Romance

A Mão e a Luva

1874

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

A mão e a luva, publicado no jornal O Globo entre 26 de setembro e 3 de novembro de 1874, saiu em forma de livro ainda no mesmo mês de novembro. Era o segundo romance de Machado de Assis, que, dois anos antes, estreara na narrativa longa com Ressurreição.

Na breve advertência ao leitor, Machado chama o livro de "novela" e se desculpa de possíveis falhas de estilo e de composição, imputando tais possíveis falhas "às urgências da publicação diária". Essa espécie de pedido de desculpas faz parte de uma estratégia retórica relativamente comum nos autores do século XIX, a maioria dos quais, no Brasil e no exterior, publicaram seus romances na grande imprensa de seus respectivos países antes de os oferecerem ao público em volume.

Não cabe nesta breve introdução discutir esse fenômeno. Se o mencionamos é porque o próprio autor se mostra preocupado com a opinião dos leitores, chegando a declarar, na mesma Advertência, que "se a escrevesse em outras condições" – isto é, sem pressa – a "novela" seria mais desenvolvida, e as personagens, mais profundamente caracterizadas. Portanto, está consciente – ou o simula – de que entrega ao público um livro "menor", em que os caracteres estão apenas "esboçados".

De fato, se comparado com Memórias póstumas de Brás Cubas ou com Dom Casmurro, este romance parece mais superficial, de estrutura mais simples, de enredo até certo ponto previsível, com personagens menos complexas. Entretanto, ao escrever a Advertência da segunda edição (1907), o autor, embora consciente de que, nos trinta e tantos anos decorridos entre a primeira edição e a segunda, o seu próprio estilo e maneira de compor os seus romances tinham mudado muito, prefere não alterar substancialmente o livro de 1874: tira-lhe 15 linhas e corrige erros tipográficos e de ortografia. Ora, isto é sinal claro de que reconhece valor no livro e considera que o mesmo tem um lugar na sua história de escritor de romances.

Tem razão o autor: A mão e a luva, a despeito do enredo relativamente simples, do desenho pouco elaborado das personagens e da estrutura narrativa sem grandes novidades em relação ao que se produzia no Brasil na época em que foi publicado, é um romance que já aponta para o Machado maduro, para o autor que seria, no Brasil, o grande mestre da arte de narrar, dando-lhe nova feição e novo fôlego, elevando a literatura brasileira a um patamar de qualidade comparável ao das melhores literaturas do Ocidente.

Em quatro aspectos A mão e a luva prenuncia claramente os romances da maturidade de Machado de Assis: o olhar sobre a sociedade, a análise psicológica, a utilização de citações e alusões literárias, bem como o aspecto formal. Atente o leitor para o caráter das relações de dependência na sociedade brasileira da época, especialmente na situação de Mrs. Oswald e da própria Guiomar na casa da baronesa. Como o autor declara na Advertência, as personagens constituem o seu "objeto principal" e, talvez por isso, a complexidade psicológica de Guiomar não deve ser desprezada: trata-se de uma mocinha até certo ponto ingênua, mas que é capaz de cálculo e dissimulação, antecipando as protagonistas dos romances da chamada segunda fase. No que diz respeito à intertextualidade, isto é, à presença de outras obras e outros autores no interior do texto machadiano, aqui já se revela a brilhante capacidade de Machado de Assis de utilizar citações e alusões a serviço, por exemplo, da caracterização das personagens, como quando, ao introduzir a figura de Mrs. Oswald, usa um verso de Virgílio para sugerir o caráter traiçoeiro e pouco confiável da governanta. Quanto à forma, A mão e a luva, ao apresentar vários episódios de autoconsciência narrativa, ou seja, de intromissões do narrador na sua história, revela uma moderna estratégia de controle da recepção do leitor, cuja opinião sobre fatos e personagens o narrador tenta manipular.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1907), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "dous"). Mantiveram-se usos hoje não consagrados pela norma culta, como "meia estátua, meia mulher"; ou como o uso do modo indicativo depois de palavras como "talvez" ("mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos pediam outro rosto em que caíssem melhor"), ou locuções como "ainda que" ("Estêvão, [...] observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação."; ou, ainda, como a alternativa "ou" utilizada na expressão "entre isso ou aquilo" ("A moça ficou algum tempo quieta, [...] como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intato a seu autor.").

