Os corações frouxos têm destas energias súbitas, e é próprio da pusilanimidade iludir-se a si mesma. Ele confessava que nada havia feito, e que a situação exigia alguma cousa mais.

"Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje" - pensava o rapaz -; "Guiomar trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, há nela espírito elevado; há de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala."

A resolução estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estêvão hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmiti-lo por via do papel. Qualquer dos modos tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele receava ser frio na declaração escrita ou incompleto na confissão oral. Irresoluto e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos intervalos; enfim, diferiu a escolha para outra ocasião.

O acaso supriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.

Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram passear à chácara. Estêvão que, como Luís Alves, era dos convivas, afastou-se gradualmente dos outros grupos, e aproximou-se daquela cerca histórica onde, após dous anos de ausência e esquecimento, vira, já transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os olhos nesse sítio, depois da conversa, que aí tivera com ela. A comoção que sentiu foi naturalmente grande; ressurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o céu brilhante, o doce alento da manhã, e por fim a figura da moça, que ali apareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recordações que ele julgava mortas, esperanças que supunha impossíveis.

Estêvão curvou a cabeça ao doce peso daquelas memórias, a alma bebeu, a largos haustos, a vida toda que a imaginação lhe criava e talvez a noite o tomasse na mesma atitude, se a voz maviosa de Guiomar lhe não dissesse a poucos passos de distância:

- Sr. doutor, perdeu alguma cousa?

O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das calhes próximas, a olhar e a sorrir para ele. Estêvão sorriu também, e com uma presença de espírito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como ele era, prontamente respondeu:

- Não perdi nada, mas achei uma cousa.

- Vejamos o que foi.

E Guiomar aproximou-se, a passo firme e seguro, e Estêvão, sem muito vacilar, ali mesmo forjou uma reflexão filosófica a respeito de um inseto que casualmente passava por cima de uma folha seca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forçada e de acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando ele, colhendo as forças todas, a fez deter com estas palavras:

- E se eu tivesse achado outra cousa?

- Ainda mais! - exclamou ela voltando-se risonha.

Estêvão deu dous passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moça fez-se séria e dispôs-se a ouvi-lo.

- Se eu tivesse achado neste lugar - continuou ele - longos dias de esperança e de saudade, um passado que eu julgara não reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lágrimas? Se eu tivesse achado aqui a página rota de uma história começada e interrompida, não por culpa de ninguém na terra, mas da estrela sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no céu, e que, talvez, talvez ninguém nunca apagará?

Estêvão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.

Aquela declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento do rapaz, que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Ele próprio admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia dos lábios da moça, repassava na memória, aliás confusamente, o que tão a frouxo lhe saíra do peito naquela hora de abençoada temeridade.

- Se tivesse achado tudo isso - respondeu Guiomar sorrindo -, é natural que preferisse achar outra cousa menos melancólica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta ocasião de falar, com a viva imaginação que Deus lhe deu; num ou noutro caso, porém, posso decerto lastimá-lo ou admirá-lo, mas não me é dado ouvi-lo.

E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estêvão, receando perder a ocasião que a fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e súplice:

- Atenda-me um só minuto!

- Não um, mas dez - respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para ele - e serão provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à comiseração que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silêncio em que se tem conservado até hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra.

A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impaciência do que a comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estêvão batia-lhe como nunca - como o coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema. Todo aquele castelo de vento, laboriosamente construído nos seus dias de ilusão, todo ele se esboroava e desfazia, como vento que era. Estêvão arrependera-se do impulso que o levara a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos íntimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu sangue juvenil.

Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medir-se, ela serena e quieta, ele trêmulo e gelado.

- Uma só palavra - repetiu Estêvão - e essa adivinho que será de desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma cousa, força é que lhe diga tudo, feliz se me restar, ao menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar - o seu remorso.

Guiomar ouvira-o tranquilamente; a última palavra fê-la estremecer. Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntário e esperou.

