Contos na Imprensa - Fase 7
Esta que se denominou aqui "sétima fase" dos contos avulsos de Machado de Assis reúne nove peças, publicadas, entre março e dezembro de 1883.
Já há algum tempo, por iniciativa de editoras como a Jackson e a Nova Aguilar, e de indivíduos como Raimundo Magalhães Jr. (que nos anos 1950 publicou cinco volumes reunindo contos machadianos), o leitor dos séculos XX e XXI teve acesso a muitas dessas histórias. Nas edições anteriores à de 2008, a Nova Aguilar reuniu, sob o título de "Outros contos", 46 títulos. Os contos "completos" de Machado de Assis, no entanto, eram (e são) acessíveis eletronicamente, desde 2002, em www2.uol.com.br/machadodeassis?, graças a uma iniciativa pioneira de Cláudio Abramo.
Em 2008, como parte das comemorações do primeiro centenário da morte do escritor, a Nova Aguilar reuniu a obra completa de Machado de Assis em quatro volumes e ofereceu ao leitor, em suporte material, todos os contos machadianos. Aqueles que não foram selecionados pelo autor para figurarem nos sete volumes de contos que publicou durante sua vida compõem o segundo e o terceiro volume dessa edição, num total de mais de mil páginas, sob o título de Contos avulsos. São 114 contos ao todo, na grande maioria, bastante extensos.
A imensidão e as dificuldades do corpus exigiram da nossa equipe uma espécie de reinvenção metodológica: distribuímos os contos por períodos, mais ou menos curtos, de modo que, a cada etapa, lidássemos com, no máximo, 15 contos. O que se publica aqui é o que chamamos "Contos avulsos - fase 7", reunindo peças publicadas na Gazeta de Notícias (uma), em A Estação (sete), e na Gazeta Literária (uma). Dos nove contos, sete são assinados por Machado de Assis, e dois, por M. A. Nos próximos meses, esperamos ir dando conta, em mais três etapas semelhantes a esta, do conjunto completo.
Não há unidade temática entre os contos aqui reunidos, como, aliás, não costuma haver mesmo nos livros publicados pelo autor em vida, cujos títulos, sempre no plural, são por si só uma indicação de diversidade. Trata-se de um autor maduro, cuja crítica aos costumes do tempo se faz de maneira contida, mas nem por isso menos contundente, como no seguinte exemplo, do conto "Vidros quebrados": "A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue". O humor machadiano, costumeiramente contido e fino, aqui às vezes aflora de maneira rasgada:
- Marcos, tu queres uma noiva?
Marcos respondeu que preferia um bife sangrento.
(Médico é remédio)
Outra característica do melhor Machado que existe desde as primeiras produções é a autoconsciência narrativa, traço peculiar a autores caros ao Bruxo do Cosme Velho, de Luciano de Samósata a Sterne, de Cervantes a Camilo Castelo Branco. O narrador ora dela se vale para envolver o leitor: "Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico." ("Questões de maridos"); ora para chamar atenção para a materialidade do texto e do veículo no qual o publica: "Levantou-se e foi cuidar da bagagem. Creio que é tempo de acabar este capítulo". ("Troca de datas")
Um dos motivos recorrentes na ficção machadiana, cuja forma mais depurada se apresenta ao leitor de Esaú e Jacó (1904), é a dificuldade, ou incapacidade, ou ainda, a impossibilidade de escolha, por uma moça, entre dois pretendentes. O motivo parece surgir aqui, no conto "O destinado", em que Delfina prenuncia tanto a Maria Regina do conto "Trio em lá menor" (1886) como a inexplicável Flora, do penúltimo romance do autor:
O melhor seria fundi-los ambos, unir os bigodes de um aos olhos de outro, e meter esse conjunto divino no coração; mas como? Um era um, outro era outro. Ou um, ou outro. [...] O que se pergunta é se o fato de um amor assim duplo é possível; talvez que sim, desde que não haja saído da fase preparatória, inicial; e esse era o caso de Delfina. Mas enfim, cumpria escolher um deles.
