Romance

A Mão e a Luva

1874

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

A mão e a luva, publicado no jornal O Globo entre 26 de setembro e 3 de novembro de 1874, saiu em forma de livro ainda no mesmo mês de novembro. Era o segundo romance de Machado de Assis, que, dois anos antes, estreara na narrativa longa com Ressurreição.

Na breve advertência ao leitor, Machado chama o livro de "novela" e se desculpa de possíveis falhas de estilo e de composição, imputando tais possíveis falhas "às urgências da publicação diária". Essa espécie de pedido de desculpas faz parte de uma estratégia retórica relativamente comum nos autores do século XIX, a maioria dos quais, no Brasil e no exterior, publicaram seus romances na grande imprensa de seus respectivos países antes de os oferecerem ao público em volume.

Não cabe nesta breve introdução discutir esse fenômeno. Se o mencionamos é porque o próprio autor se mostra preocupado com a opinião dos leitores, chegando a declarar, na mesma Advertência, que "se a escrevesse em outras condições" – isto é, sem pressa – a "novela" seria mais desenvolvida, e as personagens, mais profundamente caracterizadas. Portanto, está consciente – ou o simula – de que entrega ao público um livro "menor", em que os caracteres estão apenas "esboçados".

De fato, se comparado com Memórias póstumas de Brás Cubas ou com Dom Casmurro, este romance parece mais superficial, de estrutura mais simples, de enredo até certo ponto previsível, com personagens menos complexas. Entretanto, ao escrever a Advertência da segunda edição (1907), o autor, embora consciente de que, nos trinta e tantos anos decorridos entre a primeira edição e a segunda, o seu próprio estilo e maneira de compor os seus romances tinham mudado muito, prefere não alterar substancialmente o livro de 1874: tira-lhe 15 linhas e corrige erros tipográficos e de ortografia. Ora, isto é sinal claro de que reconhece valor no livro e considera que o mesmo tem um lugar na sua história de escritor de romances.

Tem razão o autor: A mão e a luva, a despeito do enredo relativamente simples, do desenho pouco elaborado das personagens e da estrutura narrativa sem grandes novidades em relação ao que se produzia no Brasil na época em que foi publicado, é um romance que já aponta para o Machado maduro, para o autor que seria, no Brasil, o grande mestre da arte de narrar, dando-lhe nova feição e novo fôlego, elevando a literatura brasileira a um patamar de qualidade comparável ao das melhores literaturas do Ocidente.

Em quatro aspectos A mão e a luva prenuncia claramente os romances da maturidade de Machado de Assis: o olhar sobre a sociedade, a análise psicológica, a utilização de citações e alusões literárias, bem como o aspecto formal. Atente o leitor para o caráter das relações de dependência na sociedade brasileira da época, especialmente na situação de Mrs. Oswald e da própria Guiomar na casa da baronesa. Como o autor declara na Advertência, as personagens constituem o seu "objeto principal" e, talvez por isso, a complexidade psicológica de Guiomar não deve ser desprezada: trata-se de uma mocinha até certo ponto ingênua, mas que é capaz de cálculo e dissimulação, antecipando as protagonistas dos romances da chamada segunda fase. No que diz respeito à intertextualidade, isto é, à presença de outras obras e outros autores no interior do texto machadiano, aqui já se revela a brilhante capacidade de Machado de Assis de utilizar citações e alusões a serviço, por exemplo, da caracterização das personagens, como quando, ao introduzir a figura de Mrs. Oswald, usa um verso de Virgílio para sugerir o caráter traiçoeiro e pouco confiável da governanta. Quanto à forma, A mão e a luva, ao apresentar vários episódios de autoconsciência narrativa, ou seja, de intromissões do narrador na sua história, revela uma moderna estratégia de controle da recepção do leitor, cuja opinião sobre fatos e personagens o narrador tenta manipular.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1907), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "dous"). Mantiveram-se usos hoje não consagrados pela norma culta, como "meia estátua, meia mulher"; ou como o uso do modo indicativo depois de palavras como "talvez" ("mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos pediam outro rosto em que caíssem melhor"), ou locuções como "ainda que" ("Estêvão, [...] observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação."; ou, ainda, como a alternativa "ou" utilizada na expressão "entre isso ou aquilo" ("A moça ficou algum tempo quieta, [...] como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intato a seu autor.").