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Na preparação desta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só,[...]"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico relevante no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Victor Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

outubro de 2008

Revisto em fevereiro de 2011.

XVI

A CONFISSÃO

Na mesma noite em que Jorge, cedendo às sugestões de Mrs. Oswald, tentava o último recurso que no entender da inglesa havia, achava-se Luís Alves em casa, comodamente sentado numa poltrona de couro, defronte da janela com os olhos no mar e o pensamento nas suas duas candidaturas vencidas. Meia-noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tílburi e batia-lhe à porta.

Era Estêvão.

Luís Alves naturalmente admirou-se de o ver ali àquela hora; mas Estêvão explicou-lhe tudo.

- Venho passar meia hora contigo, ou a noite toda se quiseres. Estava em casa aborrecido, a pensar... bem sabes em quê...

- Nela? - interrompeu Luís Alves.

- Agora e sempre.

Luís Alves torceu o bigode e olhou três ou quatro vezes para o colega, enquanto este tirava o chapéu e dispunha-se a ir buscar uma cadeira para sentar-se ao pé do outro.

- Estêvão - disse Luís Alves depois de alguns instantes de reflexão, e voltando a poltrona para dentro -, ouve-me primeiro e resolverás depois se ficas a noite ou se te vais embora imediatamente. Talvez escolhas este último alvitre.

- Vais falar-me de Guiomar?

- Justamente.

Estêvão sentou-se defronte de Luís Alves. Seu coração batia apressado; dissera-se que toda a sua vida pendia dos lábios do amigo. Houve um instante de silêncio.

- Nenhuma... nenhuma esperança então? - murmurou Estêvão.

- Disseste a fatal palavra! - exclamou Luís Alves -. Sim, não tens nenhuma esperança.

- Mas... como sabes?

- Não me interrogues; eu não poderia dizer-te tudo o que há. Poupa-me, ao menos, esse triste dever.

Estêvão sentiu arrasarem-se-lhe os olhos d'água. Quis falar, mas as palavras iam-lhe saindo envoltas em soluços.

Luís Alves fumava tranquilamente, acompanhando com os olhos os rolinhos de fumo que lhe fugiam da ponta do charuto. Este silêncio durou cerca de dez minutos. O mar batia compassadamente na praia. A voz da onda e o latido de um cão ao longe eram os únicos sons que vinham quebrar a mudez daquela hora solene para um desses dous homens que ia perder até o repouso da esperança.

Estêvão foi o primeiro que falou:

- Ama a outro, não é? - perguntou ele com a voz trêmula.

- Ama - respondeu surdamente Luís Alves.

Estêvão ergueu-se e deu alguns passos na sala, sem dizer palavra, a morder a ponta do bigode, parando às vezes, outras traduzindo com um gesto desordenado os sentimentos que lhe tumultuavam no coração. A dor devia ser grande, mas a manifestação já não era a mesma que o leitor lhe viu, dous anos antes, quando ele foi confiar ao amigo o primeiro desengano de Guiomar.

- Parece-me que eu adivinhava isto mesmo - disse ele, enfim, parando em frente de Luís Alves. Este desejo que me acometeu de vir aqui, a esta hora, sem certeza de encontrar-te, era mais um benefício do meu destino. Devia esperá-lo. Que vida tem sido a minha, Luís! Agarrei-me, nem sei por quê, à esperança de ser amado por ela, de a vencer pela piedade, ou pelo remorso, ou por qualquer outro motivo que fosse - o motivo importava pouco... O essencial é que ela me pagasse em ternura e amor todas as dores que curti, as lágrimas todas que tenho devorado em silêncio... E era só essa esperança que ainda me dava forças... que me fazia crer feliz, como pode sê-lo um desgraçado, como podia sê-lo eu, que nasci debaixo de ruim estrela... Oh! Se tu souberas... Não, não sabes, nem ela também, ninguém sabe nem saberá nunca tudo quanto tenho padecido, tudo quanto...

