Coletânea

Histórias Sem Data

1884

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Em 1884, Machado de Assis publica seu livro de contos Histórias sem data, três anos depois de ter surpreendido o público e a crítica com o espantoso romance Memórias póstumas de Brás Cubas. Os estudiosos entendem esse romance como marco de uma nova fase na ficção do autor: mais madura, mais mordaz, mais independente em pensamento e estilo. Esta quarta coletânea de contos do escritor é a segunda a levar a marca desse novo Machado de Assis (ao "velho" pertenceriam Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), sendo precedida apenas por Papéis avulsos. Se este último representou um salto na sua produção contística, pode-se dizer que Histórias sem data amplia o espectro de temas machadianos, investindo mais consistentemente na narrativa curta de caráter alegórico.

Todos os livros de contos de Machado de Assis - de Contos fluminenses a Relíquias de casa velha - têm títulos no plural. Em Papéis Avulsos, no entanto, o próprio autor, na Advertência, aponta para certa unidade entre os contos: "são pessoas de uma só família". Histórias sem data, porém, apresenta-nos um autor menos interessado em dar explicações. Na advertência à primeira edição, o Bruxo esclarece o sentido quase literal do título dizendo se tratar de "cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia".

A interessante classificação dos contos do volume proposta por Adriano da Gama Kury (embora, é sabido, "classificar" os escritos de Machado seja sempre um empreendimento fadado ao erro) nos indica haver, em Histórias sem data, cinco grandes classes de contos. A primeira, a das "fantasias moralizantes", englobaria "A igreja do Diabo", "Conto alexandrino" e "As academias de Sião". O primeiro conto narra a tentativa malograda do Diabo de reunir fiéis para si. As exigências eram aparentemente fáceis de serem atendidas, as virtudes aceitas pelo diabo eram "as naturais e legítimas", o que era definido como pecado pela igreja original era aceito como virtude na nova igreja. Apesar da aparente facilidade proposta pelo diabo, a eterna contradição humana irá fazer da sua igreja mais uma comunidade de infiéis. Em "Conto alexandrino", a cidade de Alexandria servirá de cenário para essa espécie de troça fantasiosa sobre a credibilidade de algumas teorias científico-filosóficas. A ridicularização da ciência não é tema novo da ficção machadiana: "O alienista", conto do livro anterior, também tratava dos exageros da ciência. Aliás, a expressão latina "Plus ultra", que significa "mais adiante, além", é título de um capítulo de "Conto alexandrino" e também de um capítulo de "O alienista". A expressão indica a recusa, por parte do alienista Simão Bacamarte e dos cientistas Stroibus e Pítias, de reconhecer os limites da ciência. Antes, tentarão ir além, gerando consequências desastrosas. Ainda na temática do saber e do conhecimento, "As academias de Sião" é quase um tratado sobre a estultícia. Machado usa a fantasia para expor a soberba de autoridades tolas, representadas no conto pelas academias, que afirmam: "Glória a nós que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo".

A segunda categoria de Kury é a dos "Fortes perfis femininos". Nela, se enquadrariam "Singular ocorrência", "Capítulo dos chapéus", "Uma senhora", "A senhora do Galvão" e "Noite de almirante". É certo que Machado é reconhecido por muitos pela complexidade de personagens femininas. "Sedutoras", "interesseiras", "dissimuladas" e "obstinadas" são caracterizações que ainda estão aquém de uma perfeita descrição das criaturas. Ao longo da produção ficcional machadiana, as mulheres sempre foram alvo de singular atenção. Em "Capítulo dos chapéus", o principal objetivo de Mariana é convencer o marido a deixar de usar um chapéu. A recusa, por parte do marido, de lhe atender ao desejo passa a lhe perturbar o espírito: "A rebelião de Eva rebocava nela os seus clarins". Mariana sofre de uma espécie de transtorno, transtorno este ironizado desde a primeira frase do conto, quando o narrador lança a máxima: "Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel..., naquela manhã de abril de 1879.", exemplo de utilização do clássico para representar o banal. Se Mariana de "Capítulo dos chapéus" é obstinada, "Noite de almirante" nos apresenta Genoveva, uma jovem cabocla "esperta, de olho negro e atrevido". A mocinha deixa desconcertado o marujo Deolindo, pois nada tem da idealização romântica que prevalecia no século XIX, do amor ingênuo, que é fiel até a morte. Na verdade, Genoveva parece mais próxima ao Naturalismo então em voga no Brasil: sua conduta deixa entrever uma espécie de amoralidade inocente, que desconhece compromissos, que só reconhece a necessidade. Também inescrutável ao entendimento masculino é a Marocas de "Singular ocorrência", sobre quem conversam o narrador e um amigo, os quais chegam ao fim do conto aplicando-lhe um rótulo, mas, na verdade, sem tê-la compreendido. O terror de envelhecer, que já assombrara a protagonista de "O segredo de Augusta" (de Contos fluminenses) assombra a personagem central de "Uma senhora", ao passo que o tema da infidelidade conjugal - recorrente em toda a ficção do século XIX - é explorado, sem falso moralismo, em "A senhora do Galvão".

