Coletânea

Papéis Avulsos

1882

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Papéis avulsos é o terceiro livro de contos de Machado de Assis e foi publicado pela primeira vez em volume no ano de 1882. Antes, todas as 12 histórias já tinham sido publicadas na imprensa, em periódicos diversos (entre os quais A Estação, A Época e Gazeta de Notícias), de novembro de 1875 a outubro de 1882. A edição em volume, que apareceu em novembro de 1882, foi a única em vida do autor. Quando o livro saiu, Machado já era um autor consagrado, tendo publicado àquela altura cinco romances: Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878) e Memórias póstumas de Brás Cubas (1880, na Revista Brasileira e em livro, em 1881); e as coletâneas Contos fluminenses (1869) e Histórias da meia-noite (1873).

É consenso entre os estudiosos da obra machadiana que este livro representa uma "virada" na obra em contos do autor, tanto quanto Memórias póstumas de Brás Cubas representou o início de uma "nova fase" na ficção de Machado de Assis em romances. É claro que a divisão da obra de Machado em fases é hoje considerada pouco adequada, uma vez que se reconhece amplamente que seus romances e contos iniciais já apresentam características que o autor viria a desenvolver plenamente na sua maturidade de escritor. No entanto, é inegável que, a partir de cerca de 1880, a ficção machadiana ganha em textura, densidade, complexidade. Segundo José Guilherme Merquior, a significação profunda da obra de Machado de Assis (e presume-se que o crítico se referisse à produção machadiana de Memórias póstumas em diante) reside em ter introduzido nas letras brasileiras a problematização da vida, que, para o crítico carioca, é a grande marca da literatura da civilização industrial, marca com a qual Machado fez com que a produção literária brasileira entrasse em diálogo com as vozes decisivas da literatura ocidental 1. Não cabe nesta introdução discorrer sobre os traços de Memórias póstumas de Brás Cubas que o caracterizam como diferente dos romances anteriores. Cabe, sim, perguntar o que Papéis avulsos tem de especial, a ponto de ser considerado o primeiro grande livro de contos do autor.

John Gledson mostra, na introdução da edição Penguin-Companhia das Letras de Papéis avulsos (2011), exatamente esse caráter especial que a obra tem. Começa por esclarecer que com ela Machado, enfim, se dá o direito de se desamarrar e assumir seu tom irônico. Por tal atitude, pode-se perceber que esse é um momento crucial para sua escrita em contos: o autor se metamorfoseia, deixa de ter um caráter "ingênuo" (se é que um dia Machado de Assis foi ingênuo) e passa a ser um escritor muito mais crítico e sarcástico, às vezes até um pouco ácido 2.

Outro aspecto que torna este livro especial é o modo como foi produzido. Primeiramente, sua criação foi relativamente rápida, tendo saído em volume em novembro de 1882, pouco depois da publicação na Gazeta de Notícias do último conto da coletânea, "Verba testamentária", em outubro do mesmo ano. Em segundo lugar, é nesta obra que Machado irá repudiar, em ficção, o Realismo-naturalismo, contra o qual já havia publicado um ensaio crítico em 1878 (o célebre "O primo Basílio", sobre o romance de Eça de Queirós) 3. Em terceiro lugar, lembra ainda Gledson, é nesse momento, imediatamente posterior a Brás Cubas, que o autor parece assumir a escrita de uma literatura cujo compromisso com o Brasil é menos evidente do que em autores como Alencar, por exemplo, mas nem por isso menos efetivo: ao criar personagens como o pai de Janjão (de "Teoria do medalhão"), Machado de Assis ironiza toda uma elite endinheirada e supostamente pensante, que vive somente da e na aparência.

