Coletânea

Páginas Recolhidas

1899

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

No ano de 1899, o Brasil já era uma república, a escravidão já havia sido abolida e Machado de Assis já havia fundado a Academia Brasileira de Letras. No fim desse ano, é publicado seu romance de maior sucesso: Dom Casmurro. Também no penúltimo ano do século XIX, o autor publica sua penúltima coletânea de contos, Páginas recolhidas, sendo a primeira edição impressa em junho de 1899 e a segunda (que reproduz a primeira), em janeiro de 1900.

Páginas recolhidas é uma miscelânea de escritos de Machado, a variedade do livro não estando só na temática das narrativas, mas também nos gêneros dos textos. A maioria deles havia sido publicada anteriormente no Rio de Janeiro, "nas folhas volantes do jornalismo", sendo recolhidas tanto páginas de contos quanto as de um discurso proferido na cerimônia de lançamento da estátua de José de Alencar, de um ensaio sobre a correspondência de Henriqueta Renan com o irmão, o escritor francês Ernest Renan, da comédia "Tu só, tu, puro amor", escrita em função do tricentenário da morte de Camões, de uma evocação do velho Senado do Império, que fora publicada na Revista Brasileira, e de algumas crônicas publicadas na Gazeta de Notícias entre 1892 e 1894.

Nesta edição eletrônica, só se publicam os contos, propriamente ditos, oito ao todo, uma vez que nosso interesse é a ficção de Machado de Assis. Dentre esses oito, cinco foram publicadas na Gazeta de Notícias; "Missa do galo" saiu em A semana e "Um erradio", em A Estação. Quanto a "Lágrimas de Xerxes", não foi encontrada nenhuma publicação anterior, segundo nos ensina a Bibliografia de Machado de Assis, de J. Galante de Sousa.

O título da obra é mais um exemplo de uso do plural como índice de indeterminação dos textos ali reunidos. Os títulos de todos os livros de contos machadianos refletem uma tendência do autor à diversidade temática - e até estilística - dos mesmos.

A variedade dos textos reunidos em Páginas recolhidas e a despretensão com que são apresentados ao público não estão somente no título. O prefácio também é uma amostra da tranquilidade com que Machado oferece ao leitor sua nova coletânea. Vale lembrar que não é a primeira vez que o prefácio (ou advertência) expressa tal posição. Muito antes, em Histórias da meia-noite, Machado assinalara: "Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor [...] estas páginas [...] são as mais desambiciosas do mundo." O mesmo registro desambicioso aparece em Várias histórias:

É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo [Diderot, de quem é a epígrafe do livro]. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América.

Ou ainda em Histórias sem data: "[...] o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia [...]" O expediente talvez seja mero artifício retórico. Em todo caso, permanece o fato de que o autor parece querer que o leitor encare com leveza as narrativas que tem em mão. Lembremos a epígrafe de Várias histórias: "Mon ami, faisons toujours des contes...Le temps se passe, et le conte de la vie s`acheve sans qu`on s`en aperçoive." ("Meu amigo, façamos sempre contos... O tempo passa; e o conto da vida acaba, sem que nos demos conta disso.")

Os textos que estão no livro foram recolhidos ao gosto do autor. Tudo indica que tenham sido textos de afeição do Bruxo, que justifica: "Tudo é pretexto para recolher folhas amigas." O primeiro dos contos, "O caso da vara", é um excelente exemplar de um dos maiores artifícios da narrativa machadiana: a ironia. Ela está presente em toda obra de Machado de Assis, mas, neste conto em especial, a ironia se revela como trunfo da narrativa, não como estratégia de riso, mas como modo perspicaz de, anos depois da Abolição, denunciar os malefícios morais do sistema escravocrata - sem insistir nos aspectos da degradação física a que eram submetidos os escravos (como faria, por exemplo, em "Pai contra mãe", de seu livro seguinte, Relíquias de casa velha).

O divertido conto "O dicionário" é a mais curta narrativa do livro. Em poucas páginas de história de Bernardino, ou Bernardão, o narrador na verdade fala da tolice humana, da vaidade, da empáfia, ou, como se diria atualmente, da fanfarrice, tudo isso mesclado a certa crueldade - ou não seria Machado de Assis.

Logo após a mais curta narrativa, aparece a mais longa: "Um erradio". Contada pelo narrador-personagem "à laia de novela", poderia de fato ser uma novela, entendida aqui, simplesmente, como uma narrativa mais longa que o conto e mais curta que o romance. Nela se contam as andanças do "erradio" Elisiário, através de quem o autor volta a um de seus temas preferidos: a questão da criação, do fosso que separa o sonho de escrever e a realização da escrita.

Um dos mais famosos contos de Machado de Assis é "Missa do galo", também constante deste livro. Trata-se da tentativa de um homem feito de rememorar um momento enigmático de seu passado: "Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta." Este conto encerra em si muitos elementos que fizeram de Machado de Assis um grande escritor: a presença de uma mulher misteriosa e sedutora, o enredo simples, que Marta de Senna chamará de "rarefeito", acrescentando que "o que fica para o leitor é uma atmosfera, uma evocação [...] de alguns minutos, especialíssimos, vividos pelo narrador na adolescência".