Mas Machado não se destaca apenas por seus perfis femininos. "Os perfis masculinos são igualmente marcantes", de acordo com o professor Kury. Por isso, em Histórias sem data, temos esse outro grande grupo, no qual se incluem: "Anedota pecuniária", ''Último capítulo" e "Ex cathedra". O primeiro traz ao leitor o intrigante Falcão, versão novecentista brasileira do Harpagon de Molière, o avarento por definição. Admirador do dinheiro como nenhum outro, é capaz de vender quem lhe é mais caro por uma coleção de moedas. Os outros dois contos nos apresentam perfis masculinos envoltos em mais duas temáticas muito presentes na obra machadiana: o caiporismo, tema trazido à tona no testamento de Matias, de "Último capítulo", que é também aproximável de contos como "Aurora sem dia" (de Histórias da meia-noite), "Cantiga de esponsais" (de que trataremos abaixo) e "Um homem célebre" (de Várias histórias). É a questão da ambição que se frustra, do abismo entre o sonhado e o realizado, entre o desejo e a conquista. Em "Ex cathedra" o grande tema é o que os ingleses chamam de sátira ao learned wit, a falsa erudição, ou melhor, à "erudição sabichona": Fulgêncio é um exemplo de personagem pseudo erudita que elabora teorias filosóficas para dar conta do mundo à sua volta, que Machado já havia explorado em Memórias póstumas (1881), ao criar a personagem Quincas Borba e à qual voltaria no romance homônimo, de 1890.

"Os estudos de personalidade aparente e profunda" também são uma classe de contos segundo Kury. Nessa classe, estão duas narrativas: "Galeria póstuma" e "Fulano". Joaquim Fidélis, de "Galeria póstuma", morre e deixa diários que põem em ridículo muitos de seus amigos íntimos: o homem, conhecido pela distinção e gentileza para com todos, escondia opiniões pouco agradáveis sobre os amigos. O outro conto, "Fulano", contém um discurso ambíguo, cheio de críticas veladas ao súbito "espírito universal e generoso" de Fulano Beltrão. O narrador, que, extremamente convidativo, chega às vezes a ser insistente no apelo ao leitor, parece não querer dizer tudo o que pensa ao descrever as prodigalidades da personagem. Um narrador digno do escritor, embora não tão atrevido quanto Brás Cubas, nem tão dissimulado quanto Bentinho.

O último grupo de contos diz respeito às "pinceladas históricas" da cidade do Rio de Janeiro. Machado de Assis ambientou a maioria de seus relatos nessa cidade. Além de ser seu lugar de origem, e também onde viveu por toda sua vida, o Rio de Janeiro era, na época, a Corte brasileira, a capital do país, habitat da nobreza e da emergente burguesia brasileira, os tipos preferidos do autor. Os contos agrupados aqui por Kury são "O lapso" e "Cantiga de esponsais". Entretanto, parece-nos que essas narrativas transcendem a categoria em que as inscreveu o filólogo da Casa de Rui Barbosa. (De resto, é preciso reiterar, que, como ocorre com a obra de todo grande escritor, a produção machadiana zomba das regras e das classificações.) Em "O lapso", o leitor é confrontado com o mistério de uma personagem solitária, literalmente um estrangeiro em nossa terra, cuja atuação altruísta tem talvez por fundamento uma timidez quase excessiva, que a leva a jamais reivindicar nada para si. Já em "Cantiga de esponsais", volta à tona a questão da diferença abissal entre o sonho e a realização, entre o que se almeja e o que se consegue. Além disso, lida também com outra questão cara a Machado, a saber, a dificuldade da criação, exemplarmente explorada em "Um homem célebre", conto de seu livro seguinte, Várias histórias (1896)