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Na preparação desta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só,[...]"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico relevante no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Victor Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

outubro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

XVII

A CARTA

Não era preciso reler o papel para entendê-lo; mas olhos amantes deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra única: - Peça-me - escrita no centro da folha, com uma letra fina, elegante, feminina. Luís Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples observador. A letra não era trêmula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de comoção.

Desta observação passou Luís Alves a uma reflexão muito natural. Aquele bilhete, pouco conveniente em quaisquer outras circunstâncias, estava justificado pela declaração que ele próprio fizera à moça alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, ele a ouviria e acompanharia. Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação à hora. Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janela, à meia-noite, aquele papel decisivo, eloquente na mesma sobriedade com que o escrevera?

Luís Alves concluiu que havia alguma razão urgente e, portanto, que era preciso acudir à situação com os meios da situação. Quanto à razão em si, não a pôde descobrir. Ocorreu-lhe o fato, aliás patente, da corte que o sobrinho da baronesa fazia a Guiomar, mas ignorava as circunstâncias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.

Não direi que Luís Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjeturas vagas. Não era homem que perdesse tempo em cousas inúteis; e nada mais inútil naquela ocasião do que tentar explicar o que nenhuma explicação podia ter para ele. O que resolveu foi obedecer ao recado da moça; pedi-la sem hesitação nem preâmbulo. Mas se o caso lhe não produziu insônia, não deixou de lhe estender a vigília, além da hora usual, como era de jeito naquela ocasião solene, sobretudo, tratando-se de criatura que por aqueles tempos era a inveja e a cobiça de muitos olhos. Luís Alves não era, como Estêvão, um adorável cismador, não se nutria de imaginações e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas cismou algum tempo, embebeu-se uma hora na contemplação ideal da mulher que ele soubera escolher. O sono chegou, e o devaneio confundiu-se com o sonho.

Guiomar dormiria tão repousadamente como ele? Dormia; a noite, porém, fora-lhe muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declaração de Jorge e das insinuações da madrinha.

A moça recolhera-se ao quarto, logo depois da declaração. As pessoas da casa nada puderam ler-lhe no rosto, salvo a palidez repentina e o rubor que se lhe seguiu; mas, logo que ela se achou só, deu toda a expansão aos sentimentos que até ali pudera conter.

O primeiro deles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquela declaração assim feita, de emboscada e sobressalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o coração e a índole repeliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorização prévia; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição própria, destinado a satisfazer caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta suposição; mas, a notícia que ela tinha da resolução da baronesa, neste negócio, diminuía muito o valor de tais palavras. Se era uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangê-la com aparências de moderação, e o tempo que lhe deixavam para refletir era-o realmente para considerar, sozinha consigo, na necessidade de pagar os benefícios que recebera.

Não a acusem de ter feito estas reflexões, logo que entrou no quarto, com os olhos cintilantes e os lábios frios de cólera. Eram naturais; primeiramente porque supunha que o seu casamento com Jorge estava deliberado e se realizaria, quaisquer que fossem as circunstâncias; depois, porque a alma dela era melindrosa; não esquecia os benefícios recebidos, mas quisera que lhos não lembrassem por meio de uma violência: fazê-lo era o mesmo que lançar-lhos em rosto.

- Não! - murmurava enfim a moça -. Forçar-me, reduzir-me à condição de simples serva, nunca.

Mas esta cólera apaziguou-se, e o coração venceu o coração. Guiomar recordou a constante ternura da baronesa para com ela, a solicitude com que lhe satisfazia os seus menores desejos, que eram ali ordens, e não combinava tamanho amor com a suposta violência que lhe queria fazer. Não tardou em arrepender-se das palavras incoerentes que lhe haviam fugido, e dos sentimentos maus que atribuíra ao coração da baronesa. Cruzou as mãos no peito e ergueu o pensamento ao céu, como a pedir-lhe perdão. Guiomar, em meio das seduções da vida, que tantas eram para ela e de todo lhe levavam os olhos, não perdera o sentimento religioso, nem esquecera o que lhe havia ensinado a fé ingênua e pura de sua mãe.

