A Mão e a Luva
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
A mão e a luva, publicado no jornal O Globo entre 26 de setembro e 3 de novembro de 1874, saiu em forma de livro ainda no mesmo mês de novembro. Era o segundo romance de Machado de Assis, que, dois anos antes, estreara na narrativa longa com Ressurreição.
Na breve advertência ao leitor, Machado chama o livro de "novela" e se desculpa de possíveis falhas de estilo e de composição, imputando tais possíveis falhas "às urgências da publicação diária". Essa espécie de pedido de desculpas faz parte de uma estratégia retórica relativamente comum nos autores do século XIX, a maioria dos quais, no Brasil e no exterior, publicaram seus romances na grande imprensa de seus respectivos países antes de os oferecerem ao público em volume.
Não cabe nesta breve introdução discutir esse fenômeno. Se o mencionamos é porque o próprio autor se mostra preocupado com a opinião dos leitores, chegando a declarar, na mesma Advertência, que "se a escrevesse em outras condições" – isto é, sem pressa – a "novela" seria mais desenvolvida, e as personagens, mais profundamente caracterizadas. Portanto, está consciente – ou o simula – de que entrega ao público um livro "menor", em que os caracteres estão apenas "esboçados".
De fato, se comparado com Memórias póstumas de Brás Cubas ou com Dom Casmurro, este romance parece mais superficial, de estrutura mais simples, de enredo até certo ponto previsível, com personagens menos complexas. Entretanto, ao escrever a Advertência da segunda edição (1907), o autor, embora consciente de que, nos trinta e tantos anos decorridos entre a primeira edição e a segunda, o seu próprio estilo e maneira de compor os seus romances tinham mudado muito, prefere não alterar substancialmente o livro de 1874: tira-lhe 15 linhas e corrige erros tipográficos e de ortografia. Ora, isto é sinal claro de que reconhece valor no livro e considera que o mesmo tem um lugar na sua história de escritor de romances.
Tem razão o autor: A mão e a luva, a despeito do enredo relativamente simples, do desenho pouco elaborado das personagens e da estrutura narrativa sem grandes novidades em relação ao que se produzia no Brasil na época em que foi publicado, é um romance que já aponta para o Machado maduro, para o autor que seria, no Brasil, o grande mestre da arte de narrar, dando-lhe nova feição e novo fôlego, elevando a literatura brasileira a um patamar de qualidade comparável ao das melhores literaturas do Ocidente.
Em quatro aspectos A mão e a luva prenuncia claramente os romances da maturidade de Machado de Assis: o olhar sobre a sociedade, a análise psicológica, a utilização de citações e alusões literárias, bem como o aspecto formal. Atente o leitor para o caráter das relações de dependência na sociedade brasileira da época, especialmente na situação de Mrs. Oswald e da própria Guiomar na casa da baronesa. Como o autor declara na Advertência, as personagens constituem o seu "objeto principal" e, talvez por isso, a complexidade psicológica de Guiomar não deve ser desprezada: trata-se de uma mocinha até certo ponto ingênua, mas que é capaz de cálculo e dissimulação, antecipando as protagonistas dos romances da chamada segunda fase. No que diz respeito à intertextualidade, isto é, à presença de outras obras e outros autores no interior do texto machadiano, aqui já se revela a brilhante capacidade de Machado de Assis de utilizar citações e alusões a serviço, por exemplo, da caracterização das personagens, como quando, ao introduzir a figura de Mrs. Oswald, usa um verso de Virgílio para sugerir o caráter traiçoeiro e pouco confiável da governanta. Quanto à forma, A mão e a luva, ao apresentar vários episódios de autoconsciência narrativa, ou seja, de intromissões do narrador na sua história, revela uma moderna estratégia de controle da recepção do leitor, cuja opinião sobre fatos e personagens o narrador tenta manipular.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1907), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "dous"). Mantiveram-se usos hoje não consagrados pela norma culta, como "meia estátua, meia mulher"; ou como o uso do modo indicativo depois de palavras como "talvez" ("mas talvez advertiu consigo que se eram assim mais belos pediam outro rosto em que caíssem melhor"), ou locuções como "ainda que" ("Estêvão, [...] observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação."; ou, ainda, como a alternativa "ou" utilizada na expressão "entre isso ou aquilo" ("A moça ficou algum tempo quieta, [...] como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intato a seu autor.").
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Na preparação desta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só,[...]"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico relevante no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Victor Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
X
A REVELAÇÃO
Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de Jorge. Não tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, rescendendo a amores. O espírito de Guiomar estava tão longe daquilo que não suspeitou nada e distraidamente o abriu. A primeira palavra escrita era o seu nome; a última era o de Jorge.
O primeiro gesto de Guiomar foi de cólera. Se ele pudesse espreitá-la pelo buraco da fechadura, e ver-lhe a expressão do rosto é mui provável que se lhe convertesse em aborrecimento todo o amor que até agora nutria. Mas ele não estava ali, a moça podia traduzir fielmente no rosto os movimentos do coração.