Interrompeu-se. Duas lágrimas, espremidas do fundo do coração, saltaram-lhe dos olhos e desceram-lhe rápidas a perder-se entre os cabelos raros e finos da barba. Ele sentiu que outras podiam vir, e foi sentar-se num sofá, meio voltado de costas para Luís Alves. As outras vieram, porque o coração ainda as tinha para as dores supremas; mas correram-lhe silenciosas, sem um soluço, sem uma queixa única.

Luís Alves levantara-se e chegara à janela. Seu espírito, apesar de frio e quieto, parecia agora um pouco alvoroçado. Não era dor; e não sei se lhe podia chamar remorso. Mal-estar apenas, e comiseração. O coração era capaz de afeições; mas, como ficou dito no primeiro capítulo, ele sabia regê-las, moderá-las e guiá-las ao seu próprio interesse. Não era corrupto nem perverso; também não se pode dizer que fosse dedicado nem cavalheiresco; era, ao cabo de tudo, um homem friamente ambicioso.

Estêvão levantara-se outra vez e pegara no chapéu.

- Vem cá - disse Luís Alves entrando e indo ter com ele -; vejo que estás mais homem do que antes. Resta que o sejas completamente; varre da memória e do coração tudo o que possa referir-se...

- Que remédio! - interrompeu Estêvão sorrindo amargamente -; que remédio tenho eu senão esquecê-la! Mas quando?

- Mais breve talvez do que supões...

Luís Alves não acabou; Estêvão olhara para ele com um gesto de espanto e fora sentar-se outra vez.

- Mais breve do que suponho! - exclamou ele. Tu não tens coração: não tens sequer observação nem memória. Não vês, não sentes que esta paixão é o sangue do meu sangue, a vida da minha vida? Esquecê-la! Era bom se eu a pudesse esquecer; mas a minha má sina até essa esperança me arranca, porque este padecer íntimo, constante, há de ir comigo até à morte...

Desta vez era Luís Alves que passeava de um lado para outro. Em seu espírito despontava uma ideia, que ele examinava, a ver se a poria ali mesmo em execução. Era dizer-lhe tudo. Estêvão viria a sabê-lo mais tarde; melhor era que o soubesse logo e por ele. Ao mesmo tempo refletia na exaltação dos sentimentos do rapaz; a dor certamente se lhe agravaria, em sabendo que era ele o preferido de Guiomar. O coração, que perdoaria a um estranho, condenaria ao amigo.

Estêvão, assentado, com os olhos no teto, parecia entregue às suas reflexões, mas só parecia, porque ele não pensava, evocava antigas memórias, fazia surgir diante de seus olhos a figura gentil de Guiomar, sentia-lhe o império dos belos olhos castanhos, ouvia-lhe a palavra doce e aveludada entornar-se-lhe no coração. Não evocava só, criava também, pintava com a imaginação a felicidade que lhe poderia dar a moça, se entre todos os homens o escolhera, se eles dous vinculassem os seus destinos. Ele via-a ao pé de si, cingia-lhe o braço em volta da cintura, enchia-lhe de beijos os cabelos, tudo isto em meio de uma paisagem única na terra, porque a abundância da natureza cresceria ao contato daquele sentimento puro, casto e eterno. Não falo eu, leitor; transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que ele abria por esse espaço fora, única ventura que lhe era permitida.

No meio dessas visões foi acordá-lo Luís Alves.

- Tens razão de sentir - disse este -; mas não gastes o coração, que há maiores surpresas na vida... Em todo o caso, deixa-me dizer-te que nenhuma razão tens de censura...

- Censuro eu alguém?

- Há no amor um germe de ódio que pode vir a desenvolver-se depois. Talvez chegues a acusá-la de te não querer; nesse dia reflete que os movimentos do coração não estão nas mãos da vontade. Ela não tem culpa se outro lhe despertou o amor.

- Ah! Incumbiu-te da defesa!

Luís Alves sorriu; ele contava com a recriminação.

- Não, não me incumbiu da defesa - disse ele -; sou eu que a tomo por minhas mãos. Que defendo eu aqui senão a natureza, a razão, a lógica dos sentimentos, dura e inflexível como toda a outra lógica? Há no fundo das tuas palavras um sentimento de egoísmo...