É sabido que Machado de Assis é um autor de enorme cultura literária e que as relações intertextuais de seus livros com outras obras da literatura universal são quase sempre fecundas e tanto trazem ao texto machadiano diferentes possibilidades de interpretação, quanto permitem que se leiam tais obras sob nova luz. Citando muito, é natural que repita citações. Uma que identificamos neste conjunto de contos é a referência a Eurico, o presbítero, do romancista romântico português Alexandre Herculano, que traz para o conto "Troca de datas" ("Provavelmente, não teria ciúmes. Eusébio disse consigo que a mulher era um cadáver, e, lembrando-se do Eurico, emendou-lhe uma frase: 'Ninguém vive atado a um cadáver', disse ele."), como já tinha feito no conto de 1864-1865 "Questão de vaidade" ("Era, assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que Eduardo passava os dias e as horas, sem ver nem procurar ninguém."), como viria a trazer para o conto "A segunda vida", publicado em 15 de janeiro de 1884, na Gazeta Literária, e, em livro, no mesmo ano, no volume Histórias sem data.
O conjunto de contos aqui reunidos revela ao leitor contemporâneo um autor já no pleno domínio de seu meio de expressão, algumas das peças alcançando o mesmo nível de qualidade das melhores produções do escritor.
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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas, sempre que possível, com as edições digitalizadas dos periódicos em que os contos foram originalmente publicados, disponíveis no acervo da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional.
Tal cotejo se revelou fundamental, na medida em que as edições existentes, tanto as impressas como as disponíveis em meio eletrônico, quase todas oriundas ou das coletâneas reunidas pela editora Jackson na coleção da obra completa de Machado de Assis, ou dos cinco volumes de contos machadianos publicados por Raimundo Magalhães Jr., apresentam problemas seriíssimos: falta de passagens inteiras, substituição de palavras, "correções" ao texto machadiano (quer com substituição de palavras talvez consideradas menos "nobres", quer com flexões nominais e verbais modificadas em observância a normas gramaticais). Disto procurou-se dar conta em links, que, nesta edição - o leitor notará - não se restringem às citações e alusões histórico-literárias e à toponímia, tratando de casos mais propriamente linguístico-filológicos.
Foi feita uma atualização ortográfica. Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Tesouro", "Guarda Nacional", "Escola de Medicina", "Escola Politécnica"; assim como para "Terra", quando designa o planeta. Quanto às palavras estrangeiras, manteve-se a forma usada nas publicações originais: "bond", "fichus", "toilette", "buffet".
Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "esquisito", no sentido hoje pouco usual de "sofisticado, raro, precioso"; "maricas", referindo-se a "pessoa dada a ter medo, que facilmente se acovarda".
Usos hoje considerados incorretos foram, obviamente, mantidos, como certas "violências" sintáticas: "Conselhos vãos; Henriqueta declarou que só casaria com quem lhe merecesse", em que o verbo "merecer" é empregado como transitivo indireto. Outra peculiaridade da escrita machadiana que foi mantida é o emprego do artigo em "em todo o caso", "em toda a parte", uso ainda frequente em Portugal, mas evitado no Brasil.
Buscou-se sempre a maior proximidade possível com a publicação original, o que nem sempre tem sido a política de edições posteriores. Respeitaram-se todas as oscilações registradas na publicação original como entre "até o" e "até ao"; "cousa" e "coisa"; e "dous" e "dois".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Dona Mariana deixa-os andar, e continua fiel à memória do morto." Preservou-se a oscilação entre uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência"; mas: "Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também.".
Manteve-se igualmente a alternância entre o não emprego e o emprego de vírgula antes de oração subordinada consecutiva, às vezes no mesmo período: "[...] o preterido sorria-lhe com tanta graça que era pena deixá-lo; elegia então esse, mas o outro dizia-lhe cousas tão doces, que não mereciam tal desprezo".
Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz (mas às vezes faz), assim como nos casos de orações subordinadas reduzidas de gerúndio, e, ainda, nas orações em que há uma inversão na ordem sintática habitual da frase.
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado parágrafo e travessão, salvo quando o autor parece querer, deliberadamente, inserir a fala de uma personagem no meio da de outra personagem, ou do narrador, como no conto "A ideia de Ezequiel Maia":
Cólera passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes... - Estão feitas, acudiu ele; Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah, doutor, é uma santa mulher! - E então? - Mas não posso esquecer que lhe dei, não me perdoo isto; sei que foi na cegueira da raiva, mas não posso perdoar-me, não posso. E a consciência tornou a doer-lhe, como a princípio, inquieta, convulsa.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, bem como na elaboração de algumas notas, a de Maira Moreira de Moura, atual bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.