- Mais um - pensou ela -; este porém...
E desta vez o gesto não foi de cólera, foi de alguma cousa mais, metade fastio, metade lástima, mescla difícil e rara.
A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intato a seu autor. Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:
Guiomar! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociais condenam-me decerto, mas o coração aprova, que digo? Ele mesmo escreve estas letras. Não é a minha pena, não são os meus lábios que lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha existência, que em alta voz proclamam o imenso e profundo amor que lhe tenho.
Antes de o ler neste papel, já a senhora o há de ter visto, pelo menos adivinhado nos meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presença dos seus. Persuado-me de que todo o meu esforço em recalcar este afeto é vão; por mais que eu sinceramente deseje esquecê-la, não o alcançarei nunca; não alcançarei mais que uma aflição nova. O remorso de o tentar virá coroar os demais infortúnios.
Por que razão rompo hoje o silêncio em que me tenho conservado, medroso e respeitoso silêncio que, se me não abre o caminho da glória, ao menos conserva-me a palma da esperança? Nem eu mesmo saberia responder-lhe; falo, porque uma força interior me manda falar, como transborda o rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do mesmo modo que morrerei de desespero, se além do perdão que lhe peço, me não der uma esperança mais segura do que esta, que me faz viver e consumir.
Jorge.
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de análise e reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como antes da primeira. Olhou algum tempo para o papel e mentalmente para o homem que o havia escrito; enfim, pôs a carta de lado, abriu o livro e continuou o romance.
Mas o espírito, que não ficara tão indiferente como o coração, entrou a fugir-lhe do romance para a vida, com tal tenacidade, que não houve remédio senão irem os olhos atrás dele, e a moça de novo mergulhou nas reflexões que lhe sugeria o caso da paixão de Jorge.
Paixão não era - não o seria ao menos no sentido inteiro do vocábulo -; mas alguma cousa menos, ou parecida com ela, e ainda assim verdadeira, via bem Guiomar que o poderia ser. Até que ponto chegaria, entretanto, o seu adorador, se ela o desatendesse logo; e, dado o amor que a baronesa tinha ao sobrinho, até que ponto a recusa iria magoá-la? Guiomar varreu do espírito os receios que lhe nasciam de tais interrogações; mas sentiu-os primeiro, pesou-os antes de os arredar de si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nela combinados o sentimento e a razão, as tendências da alma e os cálculos da vida.
Excluído o receio, voltou-lhe o riso, aquele riso interior, que é o mais involuntário e cruel, e também o menos arriscado que a gente pode dar às fatuidades humanas. Não podia ser tão desprezível assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades boas, e que enfim era também distinto, ainda que a sua distinção primasse antes por um estilo rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, não podia obstar que ele a amasse; nem por isso achava menos temerária aquela confissão.
A moça refletia também na posição especial que tinha naquela casa o sobrinho da baronesa; via-se obrigada à presença dele, e talvez à luta, porque o pretendente não recuaria do primeiro golpe. Não havia tais receios da parte de Estêvão; ela reconhecia que a paixão deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as índoles dos dous homens e, se ambos lhe pareciam de fraca compleição moral, nem por isso desconhecia que ao bacharel faltava certa presunção que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de pelejar.
Quando ela fez esta comparação entre os dous homens, ficaram-lhe os olhos um pouco mais moles e quebrados, obra de três minutos apenas, mas três minutos que, se Estêvão soubera deles, trocaria por eles o resto de toda a vida. E, contudo, não era amor nem saudade; alguma simpatia, sim, ainda que leve e sem consequência; mas sobretudo era pena de o não poder amar - ou ainda melhor -, era lástima de que tal coração não fora casado a outro espírito.
Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também, soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela porém não era doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.
Volveu enfim e os olhos caíram-lhe na carta. A realidade presente não se lhe podia mostrar de pior modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão do papel e machucou-o febrilmente; ia talvez rasgá-lo, quando ouviu bater de manso à porta.
- Quem é? - perguntou.
- Sou eu - respondeu a voz de Mrs. Oswald.
A moça foi abrir a porta; a inglesa entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:
- Que é? Aconteceu alguma cousa a minha madrinha?
- Longe vá o agouro! - exclamou a inglesa -. Não lhe aconteceu nada; a senhora baronesa dorme naturalmente a sono solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir rumor de passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incômodo. Mas, pelo que vejo - continuou a inglesa deitando os olhos para a mesinha em que pousava o livro aberto -, pelo que vejo ainda não acabou de ler o seu romance...
- Não li ainda uma linha, depois que me recolhi - respondeu Guiomar cravando os olhos no rosto da inglesa, como tomada de um pensamento súbito.
- Deveras!
- Li outra cousa - continuou a moça -; li este papel.
Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou qual fosse; Guiomar atirou-o sobre a mesa.
- Não precisa - disse ela -; é uma declaração amorosa.
- De quem? - perguntou a inglesa abrindo uns olhos espantados e obedientes.
- Leia o nome.