A cólera acabara, mas veio depois a luta entre a gratidão e o amor - entre o noivo que lhe propunha a afeição da madrinha e o que o seu próprio coração escolhera. Ela nem ousava tirar as esperanças à baronesa, nem imolar as suas próprias - e uma de duas cousas era preciso que fizesse naquela solene ocasião. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas, se tal duelo podia travar-se-lhe na alma, não era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes. Guiomar tinha de decidir por um dos dous homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao coração.

A resposta, porém, não podia a moça demorá-la nem esquivá-la, não convinha, talvez, prolongar a luta e a dúvida. Quando isto pensou, veio-lhe ao espírito uma idéia decisiva, a de confessar tudo à madrinha. Hesitou, porém, entre fazê-lo ela própria ou por boca de Luís Alves, cujas palavras, apontadas acima, trazia escritas na memória. Preferia este meio; mas não lhe bastava preferi-lo, era mister realizá-lo, e para isso só dous modos tinha: escrever-lhe ou falar-lhe. O segundo podia não ser tão pronto, e talvez falhasse ocasião apropriada; adotou o primeiro, e recuou logo. A carta seria mandada por um fâmulo, mas o espírito de Guiomar era a tal ponto sobre si que repeliu semelhante intervenção. A janela estava aberta; dali viu luz na sala de Luís Alves e a sombra do moço, que passeava de um lado para outro. Ocorreu-lhe então a idéia que pôs por obra, conforme ficou dito no capítulo anterior.

Tal é a história daquela palavra escrita rapidamente numa folha de papel. Apesar da declaração de Luís Alves e das circunstâncias em que a moça se achou, o leitor facilmente compreenderá que ela não a escreveu sem pelejar consigo mesma, sem vacilar muito entre a repugnância e a necessidade. Afinal foram vencidos os escrúpulos, que é tanta vez o seu destino deles, e força é dizer que não os vencem nunca de graça, porque eles falam, arrazoam, obstam o mais que podem, mas é vulgar passarem-lhes por cima. A moça entretanto, apenas lançara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a consciência quase a acusava de uma ação vil. Era tarde; a carta chegara a seu destino.

Na manhã seguinte, a baronesa acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em Guiomar, na noite anterior, alguma cousa que só lhe pareceu enleio natural da situação. Guiomar erguera-se tarde; a manhã estava chuvosa e a madrinha não deu o seu passeio. A moça foi beijar-lhe a mão e a face, como costumava, e receber dela o ósculo materno. O rosto parecia cansado, mas um véu de afetada alegria disfarçava-lhe a expressão natural, à semelhança das posturas de toucador, de maneira que a baronesa, pouco ledora de fisionomias, não discerniu naquela a verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que é honesta e reta, porque a intenção da moça não era mais do que não amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer aflição antecipada.

- Dormiu bem a minha rainha de Inglaterra? - perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos ombros.

- A sua rainha de Inglaterra não tem coroa - respondeu Guiomar com um sorriso contrafeito.

Pela volta do meio-dia, recebeu a baronesa uma carta de Luís Alves. Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a mão de Guiomar. Poucas linhas, corteses, símplices, naturais, feitas por quem parecia senhor da situação.

- Mrs. Oswald - disse a baronesa à sua dama de companhia, que se achava na mesma sala -, leia isto.

A inglesa obedeceu.

- Isto não quer dizer nada - observou ela depois de alguns instantes -. É um pretendente mais; devemos crer, porém, que são muitos, e que se os outros não lhe escrevem cartas destas, é porque são menos afoitos. A Sra. baronesa pensa que os olhos de sua afilhada são inocentes? - continuou a inglesa sorrindo -. Eu cuido que devem estar carregados de crimes, e que há mortos...

- Mas não vê, Mrs. Oswald - interrompeu a baronesa -, que esse homem parece estar autorizado?