Outra vertente que vem à tona em Papéis avulsos é o pastiche. Marcelo Diego demonstra que essa técnica revela o escritor maduro que, conscientemente, recria a partir de outras obras e de outros gêneros 4. É o caso de "O segredo do Bonzo", "Na Arca", de certo modo "Teoria do medalhão", "Conto alexandrino" e, ainda, "As academias de Sião" - todas narrativas, por assim dizer, alegóricas, isto é, cujo sentido transcende as meras histórias que contam; ou seja: narrativas cujo modo de expressão consiste em representar pensamentos, ideias e qualidades de forma figurada, exigindo do leitor um esforço de interpretação. Como resume Marcelo Diego,

Chamando para si outros registros e outras vozes, Machado adensa sua escrita e se permite transitar em realidades que são exclusivamente ficcionais: solidificando os pactos de veracidade, penetra em inextricáveis matizes do fantástico; pastichando narrativas inaugurais, instaura uma temporalidade que se sobrepõe ao tempo; relendo o cânone, inscreve-se nele 5.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis e com a preparada por Adriano da Gama Kury na hoje famosa coleção Machado de Assis, publicada pela Garnier-Itatiaia em 1988, em parceria com a Fundação Casa de Rui Barbosa. Recorreu-se também à edição publicada em 2011 pela Penguin-Companhia das Letras, preparada por John Gledson e anotada por Hélio de Seixas Guimarães. Em caso de discrepância, foi consultada a primeira edição, existente na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Procurou-se respeitar alguns usos peculiares ao discurso do autor, mesmo quando inconsistentes. Em "O Alienista", por exemplo, o advérbio "talvez" é empregado modificando verbo no indicativo ("Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios [...]") e no subjuntivo ("Talvez fosse também um excesso de confiança [...]"), tal como é considerado gramaticalmente correto hoje.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas sempre que duas formas são consignadas em dicionários atuais, respeitou-se o que está na primeira edição: "regímen" (e não "regime"), "sumptuosa" (e não "suntuosa"), "gérmen" (e não "germe"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "cousa" e "coisa", entre "dous" e "dois" e entre "calefrio" e "calafrio". Manteve-se a dupla preposição em "A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita", como é até hoje usual em Portugal. Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos, bem como para instituições.

Preservaram-se palavras e expressões estrangeiras na língua original, mesmo quando já delas existe forma aportuguesada: con amore (e não "com amor"), tilbury (e não "tílburi") reporters (e não "repórteres"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma em que aparecem na primeira edição ("75 por cento", mas "cento e oitenta"). Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias.

Quanto aos hiperlinks, além das referências histórico-literárias e culturais (dentre estas, não se fez nota para "Deus" e para "diabo" quando eram parte de uma expressão congelada, como "Deus sabe o que faz" ou "Vá para o diabo"), anotaram-se também palavras que o autor usa em sentido diverso do que é corrente na atualidade, como "trocado", com o significado de "trocadilho". Procedeu-se assim também em relação a expressões idiomáticas hoje em desuso: "Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa xira, das belas damas [...]", em que "boa xira" significa "boa vida", "bom passadio".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Saiu o homem magro, e voltou logo depois".

Respeitou-se o uso da vírgula antes de "etc." por ser recorrente na prosa do autor. Respeitou-se igualmente o emprego da vírgula usada para separar o sujeito de seu verbo sempre que nisso se identificou um gesto estilístico do autor: "Quem podia, emigrava." Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo: "os prêmios são poucos, os malogrados, inúmeros". Assim também se procedeu quando o objeto direto é anteposto ao verbo: "Os exemplos, achou-os na história e em Itaguaí."

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. No entanto, no conto "As bodas de Luís Duarte", há uma fala no meio do parágrafo, e foram usadas aspas porque abrir novo parágrafo pareceu demasiado.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento e Karen Nascimento de Souza (que, além de ter contribuído na pesquisa dos hiperlinks, redigiu parte desta introdução), atuais bolsistas de Iniciação Científica; e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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1. Cf. MERQUIOR, José Guilherme. Machado de Assis e a prosa impressionista. In:______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979. p. 153-154.

2. Cf. GLEDSON, John. Prefácio. In: ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2011. p. 7-32.

3. No ano seguinte (1879) em "A nova geração", ensaio focado na crítica da poesia brasileira da época, voltaria a fustigar o Realismo-naturalismo.

4. DIEGO, Marcelo. Experiência e apropriação na técnica narrativa de Papéis avulsos. Machado de Assis em linha: revista eletrônica de estudos machadianos, ano 1, número 1 (jun. 2008). p. 111-127.

5. Idem, p. 126.

Marta de Senna, pesquisadora
Karen Nascimento de Souza, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

novembro de 2012

Advertência

Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.

Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente que, se há aqui páginas que parecem meros contos e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido, que tem sabedoria". Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche, espero que daí mesmo virá a absolvição.

Machado de Assis

Outubro de 1882

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