Mrs. Oswald leu a assinatura da carta, que a moça de novo lhe apresentava.
- Naturalmente - continuou Guiomar - há nisto obra sua...
- Minha! - interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que costumava falar.
Guiomar tinha ido sentar-se; o pezinho impaciente batia no tapete, com um movimento rápido e regular; cruzara os braços sobre o peito, fitando a inglesa com uns olhos em que se podia ler a viva exacerbação do espírito. Seguiu-se curto silêncio; Mrs. Oswald puxou outra cadeira e sentou-se perto da moça.
- Por que há de ser injusta comigo? - disse ela dando à voz um tom melífluo e suplicante -. Por que não há de ver as cousas como elas naturalmente são? O que há nisto é uma coincidência curiosa, mas nada mais. Se lhe falei em semelhante cousa algumas vezes, foi porque eu mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; é cousa que todos vêem. Imaginei que o casamento, neste caso, seria agradável à senhora baronesa a quem sou grata. Posso ter feito mal...
- Muito mal - interrompeu Guiomar -; são cousas de família em que a senhora nada tem que ver.
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns passos, e voltou a sentar-se. Com o movimento desprenderam-se-lhe os cabelos e caíram-lhe sobre os ombros. Mrs. Oswald aproximou-se dela para os colher e atar, mas a moça secamente a repeliu:
- Deixe, deixe...
E ela mesma os recompôs com as suas mãozinhas finas, e ficou depois a olhar para o chão, a morder o lábio, a respirar fortemente, como se contivera a palavra que forcejava por sair impetuosa e colérica. Mrs. Oswald não disse nada durante alguns minutos; esperou que passasse o período agudo da irritação. Quando lhe pareceu que ela afrouxava, rompeu enfim o silêncio.
- Fiz mal, fiz, não há dúvida, mas a intenção não podia ser melhor. Talvez não me creia; paciência! O que lhe peço - nem lhe peço -, o que eu acredito piamente é que não me há de atribuir algum interesse de ordem...
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar não protestou, quero dizer, não protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a satisfazer os melindres da inglesa. A moça foi sincera; não atribuía realmente a nenhum interesse vil - pecuniário - a ação de Mrs. Oswald. Nem por isso a absolvia, - não só porque ela viria concorrer talvez para uma crise penosa, mas também - bom é notá-lo outra vez -, porque a condição da inglesa naquela casa era relativamente inferior.
A inglesa continuou a falar em defesa própria, a justificar miudamente os bons sentimentos do coração, e a prometer que deixava por mão todo aquele negócio, a seu juízo, o melhor que a moça podia fazer.
- A experiência da vida - concluiu ela - devia ter-me convencido de que o melhor de todos os sentimentos é um egoísmo quieto e calado.
Enquanto ela falava assim, Guiomar parecia volver à tranquilidade habitual. A mudança foi - não súbita -, mas um pouco mais rápida do que devera ser, tratando-se de um espírito, como o dela, em que as impressões não eram superficiais nem momentâneas. Havia até uns toques de afabilidade no rosto e na voz, quando ela começou a falar, o que revelaria talvez ser aquela mudança muito voluntária e meditada.
- Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as cousas chegassem a este ponto, e que ele se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paixão que acredito sincera, mas a que o meu coração não pode corresponder. Amores não se encomendam como vestidos; sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.
- Oh! Decerto!
- Eu gosto dele, como parente que é de minha madrinha, e também porque ela lhe tem afeição de mãe, como a mim; somos uma espécie de irmãos, nada mais.
- Tem muita razão - assentiu Mrs. Oswald -. A senhora pensa e fala como um doutor. Que se lhe dá de fazer? Quem não ama não ama. Dele é que eu tenho pena!
- Gosta muito de mim, não? - perguntou Guiomar fitando os olhos na inglesa.
- Oh! Parece que sim! A senhora deve sabê-lo tanto como eu; eu sei o que tenho visto, e creio que é muito.
- Eu nunca vi nada - respondeu secamente Guiomar.
A resposta de Mrs. Oswald foi um sorriso de incredulidade, que a outra não viu ou não quis ver. Houve uma pausa; Guiomar continuou nestes termos:
- Mas seja como for, a minha resposta é negativa. Estou que ele não me fará a injúria de querer casar comigo, sem que eu o ame...
Guiomar parou, como a esperar que a outra lhe dissesse alguma cousa. Desta vez coube a Mrs. Oswald não responder nada, nem com a voz nem com o gesto. A moça inclinou o corpo, pôs os braços sobre os joelhos, com os dedos cruzados, e entre um riso amável e um olhar afetuoso, continuou:
- A senhora podia, se acaso ele alguma vez lhe falou nisso ou vier a falar-lhe, podia dissuadi-lo de tais idéias, dizendo-lhe simplesmente a verdade e dando-lhe conselhos, os conselhos que a senhora há de saber dar, e que ele aceitará decerto, porque é um bom coração, um caráter estimável...
- Oh! Excelente! Um moço excelente!