Mrs. Oswald calou-se como quem refletia. Logo depois expôs uma série de argumentos e considerações, se não graves em substância, pelo menos nas roupas com que ela os vestia, umas roupas seriamente britânicas, como as não talharia melhor a melhor tesoura da Câmara dos Comuns. Toda ela dava ares de um argumento vivo e sem réplica. Havia em seus cabelos, entre louro e branco, toda a rigidez de um silogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilema. A conclusão de tudo é que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era cousa não só possível, mas até provável, uma vez que a baronesa mostrasse - era o essencial - certa resolução de ânimo muito útil e até indispensável naquela ocasião. Mrs. Oswald oferecia-se para ir chamar a moça imediatamente.

- Pois vá, vá - disse a baronesa.

A inglesa saiu dali e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compôs um sorriso, e Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.

- Venho buscá-la - disse Mrs. Oswald - para uma cousa que a senhora está longe de imaginar.

Guiomar interrogou-a com os olhos.

- Para casar!

- Casar! - exclamou Guiomar sem compreender a intenção da mensageira.

- Nada menos - respondeu esta. Admira-se, não? Também eu; e sua madrinha igualmente. Mas há quem tenha o mau gosto de apaixonar-se por seus belos olhos, e a afronta de a vir pedir, como se pedissem as estrelas do céu...

Guiomar compreendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a inglesa, e disse em tom seco e breve:

- Mas, conclua, Mrs. Oswald.

- A senhora baronesa manda chamá-la.

Guiomar dispôs-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fê-la parar um instante, e com a mais melíflua voz que possuía na escala da garganta, disse:

- Toda a felicidade desta casa está em suas mãos.

XVIII

A ESCOLHA

Mrs. Oswald tinha falado demais. A baronesa não a incumbira de dizer à afilhada a razão por que a mandava chamar. Aconteceu, porém, que aquela indiscrição não foi a única. Mrs. Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e a baronesa fosse tratado o assunto que as ia reunir, cedeu à curiosidade, e acompanhou a moça.

A baronesa estava sentada, entre duas janelas, com a carta aberta nas mãos, tão atenta em relê-la, que não ouviu o rumor dos pés de Guiomar e de Mrs. Oswald.

- Madrinha chamou-me? -perguntou Guiomar parando em frente dela.

A baronesa ergueu a cabeça.

- Ah! É verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.

Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais próxima e sentou-se ao pé da baronesa. Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no chão, como a procurar por onde começaria. Quando os levantou deu com a inglesa. Ia já a falar, mas estacou. A afeição que lhe tinha não impediu que achasse demasiada familiaridade a presença de Mrs. Oswald em semelhante ocasião. Esperou alguns instantes; mas como a inglesa parecesse inteiramente distraída:

- Mrs. Oswald - disse a baronesa -, vá ver se já deram de comer aos passarinhos.

A inglesa percebeu que estes passarinhos, naquele caso, eram uma pura metáfora, e que a baronesa nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que se fosse embora. Todavia, não se deu por achada.

- Parece-me que não - disse ela -; vou já saber disso.

- Olhe - disse a baronesa quando ela já ia a meio caminho -; encoste-me essas portas, e dê ordem para que ninguém nos interrompa.

A inglesa obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguém lha pôde ver, e não se perdeu nada.

As duas ficaram a sós.

- Senta-te aqui, Guiomar - disse a baronesa indicando um banquinho que lhe ficava aos pés.

Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente os braços nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabeça com as mãos, e assim esteve longo tempo sem falar, mas eloquente naquela mudez, em que a palavra pertencia ao coração. Ambas estavam comovidas; e Guiomar, de envolta com um suspiro, murmurou este único e doce nome:

- Mamãe!

Era a primeira vez que ela lhe dava este nome, e tão fundo lhe calou na alma à baronesa que a resposta foi cobri-la de beijos.

- Sim, tua mãe - disse a madrinha -; a que te deu o ser não te amaria mais do que eu. Tens a alma e a ternura da filha que o céu me levou, e se todas as mães que perdem filhos pudessem substituí-los do mesmo modo, desapareceria do mundo a maior e mais cruel dor que há nele...