Outro conto deste livro que traz elementos fortes na narrativa machadiana é "Ideias de canário", relato alegórico sobre o relativismo, que nos apresenta uma personagem estudiosa, um homem das ciências, crente na revolução que o fenômeno de um canário falante faria no mundo científico. Nesta narrativa o que está em jogo é a relativização de absolutos, já que as diferentes concepções de mundo apresentadas variam de acordo com as circunstâncias. Outro conto alegórico da coletânea é "Lágrimas de Xerxes", em que, num entrecruzamento inesperado entre a História, de Heródoto, e a mais popular das tragédias de Shakespeare, o autor na verdade propõe uma reflexão sobre a contradição humana, aliada a um olhar benevolente sobre a urgência do amor jovem. Há, ainda, neste conto uma despersonalização da questão amorosa, emblematizada em Romeu e Julieta.

O autor que despersonaliza o emblema de Romeu e Julieta em "Lágrimas de Xerxes" é o mesmo que banaliza a eternidade no amor no conto "Eterno". Neste, o que acontece é a desconstrução do sublime que poderia estar contido no adjetivo "eterno", sobretudo quando, pela óptica romântica, vem associado ao substantivo "amor". Trata-se, à primeira vista, de uma narrativa em torno de um triângulo amoroso, cuja configuração vai sofrendo modificações ao longo da história, sem nada de trágico, nada de solene, nada de edificante. Da mesma forma, "Papéis Velhos", último dos contos, trata da superficialidade, da efemeridade das paixões humanas, tema revisitado aqui por uma personagem madura ao reler cartas de amor de sua juventude.

As "folhas amigas" recolhidas neste volume por Machado de Assis vieram aos leitores da virada do século XIX para o XX por escolha do autor, que achou que elas podiam interessar. Sua intuição de Bruxo estava certa e hoje, no século XXI, podemos atestar que estas páginas continuam a interessar leitores de todos os tempos.

***

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, bem como com a publicada pela editora Garnier, com texto estabelecido por Adriano da Gama Kury, em 1989. Em caso de discrepância, foram consultadas a primeira e a segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está nas primeiras edições: "súbdito" e não "súdito", "sumptuosas" e não "suntuosas", "freire" e não "frei". Respeitou-se igualmente o uso de "dois" em "Um erradio", bem como o de "dous", "cousa" e "doudo" nos demais contos. Especificamente no conto "Lágrimas de Xerxes", seguindo a lição de Adriano da Gama Kury, foi mantida a oscilação no uso da pessoa pronominal e verbal ("tu" e "vós"). Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições, fatos e períodos históricos ("Museu Nacional", "Instituto Histórico", "Batalha de Austerlitz").

Quanto aos numerais, manteve-se a forma por extenso, tal como figuram nas primeiras edições. Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Assim, preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "tilbury" (e não "tílbury"). Entretanto, palavras estrangeiras que já na primeira edição vêm sem itálico assim foram mantidas, por entender-se que, ao tempo do autor, já haviam sido incorporadas à língua portuguesa, mantendo-se a grafia do original.

Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: o substantivo "memória", no sentido, hoje pouco usual, de dissertação sobre um assunto ou uma matéria de ciência, de erudição; o advérbio "cordialmente", no sentido literal, isto é, "com o coração"; a palavra "feitiço", empregada como adjetivo, com o significado de "artificial", "que não é natural".

Usos hoje considerados "esquisitos" foram, obviamente, mantidos: "Talvez que ache parcial"; "não havia negar que traziam o amargo da dor e o travo da melancolia". Assim também a oscilação entre o uso do indicativo ou do subjuntivo seguindo a expressão "o que quer que" e "quem quer que": "o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos"; ele mesmo usa subjuntivo: "Quem quer que sejas tu".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés". Observe-se que o autor, às vezes, omite a vírgula em casos absolutamente idênticos: "Foi neste ponto que abri a carta do amigo Norberto e corri à casa dele". Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comissão que trazia"; mas: "Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada". Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo.

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado o travessão, ainda que, nas edições anteriores, este esteja no meio do mesmo parágrafo. Fizemos isso autorizadas pelo procedimento do autor em demais passagens de diferentes contos, o que nos leva a crer que a disposição do diálogo dentro do parágrafo tenha sido antes erro tipográfico que decisão autoral.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

abril de 2013

Prefácio

Quelque diversité d'herbes qu'il y ayt,
tout s'enveloppe sous le nom de salade
.
MONTAIGNE, Essais, liv. I, cap. XLVI

Montaigne explica pelo seu modo dele a variedade deste livro. Não há que repetir a mesma ideia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vai por epígrafe. O que importa unicamente é dizer a origem destas páginas.

Umas são contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu na cabeça reduzir a linguagem. Saíram primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas dentre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Também vai aqui Tu só, tu, Puro Amor... comédia escrita para as festas centenárias de Camões, e representada por essa ocasião. Tiraram-se dela cem exemplares numerados que se distribuíram por algumas estantes e bibliotecas. Uma análise da correspondência de Renan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo Senado foram dados na Revista Brasileira, tão brilhantemente dirigida pelo meu ilustre e prezado amigo José Veríssimo. Sai também um pequeno discurso, lido quando se lançou a primeira pedra da estátua de Alencar. Enfim, alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas.

MACHADO DE ASSIS

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