A narração foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasião, o lugar e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estêvão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera outrora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar de perto, de gozar naquele escasso ponto da terra a maior de todas as bem-aventuranças.

Tal é a transcrição, não literal, mas fiel, do que disse Estêvão durante esses dez minutos. As palavras caíam-lhe trêmulas e a voz saía-lhe sumida, em parte porque ele forcejava em a abafar, a fim de que o não ouvissem, em parte porque a comoção lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloquência vinha do coração.

Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a princípio um meio riso parecia desabrochar-lhe os lábios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe caísse um véu mais compassivo e humano. Havia nela impaciência e ansiedade de acabar, de sair dali; era, sem dúvida, o receio de que a ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia também comiseração e piedade.

- Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido - disse Estêvão concluindo -; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa única de tudo. Parecia-me ver o contrário do que existia; cheguei a supor que havia em seu coração alguma cousa que não era a total indiferença; vejo que foi tudo ilusão.

O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que aí ficam, todas humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submissão assim devia por força comover a uma mulher amada. Guiomar, falou-lhe sem azedume:

- Era ilusão - disse ela -. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?

- Nenhuma.

- Nem o senhor também, e espero que esta mútua justiça avigore o sentimento de estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não pode haver outra cousa - da minha parte ao menos. É pouco, decerto...

- Não é pouco, é cousa diferente - interrompeu Estêvão.

- Mas não espere nada mais - concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.

Estêvão abriu a boca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que sentia; levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela com os olhos secos e parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquele desengano, que lhe cumpria não voltar ali mais, pelo menos com a assiduidade da esperança; e assim era que a única e amarga satisfação de a ver, nem essa já agora se lhe consentia.

- Dou-lhe um conselho - disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa -, seja homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma criança.

- Talvez - respondeu o moço suspirando.

- E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis.

Guiomar estendeu-lhe a mão, em que ele tocou levemente.

A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braças de distância; vinha encostada ao braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela já não ouvia. Tinha os olhos cravados nos dous interlocutores de há pouco. A moça, apenas vira de longe a madrinha, deu afoitamente o braço a Estêvão, e seguiram ambos a encontrar-se com ela; o rosto de Guiomar não revelava nada; o de Estêvão vinha perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa:

- Jorge - disse ela em voz baixa -, precisamos conversar.

IX

CONSPIRAÇÃO

A baronesa, quando se lhe aproximaram os dous interlocutores da cerca, mais receosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estêvão era tão mal disfarçado, que de duas uma - ou ela acabava de lhe dar o último desengano, ou aquilo era apenas um arrufo sério, que o moço não podia ou não queria esconder de olhos estranhos. Isto é o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma cousa em favor do maior - do único sonho da sua velhice.

Jorge não percebeu a verdadeira razão por que a tia lhe dissera ser necessário conversar com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estêvão - mas estava longe de supor todo o alcance da entrevista.

A entrevista não pôde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali até tarde, e a noite foi a mais agradável e distraída de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve, como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto - tantas vezes pensativo, mas agora tão frio e tão nu.

Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... - Oh! Sobretudo de boa vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, numa história, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer cousa, porque outra cousa não se animaria a fazer - não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estêvão. Ele não podia supô-la abatida; mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nele, isto, sim, imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e quisera sair.

Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos, mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem menos ele próprio.

Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite - o luar que batia nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais desconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte.

Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava - ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do presente e do futuro e - tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho enchiam -, tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.

A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à dedicação filial de que já dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o passeio foi diferente do dos outros dias.

Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco.

A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o diretamente:

- Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.

Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. Puxou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente:

- Não me atrevia a falar-lhe destas cousas ...

- Por que não? - interrompeu a baronesa -. São assuntos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?

- É.

- Amas deveras, ou...

- Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa família; mas, posto que ela seja...

- Guiomar é minha filha - apressou-se a dizer a baronesa.

- Justamente; não pode haver melhor título.

- Tem ainda outro - continuou a baronesa -; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento. Finalmente é de uma beleza pouco comum...

- Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara - acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma cousa, que não era a gravidade de costume.