E as duas ficaram a olhar uma para a outra. Guiomar a sorrir, mas de um sorriso que era uma contração voluntária dos músculos, e a inglesa a fazer um rosto de piedade, e adoração, e pena, e muita cousa junta, que a moça só começou a compreender, quando ela rompeu o silêncio deste modo:
- Estou a duvidar se devo dizer-lhe o resto.
- O resto? - perguntou Guiomar admirada -. Pois que há mais?
A inglesa aproximou a cadeira. Guiomar endireitou o busto e esperou ansiosa a revelação - se revelação era - que lhe ia fazer Mrs. Oswald. Esta não falou logo; era razoável hesitar um pouco, lutar consigo mesma, antes de dizer alguma cousa. Enfim, com um movimento de quem ajunta as forças todas e as emprega em cousa superior à coragem usual:
- D. Guiomar - disse ela, pegando-lhe nas mãos -, ninguém pode exigir que se case sem amar o noivo; seria na verdade uma afronta. Mas o que lhe digo é que o amor que não existe por ora, pode vir mais tarde, e se vier, e se viesse seria uma grande fortuna...
- Mas acabe, acabe - interrompeu a moça com impaciência.
- Seria uma grande fortuna para a senhora, para ele, ouso dizer que para mim, que os estimo e adoro, mas, sobretudo para a Sra. baronesa.
- Como assim? - disse Guiomar.
- Oh! Para ela seria a maior fortuna da vida, porque é hoje o seu mais entranhado e vivo desejo, o seu desejo verdadeiramente da alma. A senhora...
- Está certa disso?
- Certíssima.
- Não creio, não vejo nada que...
- Creia, deve crer. Se me promete nada dizer desta nossa conversa, nem fazer suspeitar por nenhum modo o que lhe estou contando...
- Fale.
– Pois bem – continuou Mrs. Oswald abaixando a voz, como se alguém pudesse ouvi-la na solidão daquela alcova, e no silêncio profundo daquela casa, que toda dormia –, pois bem, eu lhe direi que por ela mesma tive notícia deste seu desejo. Quando eu percebi a paixão do Sr. Jorge, falei nisso a sua madrinha, gracejando na intimidade que ela me permite, e a senhora baronesa em vez de sorrir, como eu esperava que fizesse, ficou algum tempo pensativa e séria, até que rompeu nestas palavras: "Oh! Se Guiomar gostasse dele e viessem a casar-se, eu seria completamente feliz. Não tenho hoje outra ambição na terra. Há de ser a minha campanha.
- Minha madrinha disse isso? - perguntou Guiomar.
- Tal qual. A resposta que lhe dei foi que o casamento não era impossível, e que nada mais natural do que virem a amar-se duas pessoas a princípio indiferentes. O amor nasce muita vez do costume.
Guiomar já mal ouvia o que lhe estava dizendo a inglesa; se ainda olhava para ela, era com os olhos indecisos e empanados, de quem vai toda absorvida em pensamentos íntimos.
- Foi desde esse dia - continuou Mrs. Oswald - que me pareceu conveniente falar-lhe algumas vezes nisso, sondar-lhe o coração, ver se ele favorecia o sonho de sua madrinha, tornando feliz toda esta casa... Fiz mal, convenho; mas a intenção era a mais respeitável e santa deste mundo.
- Decerto - murmurou Guiomar.
Mrs. Oswald pegou-lhe numa das mãos e beijou-a afetuosamente. Guiomar não a repeliu nem sequer pareceu dar-se-lhe da ternura da inglesa. As duas olharam-se uns breves minutos, sem dizer nada, como a lerem na alma uma da outra.
Guiomar não tinha a experiência nem a idade da inglesa, que podia ser sua mãe; mas a experiência e a idade eram substituídas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade naturais. Há criaturas que chegam aos cinquenta anos sem nunca passar dos quinze, tão símplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepúsculo é o prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vêm ao mundo com a ruga da reflexão no espírito - embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi, mas não domina. Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou galopa, como coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem perde o cavaleiro.
O que a afilhada da baronesa buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era se efetivamente a madrinha nutria aquele desejo, ou se tal revelação não era mais do que um embuste. O leitor sabe que era verdadeira; mas admitirá, sem dúvida, que a moça só depois de muito interrogar e examinar lhe desse fé. Creu enfim; creu, porque era verossímil, creu porque a inglesa não se arriscaria a qualquer indiscrição da parte dela, que de todo a desmascararia.
- Parece-me - disse Mrs. Oswald - que não fiz mal em lhe dizer tudo o que sabia. Conselhos não lhe dou nenhuns; o melhor deles não vale a voz do próprio coração. O seu é puro e reto; consulte-o de boa vontade, e verá se há nele indiferença, ou se alguma faísca...
- Eu sei! - interrompeu Guiomar -. Não me lembrou consultá-lo nunca.