Há ainda outros três contos que não foram agrupados em nenhuma categoria por Kury: "Primas de Sapucaia!", "A segunda vida" e "Manuscrito de um sacristão". Contudo, Adriana de "Primas de Sapucaia!" não difere das que integram o rol de personagens femininas que abalaram as emoções dos homens machadianos, e lembra um pouco a Marocas de "Singular ocorrência". O discurso vivo de José Maria em "A segunda vida" é um delicioso delírio, vindo de mais um louco na obra de Machado de Assis. Mas talvez o aspecto mais interessante do conto seja o domínio da técnica narrativa, que incorpora elementos dramáticos, dando ao leitor uma inquietante sensação de estar presente diante do desenrolar da história, como numa peça de teatro. Em "Manuscrito de um sacristão", Machado lida com um tema também recorrente em sua ficção, desde Contos fluminenses, em cujo "Frei Simão" se pode vislumbrar a origem do conto de Histórias sem data e da mais bem acabada narrativa sobre o assunto no conjunto da obra machadiana, Dom Casmurro. Trata-se, em termos gerais, da questão da fortíssima presença da Igreja Católica na vida brasileira do século XIX, e, em termos específicos, do celibato eclesiástico como impeditivo da realização amorosa.

Histórias sem data é um livro que reúne todas as qualidades que fizeram de Machado de Assis um mestre do conto. Nele estão presentes seus melhores temas, personagens marcantes, além de novas experimentações no campo alegórico, ambientadas em lugares distantes, no tempo e no espaço. A coletânea aqui analisada é o registro de um homem atento a seu tempo, mas que não se deixa aprisionar no seu século. Foge das padronizações, dando ao leitor uma variedade de possibilidades de formas e de temas, alcançando um caráter universal e atemporal, "sem data".

***

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, bem como com a publicada pela editora Garnier, com texto estabelecido por Adriano da Gama Kury, no fim da década de 1980, já referida aqui. Em caso de discrepância, foram consultadas a primeira e a segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em alguns casos, apesar de a segunda edição ser a última publicada em vida do autor, preferiu-se a lição da primeira, ou por nela encontrar um "sabor" coloquial ("vosmecê" e, não "vossemecê") ou por identificar nela um uso ao gosto clássico como em "Não havia duvidar" (em vez de "Não havia que duvidar", como registrado na segunda edição).

Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está na primeira edição: "subtil" (e não "sutil"), "pinturesco" (e não "pitoresco"), "centelham" (e não "cintilam"); "deleixo" (e não "desleixo"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "dous" e "dois", entre "cousa" e "coisa" e entre "noite" e "noute" ("noute" com apenas uma ocorrência, no conto "Ex cathedra"). Mantiveram-se o advérbio flexionado ("meia aberta"), bem como duplas regências indiretas consideradas incorretas pelas regras gramaticais de hoje em dia ("[...]ensinou-lhe a ler e escrever", quando o correto seria "ensinou-a a ler e escrever"). Do mesmo modo, manteve-se a dupla preposição em casos como "mas já agora iriam até ao fim da rua ", ou "Deixei-me ir até à Câmara dos Deputados", como é até hoje usual em Portugal. Pelo mesmo motivo, preferiu-se a forma "todo o caso" (em consonância com a segunda edição), porque, ao longo de sua obra, Machado parece evoluir para um "sotaque" português, e essa é até o presente a forma mais encontradiça em Portugal. Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos, bem como para instituições. Por entender-se como "mundo", "terra", referindo-se ao planeta em que vivemos, foi grafado com inicial minúscula: "Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?"

Preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "bond" (e não "bonde"), "toilette" (e não "toalete") "whist" (e não "uíste"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma por extenso, tal como figuram nas primeiras edições. Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "familiares", no sentido de pessoas íntimas da casa de alguém, não necessariamente pertencentes à família desse alguém; ou "trastes" no sentido de "móveis" e não no de artigos de pouco valor; ou "cópia" no sentido de "abundância", "grande quantidade" e não no de "réplica", "reprodução".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Pôs os olhos nele, e disse-lhe", e "[...] mas o Ribeiro viu tão somente a rejeição, e embarcou". Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que ocorre em: "Aos treze, Jacinta mandava na casa; aos dezessete era verdadeira dona." (Note-se que no primeiro período existe vírgula depois da circunstância adverbial, e no segundo período não.) Ou a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro", porém: "Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado". Ou o uso incidental de vírgula depois da conjunção adversativa "mas": "[...] mas, o sentimento de humilhação subsistia". Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, como em "[...] uns diziam isto, outros, aquilo", mesmo porque, às vezes o autor a emprega: "Não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo".

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Karen Nascimento de Souza e Laíza Verçosa do Nascimento, a primeira ex- bolsista, e a segunda atual bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

abril de 2013

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