- O amor não é outra cousa - respondeu Estêvão sorrindo por sua vez. Queres que inda em cima lhe agradeça este desespero? Queres que vá apertar a mão ao homem que a soube vencer?

Luís Alves mordeu a ponta do lábio e acercou-se da janela. Quando ia a voltar para dentro ouviu um rumor na janela ao pé, a primeira da casa da baronesa. Luís Alves deu um passo mais. Não viu ninguém; viu apenas o resto de um vestido que fugia e um objeto que lhe caía aos pés. Inclinou-se a apanhá-lo. Era uma grande folha de papel envolvendo, para lhe dar mais peso, outra folha pequena dobrada em quarto. Luís Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente o que ali vinha escrito. Leu, meteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfarçadamente para a janela. Ninguém; a casa da baronesa dormia.

Quando voltou para dentro, Estêvão tinha-se levantado. Ele vira cair o papel, apanhá-lo e lê-lo Luís Alves. Não entendeu nada do que se passara; mas seu olhar como que pedia uma explicação.

Luís Alves foi direto ao fim.

- Estêvão - disse ele -, vais saber a verdade toda; não poderia ocultar-te o que se há passado, nem conviria talvez que tu a soubesses por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras digno dela, e ela digna de ti; mas a natureza não os fez um para o outro. São duas almas excelentes que seriam infelizes unidas. Quem há aqui que censurar? Mas se a natureza explica o sentimento dela, igualmente explica o de um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as esperanças de teu coração; era conhecer toda a minha amizade e a profunda estima que sempre te consagrei. Mas nem tu nem eu contávamos comigo; porque também eu tenho coração, e os prestígios da beleza também falam à minha alma. Não a pude ver a frio. A paixão obscureceu-me. Nesta minha felicidade de amar e ser amado, acredita que sou alguma cousa infeliz, porque há lágrimas tuas, há o teu padecer longo e cruel, que eu imagino e deploro. A confissão é franca; não te falo em arrependimento, porque são atos do coração e não da consciência, que essa é pura e honrada. E depois desta exposição fiel, cuido que lastimarás comigo o encontro em que o acaso ou a má sorte nos reuniu a todos três; mas não me acusarás nem me recusarás a tua velha estima. Falo só da estima; a amizade, creio que não poderá ser a mesma. Mas prezarás o meu caráter. Pela minha parte, nem uma nem outra cousa perece; sei o que vales. Não sei aonde nos lançará a onda do destino amanhã. Pela última vez, porém, espero que apertarás a mão do teu amigo.

Luís Alves concluíra estendendo-lhe a mão. Estêvão olhou para ele, mas não disse uma só palavra, não fez um gesto único: caminhou para a porta e saiu.

- Estêvão! - gritou Luís Alves.

Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do tílburi que rolava surdamente na terra úmida da praia.

Luís Alves levantou secamente os ombros; chegou-se à luz e releu o escrito.

XVII

A CARTA

Não era preciso reler o papel para entendê-lo; mas olhos amantes deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra única: - Peça-me - escrita no centro da folha, com uma letra fina, elegante, feminina. Luís Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples observador. A letra não era trêmula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de comoção.

Desta observação passou Luís Alves a uma reflexão muito natural. Aquele bilhete, pouco conveniente em quaisquer outras circunstâncias, estava justificado pela declaração que ele próprio fizera à moça alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, ele a ouviria e acompanharia. Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação à hora. Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janela, à meia-noite, aquele papel decisivo, eloquente na mesma sobriedade com que o escrevera?

Luís Alves concluiu que havia alguma razão urgente e, portanto, que era preciso acudir à situação com os meios da situação. Quanto à razão em si, não a pôde descobrir. Ocorreu-lhe o fato, aliás patente, da corte que o sobrinho da baronesa fazia a Guiomar, mas ignorava as circunstâncias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.