- Faz mal, ele é o relógio da vida. Quem o não consulta, anda naturalmente fora do tempo. Mas que vejo! - continuou Mrs. Oswald deitando os olhos para o reloginho de Guiomar -. Naquele outro relógio faltam dez minutos para uma hora! Uma hora! Que diria a Sra. baronesa se soubesse que ainda estamos aqui de conversa! Retiro-me; Deus lhe dê um sono sossegado, e sobretudo a faça feliz, como merece. Não lhe recomendo juízo, porque o tem de sobra. Adeus, até amanhã.
E Mrs. Oswald saiu pé ante pé em direção ao seu quarto.
Guiomar ficou só, ali sentada ao pé da cama, a ouvir o passo surdo e cauteloso da inglesa. Quando o som morreu de todo, e o silêncio da noite volveu ao que era, profundo e sepulcral, a moça deixou cair os braços na cama, e a cabeça nas mãos, e um suspiro desentranhou-se-lhe do peito, longo, ruidoso, magoado - o primeiro que o leitor lhe ouve desde que a conhece - e enfim estas palavras arrancadas da alma, tão doloridas - ia dizer tão lacrimosas - vinham elas:
- Oh, meus sonhos! Meus sonhos!
Não chorou; a alma dela era das que não têm lágrimas, enquanto lhe restam forças. Os olhos estavam secos e firmes quando ela os ergueu das mãos; o rosto tinha vestígios do abalo, mas não havia nele desânimo, menos ainda desespero.
XI
LUÍS ALVES
Durante uma inteira e comprida semana, deixou Estêvão de aparecer no escritório onde trabalhava com Luís Alves; não apareceu também em Botafogo. Ninguém o viu em todo esse tempo nos lugares onde ele era mais ou menos assíduo. Foram seis dias, não digo de reclusão absoluta, mas de completa solidão, porque ainda nas poucas vezes que saiu, fê-lo sempre a horas ou em direções que a ninguém via, e de ninguém era visto.
Mas não fora essa crua e malfadada crise, e é quase certo que ele meteria uma lança na África daqueles dias, que era um ponto muito sério e grave, a questão magna da rua do Ouvidor e da casa do José Tomás, a ponderosa, crespa e complicada questão de saber se a Steffanoni estrearia no Ernani. Esta questão, de que o leitor se ri hoje, como se hão de rir os seus sobrinhos de outras análogas puerilidades, esta pretensão a que se opunha a Lagrua, alegando que o Ernani era seu, pretensão que fazia gemer as almas e os prelos daquele tempo, era cousa muito própria a espertar os brios do nosso Estêvão, tão marechal nas cousas mínimas, como recruta nas cousas máximas.
Infelizmente ele não aparecia, não sabia sequer do conflito e do debate, ocupado como estava em travar o áspero e sangrento duelo do homem contra si mesmo, quando lhe falta o apoio, ou a consolação dos outros homens. Todo ele era Guiomar; Guiomar era o primeiro e o último pensamento de cada dia. A sombra da moça vivia ao pé dele e dentro dele, no livro em que lia, na rua solitária onde acaso transitava, nos sonhos da noite, nas estrelas do céu, nas poucas flores de seu inculto jardim.
Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditórios, como é de razão em análogas situações. Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir à cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espírito apenas um joguete de sensações contínuas e variadas. A força, a permanência do afeto não lhe bastava a dar seguimento e realidade às concepções vagas de seu cérebro - enfermo, ainda quando estava de saúde.
A idéia do suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito, certa tarde em que ele saiu a espairecer, e viu um enterro que passava, caminho do Caju. O préstito era triste - ainda mais triste pela indiferença que se lia no rosto dos que iam piedosamente acompanhando o morto. Estêvão descobriu-se e sinceramente desejou ir ali dentro, metido naquelas estreitas tábuas de pinho, com todas as suas dores, paixões e esperanças.
"Não tenho outro recurso", pensou ele; "é necessário que morra. É uma dor só, e é a liberdade".
Ao voltar para casa, uma criança que brincava na rua, em camisa, com os pés na água barrenta da sarjeta, fê-lo parar alguns instantes, invejoso daquela boa fortuna da infância, que ri com os pés no charco. Mas a inveja da morte e a inveja da inocência foram ainda substituídas pela inveja da felicidade, quando ao recolher-se viu as janelas abertas de uma casa vizinha, e a sala iluminada, e uma noiva coroada de flores de laranjeira, a sorrir para o noivo, que sorria igualmente para ela, ambos com o sorriso indefinível e único da ocasião.
Os cinco dias correram-lhe assim, travados de enojo, de desespero, de lágrimas, de reflexões amargas, de suspiros inúteis, até que raiou a aurora do sexto dia, e com ela - ou pouco depois dela -, uma carta de Botafogo. Estêvão, quando viu o criado da baronesa, à porta da sala, com uma carta na mão, sentiu tamanho alvoroço, que não ouviu nada do que ele lhe disse. Suporia que a carta era de Guiomar? Talvez; mas a ilusão durou os poucos instantes que ele gastou em romper a sobrecarta e desdobrar a folha de papel que vinha dentro.
A carta era da baronesa.