A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar-lhas. Seguiu-se uma pausa, em que a comoção a pouco e pouco desapareceu, e a baronesa olhou para a carta de Luís Alves, amarrotada pelo gesto de Guiomar.

- Guiomar - disse ela enfim -, já refletiste no pedido de ontem à noite?

A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luís Alves; a pergunta da baronesa desnorteou-a um pouco. Sua inteligência, porém, era clara e sagaz; a resposta foi outra pergunta:

- Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida? - disse ela sorrindo.

- Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um excelente caráter?

- Excelente - respondeu a moça.

- Uma boa alma - continuou a baronesa -, e um moço distinto. Parece gostar muito de ti, segundo disse ontem, não? É natural; só me admira que não te amem muitos mais.

A baronesa parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar os olhos.

- Deves saber - continuou a baronesa - que eu estimaria ver que este casamento se efetuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a ele também, pelo menos tanto quanto é possível julgar das cousas presentes... Que diz o teu coração?

E como Guiomar não respondesse logo:

- Ah! Esquecia-me do que me disseste há pouco. Uma noite não é o bastante para decidir de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-ás mais duas cousas. A primeira é que... Lê tu mesma esta carta.

A baronesa deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luís Alves fazia de sua mão. Enquanto ela percorria com os olhos as poucas linhas escritas, a madrinha parecia observá-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impressão que o pedido lhe fazia, se espanto, se satisfação. Não houve espanto nem satisfação aparente; Guiomar leu a carta e entregou-a à madrinha.

- Leste? É a primeira cousa que eu queria dizer-te. O Dr. Luís Alves pede-te em casamento; tens de escolher entre ele e Jorge. A segunda cousa é que dos dous pretendentes Jorge é o que meu coração prefere; mas não sou eu que me caso, és tu; escolhe com plena liberdade aquele que te falar ao coração.

Guiomar erigiu o busto e olhou diretamente para a madrinha, com tais sinas de espanto no rosto, que esta não pôde deixar de lhe perguntar:

- Que tens?

A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os lábios; travou-lhe da mão e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ela como a refletir. A expressão de seu rosto passara do espanto à satisfação e desta a uma cousa que parecia a um tempo indignação e asco.

- Oh! Madrinha! - exclamou Guiomar -. Por que se não entenderam logo os nossos corações? Não havia mister pôr de permeio um espírito importuno e desconsolador. Se eu adivinhara essas palavras que acabou de dizer, não teria padecido metade do que me fazem padecer há longos dias...

- Padecer?

- Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu que ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a afligir.

Não precisava dizer mais nada; a escolha que ela ia fazer estava já indicada pelo menos. Entendeu-o a baronesa, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu a tristeza súbita; arrependeu-se de ter ido tão longe.

- Percebo - respondeu a baronesa -, queres dizer que dos dous pretendentes escolhes o Dr. Luís Alves?

A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ela com uma expressão de ansiedade que a afligiu.

- Fala - repetiu a baronesa.

- Escolho... o Sr. Jorge - suspirou Guiomar depois de alguns instantes.

A baronesa estremeceu.

- Falas sério? Não creio; não é esse o sentimento do teu coração. Vê-se que não é. Queres iludir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste nunca. Mas amas ao outro, não é? Que tem isso? Não me dá o prazer que eu teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade está acima das minhas preferências. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o que pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o coração - um coração, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele.

Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu atento o que precede verá que era isso mesmo o que ela desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A moça não queria iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração, para que a madrinha conferisse, por si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um pouco de meio indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se não tomassem à má parte o vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhes dirá que esta Guiomar, sem perder as excelências de seu coração, era de barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dirá também que, apesar de seus verdes anos, ela compreendia já que as aparências de um sacrifício valem mais, muita vez, do que o próprio sacrifício.

A baronesa acabara de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua primeira impressão, e se a escolha era contrária ao que ela desejava, a satisfação da afilhada pagou-lhe tudo quanto ela ia perder. Era assim aquela alma de mãe; boa, dedicada e generosa.