Não direi que Luís Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjeturas vagas. Não era homem que perdesse tempo em cousas inúteis; e nada mais inútil naquela ocasião do que tentar explicar o que nenhuma explicação podia ter para ele. O que resolveu foi obedecer ao recado da moça; pedi-la sem hesitação nem preâmbulo. Mas se o caso lhe não produziu insônia, não deixou de lhe estender a vigília, além da hora usual, como era de jeito naquela ocasião solene, sobretudo, tratando-se de criatura que por aqueles tempos era a inveja e a cobiça de muitos olhos. Luís Alves não era, como Estêvão, um adorável cismador, não se nutria de imaginações e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas cismou algum tempo, embebeu-se uma hora na contemplação ideal da mulher que ele soubera escolher. O sono chegou, e o devaneio confundiu-se com o sonho.

Guiomar dormiria tão repousadamente como ele? Dormia; a noite, porém, fora-lhe muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declaração de Jorge e das insinuações da madrinha.

A moça recolhera-se ao quarto, logo depois da declaração. As pessoas da casa nada puderam ler-lhe no rosto, salvo a palidez repentina e o rubor que se lhe seguiu; mas, logo que ela se achou só, deu toda a expansão aos sentimentos que até ali pudera conter.

O primeiro deles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquela declaração assim feita, de emboscada e sobressalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o coração e a índole repeliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorização prévia; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição própria, destinado a satisfazer caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta suposição; mas, a notícia que ela tinha da resolução da baronesa, neste negócio, diminuía muito o valor de tais palavras. Se era uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangê-la com aparências de moderação, e o tempo que lhe deixavam para refletir era-o realmente para considerar, sozinha consigo, na necessidade de pagar os benefícios que recebera.

Não a acusem de ter feito estas reflexões, logo que entrou no quarto, com os olhos cintilantes e os lábios frios de cólera. Eram naturais; primeiramente porque supunha que o seu casamento com Jorge estava deliberado e se realizaria, quaisquer que fossem as circunstâncias; depois, porque a alma dela era melindrosa; não esquecia os benefícios recebidos, mas quisera que lhos não lembrassem por meio de uma violência: fazê-lo era o mesmo que lançar-lhos em rosto.

- Não! - murmurava enfim a moça -. Forçar-me, reduzir-me à condição de simples serva, nunca.

Mas esta cólera apaziguou-se, e o coração venceu o coração. Guiomar recordou a constante ternura da baronesa para com ela, a solicitude com que lhe satisfazia os seus menores desejos, que eram ali ordens, e não combinava tamanho amor com a suposta violência que lhe queria fazer. Não tardou em arrepender-se das palavras incoerentes que lhe haviam fugido, e dos sentimentos maus que atribuíra ao coração da baronesa. Cruzou as mãos no peito e ergueu o pensamento ao céu, como a pedir-lhe perdão. Guiomar, em meio das seduções da vida, que tantas eram para ela e de todo lhe levavam os olhos, não perdera o sentimento religioso, nem esquecera o que lhe havia ensinado a fé ingênua e pura de sua mãe.

A cólera acabara, mas veio depois a luta entre a gratidão e o amor - entre o noivo que lhe propunha a afeição da madrinha e o que o seu próprio coração escolhera. Ela nem ousava tirar as esperanças à baronesa, nem imolar as suas próprias - e uma de duas cousas era preciso que fizesse naquela solene ocasião. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas, se tal duelo podia travar-se-lhe na alma, não era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de sempre vencer, porque elas são as armas do forte, e a vitória é dos fortes. Guiomar tinha de decidir por um dos dous homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao coração.

A resposta, porém, não podia a moça demorá-la nem esquivá-la, não convinha, talvez, prolongar a luta e a dúvida. Quando isto pensou, veio-lhe ao espírito uma idéia decisiva, a de confessar tudo à madrinha. Hesitou, porém, entre fazê-lo ela própria ou por boca de Luís Alves, cujas palavras, apontadas acima, trazia escritas na memória. Preferia este meio; mas não lhe bastava preferi-lo, era mister realizá-lo, e para isso só dous modos tinha: escrever-lhe ou falar-lhe. O segundo podia não ser tão pronto, e talvez falhasse ocasião apropriada; adotou o primeiro, e recuou logo. A carta seria mandada por um fâmulo, mas o espírito de Guiomar era a tal ponto sobre si que repeliu semelhante intervenção. A janela estava aberta; dali viu luz na sala de Luís Alves e a sombra do moço, que passeava de um lado para outro. Ocorreu-lhe então a idéia que pôs por obra, conforme ficou dito no capítulo anterior.