- Já vês - prosseguiu a baronesa - que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de um homem como tu.

A baronesa tinha um coração ingênuo e liso, sem desvios nem astúcias; contudo, há ocasiões em que o mais reto espírito emprega, como por instinto, finuras diplomáticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquela união do sobrinho com a afilhada, que não confiava só do amor; procurava interessar-lhe também o amor-próprio.

Jorge curvou-se com afetada modéstia.

- Um homem, como eu - disse ele - vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam...

- Só uma, Jorge, só uma qualidade santíssima: é a de amá-los, a ti e a ela. Por isso foi imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que, se eu tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente.

- Oh! Isso! - disse Jorge com ar de dúvida.

- Julgas impossível o casamento?

- Impossível, não; impossível, nada há. Mas... mas suponho que a vontade dela é indispensável, tão indispensável como duvidosa.

- Duvidosa! Estás certo disso?

Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco fora da impassibilidade usual. A idéia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais possível e exeqüível, desde que a tia francamente lhe propusesse aliança.

- Estás certo disso? - repetiu a baronesa.

- Certo não; mas há toda a razão para a dúvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e contudo não me dá o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos.

Jorge expôs longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de Guiomar não correspondia à dele; referiu-lhe, com a maior exação e fidelidade, uns três ou quatro episódios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa não ouvia tudo com igual atenção. Quando ele acabou:

- Guiomar será muito vexada - disse ela - e às vezes, e por isso mesmo, tem essas aparências frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que já te não ama. Há nela certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si.

- Isso, talvez... Mas esse sentimento, que pode ser e é honroso, não é decerto invencível.

Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lábios pairava agora um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia ele nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si próprio. O amor de Guiomar começava a parecer-lhe possível; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razoável, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baronesa conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no coração da moça.

Estas reflexões, fê-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a idéia que ultimamente indicara. Até aquele dia havia ele limitado toda a sua ação a alguns olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquela paz armada. Guiomar chegou daí a pouco e achou-os na "saleta de trabalho", eufemismo elegante, que queria dizer literalmente - saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ela; ambas riam alegremente de não sei que episódio visto no caminho. Jorge erguera-se, pausado, mas risonho, apertou a mão de Guiomar - apertou-a deveras, mais do que era usual e cortês. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saúde, transmitiu à madrinha as lembranças que lhe mandavam e dispôs-se a sair.

Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplação de toda aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possível a aliança há muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestígios lúbricos, donde se podia colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcádico, editaria pela milionésima vez a comparação da Vênus e dos seus infalíveis amorinhos; comparação detestável, sobretudo, porque a casta beleza da moça, se alguma cousa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho.

Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa dera-lhe nervo e resolução, e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espírito, como o relógio que o menino tem de usar pela primeira vez. Até ali deixara-se ele ir à feição das águas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar à riba feliz do matrimônio.

As dúvidas de Estêvão não lhe saltearam o espírito; apenas chegou a casa travou da pena, e lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia refundiu duas ou três vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redação final, transcreveu aquela prosa do coração na mais nítida folha que havia em casa - dobrou o escrito e meteu-o na algibeira.

De noite foi à casa da tia. Achou as senhoras à volta de uma mesa; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francês, recentemente publicado em Paris e trazido pelo último paquete. Mrs. Oswald lia também, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição Constable, de Edimburgo.

Jorge veio interrompê-las um pouco, mas só interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando ele próprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o chá, veio depois a hora de recolher, e a baronesa deu por findo o serão, ainda que o livro estava quase findo.

- Um capítulo mais - aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos.

A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquela dedicação do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono.

- Eu é que não me deito sem saber o resto - declarou Guiomar -; levo o livro comigo.

- Ah! - disse Jorge com um gesto de satisfação.

E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até à porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a página e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender à inglesa. Se ela chegou a entender, vê-lo-emos depois; o certo é que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a página marcada, não com a fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel.

O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por mais exíguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que uma tempestade próxima.

A+
A-