A baronesa perguntava-lhe graciosamente se ele havia morrido, e pedia que fosse falar-lhe acerca da demanda que ela trazia. Estêvão chegara já ao estado de só esperar um pretexto para transigir consigo mesmo; não podia havê-lo melhor. Escreveu rapidamente duas linhas de resposta, e à uma hora da tarde apeava-se de um tilbury à porta da funesta e deliciosa casa onde havia passado as melhores e as piores horas da vida.
- Sabe por que razão lhe dei este incômodo, além do prazer que tinha em vê-lo? - perguntou a baronesa logo depois dos primeiros cumprimentos.
- Disse-me que era por causa da demanda...
- Sim, precisamos assentar algumas cousas, antes da nossa partida.
- V. Ex.ª sai da Corte?
- Vamos para a roça.
Estêvão empalideceu. Na situação dele, aquela viagem era a melhor cousa que lhe podia acontecer; contudo, fez-lhe mal a notícia. A conversa que se seguiu foi toda sobre o assunto forense, e durou uma longa hora, sem que aparecesse Guiomar. Ao despedir-se atreveu-se Estêvão a perguntar por ela.
- Anda passeando - respondeu a baronesa.
Estêvão despediu-se da constituinte, que o acompanhou até porta da sala, repetindo-lhe algumas recomendações, que o advogado mal pôde ouvir e absolutamente lhe não ficaram de memória.
A esperança de ver a moça levara-o, mais que tudo, àquela casa; saía sem ter o gosto de a contemplar ainda uma vez; mais do que isso, ameaçado de a não ver tão cedo, ou quem sabe se nunca mais. Ia ele a refletir nisto e a aproximar-se da porta, onde parava ao mesmo tempo um carro. Estêvão estremeceu naturalmente, antes de ver quem ia apear-se; grudou-se ao portal, com os olhos fitos na portinhola, que um lacaio abria apressadamente.
A primeira figura que desceu foi a nossa conhecida Mrs. Oswald, que o fez sem dar tempo a que Estêvão lhe oferecesse a mão. O bacharel, desde que a vira, aproximara-se rapidamente da portinhola.
Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva cor de pérola pousou levemente na mão de Estêvão, que estremeceu todo. A moça fez-lhe um cumprimento risonho, murmurou um agradecimento e recolheu-se com a inglesa. Era pouco; mas esse pouco alvoroçou o bacharel, que enfiou dali para a cidade, em direção ao escritório.
Luís Alves admirou-se de o ver; não foi com um espanto de seis dias, como devera ser, mas de quarenta e oito horas, quando muito. Que admira? A preocupação de Luís Alves por aqueles dias era a candidatura eleitoral; a boa-nova devia chegar-lhe na primeira mala do Norte. Ora, em boa razão, um homem que está prestes a ser inscrito nas tábuas do parlamento, não pode cogitar muito dos amores de um rapaz, ainda que o rapaz seja amigo e os amores, verdadeiros.
Estêvão não perdeu tempo em circunlóquios; foi entrando e entornando a alma toda, aflita e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da confissão plena que ele ali lhe fez, respondia um comento, ora sério, ora gracioso de Luís Alves. Quando Estêvão porém lhe deu notícia de que a família da baronesa ia para a roça, Luís Alves recolheu o meio riso que lhe pousava nos lábios desde começo, e com a mais súbita e sincera admiração, exclamou:
- Para a roça!
- Disse-o agora mesmo a baronesa.
- Mas...
Luís Alves não acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estêvão, e ficou algum tempo calado, a coçar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia na parede fronteira.
- Na situação em que estou - continuou Estêvão -, hás de dizer que a viagem é uma felicidade para mim. Pois não é; não admito a viagem. Se ela sair da Corte, eu saio também.
- Tu estás doido!
- Talvez.
Luís Alves saiu daquela natural indiferença com que o ouvia, e lhe falava sempre em tal assunto. Falou-lhe carinhoso - talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas uma edição aumentada do que lhe havia dito em anteriores ocasiões - agora com maior fundamento, porque depois do formal desengano de Guiomar não havia outro recurso mais que ir esquecê-la de todo.
- Oh! Isso nunca! - interrompeu Estêvão -. Demais, não sei, não estou certo se ela falava de coração naquela tarde...
A candidez com que Estêvão disse isto era a fiel tradução de seu espírito, e a razão de tais palavras, não a procure o leitor em outra parte mais que não seja aquele sorriso de há pouco, ao pé do carro, sorriso que lhe bailava no cérebro, como raio de sol coado por entre nuvens negras de tempestade.
Luís Alves sacudiu a cabeça e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos que tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente. Súbito, bateu uma pancadinha, com a mão espalmada sobre os papéis, e levantou a cabeça:
- Há um meio talvez de saber tudo - disse ele -, de saber se ela verdadeiramente te ama, ou... Posso tentá-lo, com uma condição.
- Qual?
- A condição de eliminares as tuas pretensões. Que diabo ganhas tu em nutrir uma paixão sem eficácia nem remédio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um coração, em que as gerações de esperanças se sucediam quase sem solução de continuidade; fê-la, todavia, Estêvão, talvez com a secreta resolução de a trair.