Tal é a história daquela palavra escrita rapidamente numa folha de papel. Apesar da declaração de Luís Alves e das circunstâncias em que a moça se achou, o leitor facilmente compreenderá que ela não a escreveu sem pelejar consigo mesma, sem vacilar muito entre a repugnância e a necessidade. Afinal foram vencidos os escrúpulos, que é tanta vez o seu destino deles, e força é dizer que não os vencem nunca de graça, porque eles falam, arrazoam, obstam o mais que podem, mas é vulgar passarem-lhes por cima. A moça entretanto, apenas lançara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a consciência quase a acusava de uma ação vil. Era tarde; a carta chegara a seu destino.

Na manhã seguinte, a baronesa acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em Guiomar, na noite anterior, alguma cousa que só lhe pareceu enleio natural da situação. Guiomar erguera-se tarde; a manhã estava chuvosa e a madrinha não deu o seu passeio. A moça foi beijar-lhe a mão e a face, como costumava, e receber dela o ósculo materno. O rosto parecia cansado, mas um véu de afetada alegria disfarçava-lhe a expressão natural, à semelhança das posturas de toucador, de maneira que a baronesa, pouco ledora de fisionomias, não discerniu naquela a verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que é honesta e reta, porque a intenção da moça não era mais do que não amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer aflição antecipada.

- Dormiu bem a minha rainha de Inglaterra? - perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos ombros.

- A sua rainha de Inglaterra não tem coroa - respondeu Guiomar com um sorriso contrafeito.

Pela volta do meio-dia, recebeu a baronesa uma carta de Luís Alves. Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a mão de Guiomar. Poucas linhas, corteses, símplices, naturais, feitas por quem parecia senhor da situação.

- Mrs. Oswald - disse a baronesa à sua dama de companhia, que se achava na mesma sala -, leia isto.

A inglesa obedeceu.

- Isto não quer dizer nada - observou ela depois de alguns instantes -. É um pretendente mais; devemos crer, porém, que são muitos, e que se os outros não lhe escrevem cartas destas, é porque são menos afoitos. A Sra. baronesa pensa que os olhos de sua afilhada são inocentes? - continuou a inglesa sorrindo -. Eu cuido que devem estar carregados de crimes, e que há mortos...

- Mas não vê, Mrs. Oswald - interrompeu a baronesa -, que esse homem parece estar autorizado?

Mrs. Oswald calou-se como quem refletia. Logo depois expôs uma série de argumentos e considerações, se não graves em substância, pelo menos nas roupas com que ela os vestia, umas roupas seriamente britânicas, como as não talharia melhor a melhor tesoura da Câmara dos Comuns. Toda ela dava ares de um argumento vivo e sem réplica. Havia em seus cabelos, entre louro e branco, toda a rigidez de um silogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilema. A conclusão de tudo é que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era cousa não só possível, mas até provável, uma vez que a baronesa mostrasse - era o essencial - certa resolução de ânimo muito útil e até indispensável naquela ocasião. Mrs. Oswald oferecia-se para ir chamar a moça imediatamente.

- Pois vá, vá - disse a baronesa.

A inglesa saiu dali e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compôs um sorriso, e Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.

- Venho buscá-la - disse Mrs. Oswald - para uma cousa que a senhora está longe de imaginar.

Guiomar interrogou-a com os olhos.

- Para casar!

- Casar! - exclamou Guiomar sem compreender a intenção da mensageira.

- Nada menos - respondeu esta. Admira-se, não? Também eu; e sua madrinha igualmente. Mas há quem tenha o mau gosto de apaixonar-se por seus belos olhos, e a afronta de a vir pedir, como se pedissem as estrelas do céu...

Guiomar compreendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a inglesa, e disse em tom seco e breve:

- Mas, conclua, Mrs. Oswald.

- A senhora baronesa manda chamá-la.

Guiomar dispôs-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fê-la parar um instante, e com a mais melíflua voz que possuía na escala da garganta, disse:

- Toda a felicidade desta casa está em suas mãos.

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A-