- Oh! Madrinha! Obrigada! - exclamou a moça -. Não me fica odiando?

- Oh! - exclamou a baronesa com um tom de repreensão.

E puxou-a para si, e abraçou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento, e as duas confundiram as suas alegrias íntimas e afeições sinceras.

Mrs. Oswald viu-as daí a pouco, risonhas e entendidas. Era fácil concluir qual dos dous pretendentes vencera; Guiomar não receberia de tão boa cara o sobrinho da baronesa. Tudo estava acabado; e talvez que a sua própria pessoa padecera naquele lance último. A baronesa pedira a Guiomar que lhe explicasse a que padecimentos aludira, mas a moça preferiu não dizer nada, não só por não afligir a madrinha, como por não dar um aspecto de rivalidade à situação entre ela e Mrs. Oswald.

A escolha estava feita, o consentimento dado. A baronesa respondeu nessa mesma tarde ao pretendente feliz. Estêvão teria manifestado ruidosamente toda a alegria que semelhante resposta lhe causara; sua alma apaixonada e exuberante contaria a Deus e aos homens aquela imensa fortuna; Luís Alves encerrou o prazer, aliás grande, dentro de si; pensou na moça e no futuro alguns instantes, mas não falou deles a ninguém.

A baronesa escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, comunicando-lhe a resposta de Guiomar. Os leitores não terão dificuldade de admitir que o coração de Jorge não sentiu o golpe profundamente, mas sentiu alguma cousa. Não foi nessa noite à casa da tia; não foi também na segunda; na terceira chegou a descer as escadas; na quarta embicou para Botafogo.

- Tudo está acabado - disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.

- Acabado! - suspirou Jorge.

- Agora, é preciso ânimo; espero que serás homem.

- Oh! Serei homem! - suspirou outra vez Jorge.

E dous suspiros, arrancados do peito de um homem tão grave, deviam ser por força dous suspiros gravíssimos, como facilmente acredita o leitor.

Efetivamente a fisionomia do moço não tinha abatimento nem aflição; não a amarrotava o menor vestígio de noite mal dormida, menos ainda de lágrimas enxutas. Alegre não era, mas grave e austera, como ele a trazia sempre, a contrastar com o retesado do bigode.

A baronesa imaginou contudo que a dor do sobrinho devia tê-lo mortificado muito; apertou-lhe as mãos com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de animação.

Imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar. A moça estava serena, talvez risonha e até compassiva. Se tivesse de casar com ele odiara-o decerto; agora já lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte não deixou de ficar um tanto abalado, em parte comoção, em parte constrangimento, sendo porém o constrangimento maior do que a comoção. Nos lábios pairou-lhe um desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua imaginação pinturesca descobriu a cor amarela. Se outro fosse o aspecto, é provável que ela lhe conservasse, ao menos, o respeito. Mas aquele sorriso perdeu-o de todo no ânimo de Guiomar.

Na primeira ocasião que se lhe ofereceu, expandiu-se Jorge com Mrs. Oswald.

- Perdeu-se tudo... - murmurou ele.

A inglesa não respondeu.

Jorge continuou ainda a falar, e a inglesa a ouvir, mas a ouvir só, e a querer diverti-lo daquele assunto.

- Tudo se perdeu - disse enfim o sobrinho da baronesa -, talvez por culpa sua.

- Minha? - perguntou Mrs. Oswald.

- Sua.

- Mas...

Jorge hesitou um instante.

- Não mostrou calor suficiente - disse ele enfim.

- Que quer? - disse Mrs. Oswald -. O coração não se pode dominar, nem há meio de impor-lhe um sentimento. D. Guiomar é uma santa criatura, ama deveras ao seu rival; há nada mais justo do que casá-los?

- De maneira que...

- De maneira que tudo era lícito fazer na suposição de que ela não amava a outro, mas uma vez que ama ...

Luís Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi à casa da baronesa, que o recebeu com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a completamente feliz; nem iras, nem ressentimentos, como anunciara Mrs. Oswald. Todo o castelo de cartas caíra por terra, desde que a sinceridade da baronesa interveio.

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