Luís Alves ficou só daí a alguns minutos. As últimas palavras que disse ao colega foram duas ou três pilhérias de rapaz; mas apenas ficou só tornou-se sério, e inclinando o corpo para a frente, com os braços na secretária, e a raspar as unhas com um canivete, ali esteve largo tempo, como a refletir, longe de Estêvão, que aliás já não ia perto, e ainda mais longe dos autos que tinha diante de si. Mas em que pensava ele, se não era em Estêvão, nem nos autos, nem também, por agora, nas suas esperanças eleitorais? Paciência, leitor; sabê-lo-ás daqui a nada. Contenta-te com a notícia de que, ao cabo de vinte minutos daquela abstração, Luís Alves volveu a si, proferindo em alta voz esta simples palavra:
- Não há dúvida; é uma ambiciosa.
E, descativado daquela preocupação, enterrou-se de todo na leitura dos autos.
XII
A VIAGEM
Mal recomeçara Luís Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado apresentando-lhe um bilhete de visita.
- Que entre! - disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baronesa.
E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que daí a nada assomava à porta do gabinete, fazendo uma cortesia, sisuda, mas graciosa.
- Venho incomodá-lo, doutor? - perguntou Jorge.
- Pelo amor de Deus! - exclamou o advogado erguendo-se e indo buscá-lo à porta -. Não me incomodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de uns papéis me fatigou sobremaneira, a maior fortuna que eu poderia desejar é a presença de um homem de espírito.
Jorge agradeceu este cumprimento um pouco enfático, e retribuiu-o com outra lisonjaria muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que ele vinha pedir alguma cousa. Efetivamente, passados os minutos de introito e desfiadas as generalidades, Jorge empertigou-se mais do que até ali estivera e desfechou esta pergunta abrupta:
- Sabe que venho pedir-lhe uma cousa grave?
Luís Alves inclinou-se.
- Grave e simples ao mesmo tempo - continuou o sobrinho da baronesa -; mas antes disso precisava saber se é tão amigo da nossa família, como ela o é do senhor.
- Oh! Decerto!
- O senhor é o menos assíduo, talvez, das pessoas que lá vão, apesar de vizinho; só agora o vejo ali mais a miúdo; entretanto é como flor que se trai pelo aroma; minha tia tem a seu respeito a melhor opinião do mundo; acha-lhe uma gravidade, e eu também a sinto, e nem compreendo que um homem possa ser outra cousa. Os tais espíritos fúteis...
- São insuportáveis - concluiu Luís Alves ansioso por chegar ao objeto da visita.
O objeto era a viagem da baronesa. Um comendador, amigo do finado barão, e fazendeiro em Cantagalo, tinha promessa da viúva, havia dous anos, de ir lá passar algum tempo. A baronesa esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada; agora porém, tal fora a insistência, que se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha propor era - expressões dele - uma conjuração de amigos para dissuadir a tia daquele projeto. Afiançava ao advogado que, ainda descoberta a conjuração, teria ele a vida sã e salva.
Luís Alves supôs a princípio que aquilo era um simples pretexto; mas, tendo observado que a bela Guiomar não era indiferente ao rapaz, compreendeu que este tinha na conjuração proposta um interesse inteiramente pessoal. Enfim, Jorge chegou a confessar que, se a tia insistisse em sair da Corte, ele não tinha remédio senão acompanhá-la.
O acordo não foi difícil; ficou assentado que fariam todos os esforços para dissuadir a baronesa. Jorge quis sair logo; reteve-o Luís Alves algum tempo mais, com expressões de louvor habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na conversação; e também deixando-se ir à feição do espírito dele, aceitando-lhe as idéias e os preconceitos, e aplaudindo-os discretamente - sério, quando eles o eram ou pareciam ser, chocarreiro quando vinham com ar de graça -, respondendo enfim a todos os gestos e meneios do outro, como faz o espelho por ofício e obrigação: toda a arte em suma de tratar os homens, de os atrair e de os namorar, que ele aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida pública.
De noite foi Luís Alves à casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao pé de si uma senhora da mesma idade que ela, igualmente viúva, e defronte as suíças brancas e aposentadas de um ex-funcionário público. Num sofá, viam-se Mrs. Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora muito baixa, ora um pouco mais elevada. Adiante, dous moços contavam a duas senhoras o enredo da última peça do Ginásio. Mais longe, uma moça da vizinhança gabava a outra a tesoura de Mme. Bragaldi, que pedia meças, dizia ela, ao pincel do cenógrafo, seu marido. Enfim, junto a uma das janelas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil ninharias graciosas a outra pessoa, que era nada menos que a nossa conhecida Guiomar. A conversa, assim dividida, tornava-se às vezes geral, para recair logo no particularismo anterior; os grupos modificavam-se também de quando em quando, do mesmo modo que o assunto, e assim se iam matando agradavelmente as horas, que não resistiam, coitadas, nem apressavam o passo um minuto sequer.
Luís Alves agregara-se ao grupo da baronesa, ao qual não tardou juntar-se Jorge. O advogado teve a discrição de esperar que o assunto viesse de si, se viesse, ou de o introduzir na conversa, quando lhe parecesse de feição. Mas Jorge, que estava impaciente, arrastou o assunto ao debate. Luís Alves mostrou-se fiel à palavra dada; declarou amavelmente que se opunha à viagem, como vizinho e amigo, que reclamaria em último caso o auxílio de força pública; que era um erro e um crime deixar aquela casa viúva da benevolência e da graça e do gosto e de todas as mais qualidades excelentes que ali iam achar os felizes que a frequentavam; que, enfim, o mal era tamanho, que não deixaria de ser pecado, posto não viesse apontado nos catecismos, e como pecado seria de força punido, com amargas penas, no outro século, pelo quê, e o mais dos autos, era sua decisão que a baronesa devia ficar.
Todas estas razões foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e folgazão, a que a baronesa respondia igualmente, e que não daria nada mais de si, se Luís Alves, mudando de estilo, não fosse pôr o assunto em diferente terreno.
- Digamos a verdade, Sra. baronesa, a viagem há de ser-lhe imensamente incômoda, se for só isso; suas forças não são decerto iguais às de seus primeiros anos; sua saúde é melindrosa e não poderá sofrer tanta fadiga. Confesso que falo em nome de certo interesse pessoal de amigo e de vizinho; mas a principal razão não é essa. Se houvesse um motivo urgente, bem; mas tratando-se apenas de uma promessa feita há tanto tempo, seria crueldade da minha parte não insistir que ficasse.
A baronesa defendia-se, e Luís Alves não tardou em reconhecer de si para si que ela não se defendia com o vigor de uma resolução original e própria. A conversa, entretanto, tornara-se mais geral; de todos os lados partiam votos de oposição.
Guiomar havia já alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o ouvido afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não vêem ou não podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio que lhe causava aquela opinião unânime contra o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e voluntário.
- Estamos de acordo, creio eu? - perguntou Luís Alves olhando alternadamente para a baronesa e as outras pessoas.
- Não é possível, doutor - respondia a boa senhora.
- Decerto que não é possível - interveio Guiomar do lugar onde estava -. A viagem não oferece risco, nem minha madrinha está inválida. Demais, é uma promessa feita; não se pode deixar de cumprir.
Esta opinião, dita em tom seco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu natural aveludado, equivaleu a um pouco de água fria lançada na fervura triunfante dos ânimos.
- Guiomar tem razão - disse a baronesa -; já agora é preciso ir; são apenas três ou quatro meses.
Luís Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar ver-lhe no rosto todas as antecedências da resolução da baronesa. A oposição afrouxara; Jorge chamou em vão o advogado em seu auxílio. A resolução da tia, se alguma vez fora abalada, tornara-se outra vez firme.
Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha. Jorge fitou-a com uma expressão de vaidade e cobiça. Luís Alves, que se achava de pé, recuou um pouco para deixá-la passar. Os olhos com que a contemplou não eram de cobiça nem de vaidade; a leitora, que ainda lembrará da confissão por ele mesmo feita a Estêvão, suporá talvez que eram de amor. Talvez - quem sabe? - amor um pouco sossegado, não louco e cego como o de Estêvão, não pueril e lascivo como o de Jorge, um meio-termo entre um e outro - como podia havê-lo no coração de um ambicioso.
- O Dr. Luís Alves defende causas más - disse Guiomar sorrindo para ele -; não se trata de uma cousa impossível. Quanto a mim, Cantagalo só tem um inconveniente; será menos divertido que a Corte, mas o tempo passa depressa...
- Nesse caso - disse Jorge suspirando -, eu também dispenso teatros e bailes; sacrifico-me à família.
- Queres ir conosco? - perguntou a baronesa alegremente.
- Que dúvida!
Guiomar mordeu o lábio inferior, com uma expressão de despeito, que pôde conter e abafar, sem que ninguém a percebesse, ninguém, exceto Luís Alves. Um sorriso tranquilo e perspicaz roçou os lábios do advogado, enquanto a moça, para esconder a impressão que lhe ficara, de novo se dirigiu à janela, onde esteve alguns momentos sozinha, meia voltada para fora e meia guardada pela sombra que ali fazia a cortina. Um rumor de passos fê-la voltar-se para dentro. Era Luís Alves.
- Ah! - disse ela fingindo-se tranquila -; agradeço-lhe não haver insistido mais nos seus conselhos.
- A intenção era boa - respondeu Luís Alves em voz baixa -; mas será agora excelente; nem tudo está perdido: eu me incumbo de salvar o resto.
Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que parecia havê-la feito esquecer outro sentimento, igualmente natural: o do despeito que lhe causaria aquela singular familiaridade. Mas o assombro dominou tudo; Guiomar sentiu que ele lera nela a razão da insistência e o desgosto do resultado.
A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia neles uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmitir aos lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte.