Conto

Questão de Vaidade

1864

VI

Três meses decorreram depois dos fatos que acabo de contar. Durante esse tempo houve a reprodução das mesmas visitas, alternadamente a Maria Luísa e a Sara.

Nem uma, nem outra suspeitou nunca da fidelidade de Eduardo. O episódio do lenço foi esquecido pela viúva, em cujo coração o amor crescia tanto como no de Sara, sem que entretanto o espírito de Eduardo se apercebesse de que uma tal bigamia moral podia levar a sérias consequências.

Duas vezes, no espaço dos três meses, Maria Luísa, em conversa com Eduardo, procurou encetar o assunto do casamento. O silêncio de Eduardo parecia-lhe timidez, e a coitadinha cuidava adiantar alguma cousa, iniciando uma conversação a esse respeito.

Enganara-se. Eduardo, mal pressentia que o espírito de Maria Luísa se voltara para a igreja, mudava de assunto com tão rara habilidade que a própria moça não percebia a trama.

Das apreensões às incertezas, das incertezas ao desânimo, Maria Luísa não podia atinar, nem com a natureza do amor de Eduardo, nem com os fins de sua paixão.

Quanto a Sara, sentia-se feliz e nada ousava indagar nem saber. Aquele amor eram as primícias do seu coração. Julgava-se uma Virgínia e pensava ter encontrado o seu Paulo!27 A pobre menina não tinha nem o tato nem o contato do mundo; o tato para conhecer o espírito de Eduardo, o contato para saber da opinião que faziam dele. Vivia isolada, no meio de sua família, julgando o resto do mundo pela vida que levava e pelos afagos sinceros que recebia.

No fim do tempo de que acima falei, era uma quinta-feira, preparava-se Eduardo para um baile que dava o conselheiro C***, não sei por que motivo ou por que pretexto. Sara devia ir, e Eduardo, cuja fama do amor por Maria Luísa já era conhecida, queria, coram populo, mostrar a nova paixão ou antes a paixão concorrente da menina Sara.

Preparava-se, disse eu, mas não era bem isso, visto que apenas eram dez horas da manhã. Preparava-se para saborear as delícias que a admiração e a inveja lhe haviam de fornecer.

- Não há dúvida - pensava ele -, sou amado por aquelas duas mulheres. Ambas me querem; adoram-me ambas. Mas por que motivo, eu, a quem tantas fortunas coube em sorte, estarei tão orgulhoso com o amor destas mulheres? É que as amo? Não há dúvida, amo-as; estremeço-as do mesmo modo. Diga lá o filósofo o que quiser, este duplo amor não é impossível; tanto não é, que existe. Oh! Se existe...

Eduardo fazia estas reflexões contemplando os novelos de fumaça de um charuto de havana.

Tinha almoçado bem e fazia o quilo, com aquele descanso dos homens que não têm cuidado no que há de ser a refeição seguinte. Estava em uma completa embriaguez dos sentidos.

Naquelas e em outras reflexões estava, quando o criado lhe trouxe uma carta que o correio acabava de entregar. Abriu-a e leu-a rapidamente. Era de Pedro Elói. Dizia o filósofo de Petrópolis:

Meu caro Eduardo,

Resolvi mandar-te novas minhas, já que não me mandas as tuas. Esperei o que podia esperar. De duas uma: ou esqueceste o velho amigo, ou continuas embriagado nessa fatal paixão dos sentidos, dupla, segundo dizes e eu acredito.

Em qualquer caso, interessa-me escrever-te.

Ah! Quem me dera ter-te agora no meu chalet, preso, atado, amordaçado, vendado, inofensivo, para descanso da humanidade e para a felicidade do meu coração!

Estou certo que os meus conselhos, o meu exemplo e até o meu olhar bastariam para dar-te aquela regra de conduta própria dos homens que aspiram e têm o direito de aspirar.

Mas enfim, deixemos lamúrias e falemos conciso e preciso do que importa saber.

Vou apostar que as tuas duas paixões estão extintas, como já estão extintas as fogueiras que arderam no último São João? Há de ser assim. É da natureza desses assomos sensuais irem tão súbito como aparecem.

Se não é assim, deixa que eu te considere o mais infeliz dos homens. Dirás que não, e assim te parece,.com efeito; aos espíritos jovens mais ou menos gastos, o futuro é nada, o presente é tudo. Não lhes falem do que pode ser consequência dos atos de hoje. O que desejam é a satisfação dos prazeres, a realização dos caprichos, sem mais cuidar no desenlace das cousas, nem na lógica forçada do crime.

Escrevi a palavra crime, e não foi por engano. É preciso dizer-te a verdade nua e crua. Ocultá-la é ser de algum modo cúmplice nos teus atos, e eu não quero para mim semelhante papel.

Dizes que amas a essas duas mulheres. Acredites ou não acredites, é certo que lhes fazes compreender a tua paixão. Supõe que elas te acreditem, e, por tuas maneiras e graças, consegues convencê-las, e mais, fazeres-te amado. O que resulta daqui? Resulta não uma iludida, mas duas, porque, não amando nenhuma, e tendo a tua paixão mui estreito limite, ambas se acham despojadas das ilusões do futuro e da fé que as alimentava.

Que acontecerá? Qual será a consequência desse desencanto? Sabes tu a profundeza das duas almas a quem iludes? Sabes de que serão capazes? Pressentes o fogo em que vais queimando as mãos?

Falo-te uma linguagem em vez de outra, mas é a única que podes ouvir agora. A que eu devera falar era a linguagem do dever; em vez de indicar-te as consequências dos teus atos, eu devera dizer simplesmente que os teus atos eram criminosos diante da moral eterna. Mas far-me-ia ouvir?

Se em vez dos magníficos cabelos pretos que me adornam a cabeça e dos olhos vivíssimos com que neste momento olho para este papel, eu tivesse honradas cãs e olhos moribundos, sei o que dirias ao ler esta carta; sou moço, como tu; sou apto, como tu, para as paixões; mas há uma diferença: eu as domino, porque as paixões não são invencíveis, e só uma moral interesseira e egoísta pode dá-las como tais. Tenho, portanto, além do meu conselho, o meu exemplo.

Olha, por que não vens passar uns dias comigo? Eu te prometo que começarei a cura de modo mais suave.

Se não vieres, sou eu que vou, mas conforme a tua resposta. E repara bem, comigo é inútil o disfarce. Falta-te o talento de iludir a homens experimentados. Se mentires eu cá sei como te hei de ler.

Em qualquer caso, escreve-me. Terei ao menos o prazer de ver letras de um amigo.

Ah! Se compreendesses bem o valor desta palavra!

Adeus. Sê prudente. O Espírito Santo te ilumine.

Pedro Elói.

O tom decisivo, a linguagem nua desta carta não convenceram Eduardo. Não direi que o não abalasse. Custou-lhe engolir algumas das expressões duras de Pedro Elói. Mas o que era aquilo senão o que ele próprio pedira?

Eduardo pensou na resposta. Devia negar ou dizer a verdade? A prevenção de Pedro Elói quanto à veracidade dos fatos indicara claramente que era inútil a mentira. Não havia senão isto: ou dizer a verdade ou não escrever. Eduardo refletiu alguns minutos; resolveu escrever dizendo a verdade, porém mais tarde.

Deitou a carta na secretária, e ia sair quando lhe foi anunciada a visita de Silvério.

Mandou entrar, e daí a pouco o valente jogador de xadrez aparecia à porta, com ar risonho e gesto afetuoso.

Era a primeira vez que Silvério visitava Eduardo. Por isso levou longos minutos a examinar e admirar a casa e a mobília, não se escondendo para dizer o que achava de mais gosto ou de mais delicado.

- Isto é propriamente uma casa de solteiro - dizia ele -; mas ainda casando, não sei que haja muita mudança a fazer. Basta substituir estes quadros...

- Que quadros? - perguntou Eduardo.

- Estes - respondeu Silvério apontando para umas gravuras que pendiam na parede, representando cópias de várias estátuas célebres.

- Não me dirá por quê, Sr. Silvério? - perguntou Eduardo, atirando-se a uma cadeira de junco.

- Não são próprias - respondeu modestamente o antigo solicitador.

- Mas sabe o que representam estes quadros?

- Pois não estou vendo?

Eduardo contentou-se em sorrir.

- Substituídos os quadros, creio que não há mais nada - continuou Silvério -. Ah!... Sim, ainda há. É retirar esta caixa de fumo, estes cachimbos, estes charutos, enfim tudo quanto diz respeito ao vício de fumar!

- Isto é, se eu me casar devo renunciar às obras-primas da arte e às obras-primas da indústria.

- Eu lhe digo. Sara não gosta de fumo...

- Sara! - disse Eduardo levantando-se da cadeira.

- Ah! Pronunciei o nome... Não precisa vexar-se, maganão! Já sabemos das suas artes... Fez-se amado!... Oh! E muito! Pois é assim! Ela não gosta de fumo, não gosta nada, mesmo nada, nada!

Eduardo estava espantado com as palavras de Silvério. Não atinava ainda com o fim daquilo. Viria sondá-lo? Viria repreendê-lo? Na dúvida, sentou-se vagarosamente na mesma cadeira e esperou que o ex-solicitador continuasse.

Silvério puxou outra cadeira e sentou-se defronte de Eduardo.

- Pois, meu caro Eduardo, é como lhe digo. Estão sabidas as suas travessuras. Sei que se amam com fervor e creio que só um receio pueril e inexplicável tem retardado de sua parte um pedido que só pode ser aceito com o maior alvoroço.

Eduardo, ouvindo estas palavras, calculou pior; calculou que Silvério era comissário do pai de Sara. Em tal caso cumpria-lhe responder de modo que nada sacrificasse. Ia falar, mas Silvério continuou:

- Não cuide - disse ele - que venho aqui por inspiração de terceiro. Venho por minha própria resolução. Mal soube do fato, corri a procurá-lo.

- E como soube? - perguntou Eduardo.

- Muito simplesmente: por boca de Sara.

- Ah! Ela contou...

- Contou tudo a mim e ao pai. Oh! É um anjo aquela menina. Se visse a simplicidade com que ela referiu os episódios do namoro, a franqueza com que se exprimiu no que tocava à paixão de que estava dominada, finalmente a sinceridade com que disse que acreditava no seu amor! Era de fazer verter lágrimas... Oh! É um anjo!... Ora diga-me: ter uma sobrinha assim não é uma ventura? E ter, além disso, um sobrinho como o senhor, não é uma bem-aventurança? Que belos dias não passaremos! Ela inclinada em seu ombro, e nós dous, em face um do outro, lutando palmo a palmo, peão a peão, uma daquelas partidas que de um simples paisano fazem um general consumado!

Eduardo sorriu-se a estas palavras de Silvério. Depois, procurando dar à sua voz alguma comoção, respondeu:

- É verdade que eu amo sua sobrinha. Era impossível vê-la sem amá-la. Contudo foi-me difícil declarar-lhe a minha paixão. Poderia parecer a exigência de uma paga a um serviço que eu fiz como faria a outra qualquer pessoa.

- Oh!... - interrompeu Silvério.

Eduardo continuou:

- Amo-a sim, e toda a minha ventura seria poder chamá-la minha mulher.

- Mas isso é o que há de mais fácil.

- Sei. Se até agora não tenho dado um passo para isso, é porque espero que se ultimem certos negócios...

- Mas que negócios?

- Certos negócios. Não está longe, posso afiançar-lhe, e nem eu deixarei passar uma hora, apenas, sem munir-me do competente consentimento dela, e do pai. Creio que já tenho o seu.

- Tem o de todos - disse Silvério em voz de Estentor.

- Muito bem. Vejo que a minha felicidade é completa!

- Pois, senhor, não sei que negócios sejam esses, mas creio que se não dependera disso a decisão, já há muito estaria a menina pedida e concluído o casamento.

- Ah! Com certeza!

- Não sabe que mulher leva...

- Sei.

- É um serafim em alma e corpo.

Aqui começou uma ode à beleza e à candura de Sara, perfeitamente dividida em estrofes, antístrofes e epodos. Meia hora depois Silvério saía de casa de Eduardo, depois de abraçá-lo e instar com ele para que não deixasse passar a ocasião de uma fortuna.

E mal saía o ex-solicitador, entrava um moleque de Maria Luísa com uma cartinha para Eduardo. Dizia a cartinha:

Eduardo,

vou ao baile do conselheiro C***. Disseste-me que estavas convidado. Não faltes.

Tua,

Maria Luísa.

Eduardo ficou alguns momentos sem pensar cousa alguma. Depois, relendo o bilhete, pôde refletir sobre o caso. As duas mulheres iam achar-se em presença. Poderiam não saber nada uma da outra; mas era possível que um nada lhes derramasse a luz no espírito. Como evitá-lo?

Eduardo pensou em não ir ao baile, mas, além do resultado que isso trazia, ocorreu-lhe que a sua presença era até necessária, visto ser já conhecido o seu amor por Maria Luísa e por Sara.

Não comparecer ao baile era fazer supor que a afeição por aquelas duas mulheres, descendo à condição dos afetos comuns, tinha acabado como acabam os afetos comuns.

E depois, se alguma cousa pudesse acontecer, não era melhor que ele lá estivesse para desfazer uma impressão má ou desmentir uma suspeita?

Tais razões e outras mais decidiram Eduardo a afrontar as consequências de um encontro entre as duas mulheres debaixo do mesmo teto.

Em consequência preparou-se para ir ao baile.

Às nove horas e meia da noite entrava ele nos salões do conselheiro C***, meio receoso, meio tranquilo, em todo caso orgulhoso com a circunstância especial de achar-se diante das duas mulheres que se tinham apaixonado por ele.

Depois de fazer os cumprimentos devidos aos donos da casa, indagou Eduardo se as duas tinham já chegado ao baile. Disseram-lhe que não. Com efeito, correu toda a casa sem encontrar vestígios de nenhuma pessoa das duas famílias.

Em uma das viagens que fazia em busca de Sara e Maria Luísa, Eduardo encontrou os dous amigos que lhe tinham aparecido no Rossio no dia em que, acompanhado por mim e pelo leitor, fizera uma visita à viúva da rua do Lavradio.

- Oh! Tu por aqui! - disse um deles -. É a primeira vez que apareces depois de tamanha ausência... Bem-vindo sejas!... Mas aposto que a viúva está por cá?

- Não - respondeu secamente Eduardo.

- Não? Então é que há de vir. Muito bem... Estão mesmo uma corda e uma caçamba.

- Disseram-me no outro dia - disse o segundo moço brincando com a corrente do relógio - que tinhas uma segunda namorada. Não quis crer...

- Por que não quiseste crer? - perguntou Eduardo.

- Ora, porque de duas uma: ou não amas deveras, e então não terás duas, terás cem; ou amas deveras, e então amar a duas é absurdo.

- Absurdo! - disse Eduardo.

- Pois não!

- Não achas? - perguntou o primeiro.

- Não acho. É cousa muito possível.

- Aposto que amas realmente as duas e deveras?

- Deixemos o terreno dos fatos. Teoricamente posso provar...

- Teoricamente prova-se muita cousa...

- Por exemplo, prova-se que estás corrigido, que mudaste de sistema de vida, enfim que és quase um santo. Ora, não há maior falsidade...

- Por quê? - perguntou Eduardo meio sério.

- Porque essa aparência de vida modesta e honesta desculpa a dureza do coração, essa aparência é puramente aparência. És o mesmo. Estás mudando o ponto de vista e os meios de ação.

Eduardo sorriu-se e perguntou, pondo a mão no ombro de ambos:

- Dar-se-á caso que vocês também se tornassem filósofos?

- Filósofos, como Epicuro. Somos o que éramos dantes; somente somos e dizemos que o somos. Tu és e dizes que não és. Eis toda a diferença.

- Deveras? - disse Eduardo.

- É certo. Anda tomar um copo de xerez. Dizem que o conselheiro oferece desse vinho delicioso aos seus convidados conhecedores. Olha que é xerez; é o vinho de Francisco I, o conhecedor de mulheres como tu, lembras-te? Souvent femme varie...

- Salta, gaiato! - disse alegremente Eduardo apartando-se dos dous amigos.

- Anda cá - disse um deles -. Olha!

Apontando com a mão para a escadaria que ficava próxima chamou a atenção de Eduardo para duas senhoras que entravam. Eram Maria Luísa e sua mãe.

- Ah! - disse Eduardo.

E voltando-se para os amigos:

- Adeus, até logo.

Os dous rapazes afastaram-se rindo. Eduardo foi ao encontro das duas senhoras.

Maria Luísa estava radiante. Tinha na verdade um porte de grandeza natural, e quando os seus olhos se voltaram em roda dos que a cercavam, parecia uma castelã antiga contemplando os cavaleiros preparados para as justas. Trazia um vestido de seda cor de violeta com enfeites da mesma cor. Os cabelos, penteados à Stuart, moda então muito em voga, faziam realçar um fio de pérolas, cujo fecho de brilhantes em forma de estrela ficava-lhe no meio da cabeça. Trazia na mão um ramalhete de violetas. Quando Maria Luísa entrou no salão, onde os mais belos toilettes chamavam a atenção dos olhos masculinos e seus apêndices, as lunetas, houve uma espécie de rumor admirativo.

Todas as belezas foram um momento esquecidas por aquela que entrava vestida com tanta simplicidade e tão bom gosto.

Maria Luísa, com aquele instinto admirável das mulheres, reparou no efeito que produzia e não deixou de gozar amplamente o prazer que lhe dava a geral admiração.

Os que a não conheciam indagavam do seu nome, e os que a conheciam respondiam aos interpelantes, repetindo-se às vezes o nome de Eduardo como o senhor e possuidor daquele coração viúvo.

Eduardo, orgulhoso e radiante, olhava para todos do alto de seus olhos e da sua felicidade, com certo arzinho de quem mofava dos outros por serem menos venturosos ou menos lestos.

Enfim, a vida do baile começou. Anunciou-se uma valsa. Eduardo e Maria Luísa tomaram lugar entre os valsistas. Dentro de pouco muitos pares retiravam-se para dar lugar à valsa douda, entusiasta do moço e da viúva.

Conversava eu um dia com um dos meus amigos poetas que a morte levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos conheceram.

- Não sei - dizia-me Casimiro de Abreu - como se pudesse inventar a valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão diante de cem olhos. A valsa é realmente a mais graciosa, a mais natural, a mais bela das danças, mas nenhum olho humano deve presenciá-la. Então os dous valsantes que se amam, que vivem um pelo outro, podem embriagar-se na valsa, viver não a vida do mundo, mas a vida dos anjos, a vida dos sonhos, a vida do céu!

- Casimiro - objetava eu -, para dous corações que se amam, a multidão não é o isolamento? E quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhes desaparece tudo, não ficam eles sós, ermos, confundidos?

Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.

A minha objeção no caso de Eduardo e Maria Luísa tinha meia aplicação. De fato, a viúva corria nos braços de Eduardo, e no meio dos cem olhos que os acompanhavam, como se estivesse em um deserto. Esqueceu-lhe tudo por Eduardo. Mas este não. Lembrou-se e muito que estava entre gente; calculava, adivinhava, redigia consigo mesmo os ditos, as observações, os olhares invejosos de toda aquela multidão.

Foi exatamente no fim da valsa que chegou a família de Almeida. Os rumores que sucederam à valsa de Eduardo e Maria Luísa foram dobrados com a presença de Sara.

Com efeito, se Maria Luísa tinha direito a excitar a admiração geral, não menor o tinha a filha de Almeida.

Vestia de um modo simples e elegante. Um vestido de seda cinzento-pérola ocultava-lhe o corpo flexível e delgado. Os cabelos, penteados em bandós, não tinham outro enfeite mais que uma rosa branca, presa do lado esquerdo. No seio, que ondulava pelo cansaço e pela comoção, fulgurava uma simples cruzinha de ouro, enfeite que Sara usava em todas as solenidades, por ter-lhe sido dada por sua mãe.

Graças à vida retirada da família de Sara, ninguém ou muito pouca gente a conhecia. A dona da casa encarregou-se das necessárias apresentações.

Foram as duas proclamadas as rainhas do baile. Os cavalheiros dividiram-se em partidos; uns preferiam Maria Luísa, em quem viam a expressão mais completa da mulher; outros davam a palma a Sara, cuja beleza virginal e angélica inspirava ideias puramente do céu. Para uns Maria Luísa era a estátua descida do pedestal; para outros Sara era um anjo foragido da habitação divina.

No meio de tão divididas opiniões, Eduardo era o único que as admitia ambas e por ambas se bateria se necessário fosse.

Eduardo foi procurar Almeida, de cuja demora indagou com o maior interesse, ouvindo aliás as razões dadas por aquele com a maior indiferença. Eduardo pôde falar a Sara, fê-lo com todo o interesse de um amante saudoso. A moça parecia triste. Vinha imaginando encontrar Eduardo aflito com a sua ausência e achou-o no turbilhão de uma valsa, tão alegre ou mais que os outros. Mas este ressentimento no coração da moça era passageiro. Nem ela procurava indagar mais nada. Sabia ela acaso que Eduardo pudesse valsar com outra com a mesma efusão com que valsaria com ela? A pobre menina notava o fato, mas não tirava dele nenhum corolário.

E depois, as maneiras de Eduardo convenciam tanto! No fim de dez minutos de conversação, Sara esquecera tudo e estava feliz. Como Maria Luísa na valsa deixou-se ir na embriaguez da conversação e só se lembrou de que estava diante do homem que era escolhido pelo seu coração. Tinha uma singeleza adorável que Eduardo não sabia admirar, nem como amante, nem como poeta.

Não ocuparei o espírito do leitor com a narração do que se passou durante a noite do baile, e corro já ao melhor episódio, ao que importa saber em nossa história.

Bem depressa se espalhou que as duas raparigas amavam Eduardo e que este parecia amá-las do mesmo modo. Aos que o interrogavam, Eduardo respondia com o ar de homem que nega aquilo de que deseja convencer a todos.

Chegou a passear com ambas, uma em cada braço, conversando simbolicamente com ambas, sem que elas se apercebessem de nada.

Enfim, seria uma hora da noite, já o baile chegara ao ponto culminante, em que as cerimônias, sem desaparecerem de todo, dão lugar a uma respeitosa intimidade.

Sara e Maria Luísa, ou por simpatia, ou por força de fatalidade, davam-se já como duas amigas. O conselheiro convidou Sara para cantar alguma cousa. Sara estava cansada e pediu um quarto de hora. Durante este tempo retirou-se para o gabinete que servia de toilette das senhoras. Maria Luísa acompanhou-a.

- Precisava bem de um momento de descanso - disse Maria Luísa -. Como está fatigada, meu Deus!

- A falta de hábito - respondeu Sara -. Vivo sempre metida dentro de casa...

- Pois faz mal... As flores fizeram-se para o ar livre.

Sara sorriu.

- Diga-me. Isto é entre moças, pode dizer-se. De quantos rapazes tem visto hoje nenhum lhe faz palpitar o coração?

A moça olhou para Maria Luísa e respondeu:

- Oh! Sim! Um!

- Ainda bem!

- Por que se alega tanto?

- Por nada...

- Oh!

- Porque, se já começa a amar, deve compreender-me... Também eu amo e muito!...

- Amar é tão bom, não é? - disse Sara com uma adorável singeleza.

- Oh! Se é! - suspirou Maria Luísa.

Calaram-se ambas. No fim de alguns minutos de contemplação recíproca, as duas deitavam-se nos braços uma da outra.

- É o mais belo, mais gentil, de quantos homens estão hoje nesta sala... Oh! Eu excetuo o outro...

Dizendo estas palavras Maria Luísa deu um beijo em Sara.

Sara respondeu:

- Não sei se este é o mais belo e o mais gentil, sei que o amo. Se o não amasse, devia estimá-lo, porque me salvou a vida vai para quatro meses...

- Ah! Temos romance?

- Não é romance, é realidade.

- E casam-se?

- Não sei, mas não penso nisso. Eu só faço o que ele quiser. Meu amor é um amor que não manda, nem eu creio que hajam outros.

Maria Luísa estava pensativa.

Sara continuou:

- Estará na sala?

- Quem? O meu?

- Sim.

- Está, creio eu.

E Maria Luísa foi à porta. Abriu uma fresta entre as cortinas e procurou Eduardo com os olhos.

- Lá está ele... Olhe!

- Onde está? - perguntou Sara.

- Ali encostado ao piano, do lado de lá, brinca com a luneta. Vê?

Sara, com os olhos colados à fresta, acompanhava a indicação de Maria Luísa.

Repentinamente deram as duas um grito.

Sara tinha reconhecido Eduardo; Maria Luísa viu na mão de Sara um lenço igual, com igual firma, ao que surpreendera na mão de Eduardo. As duas mulheres olharam-se mudas, alguns segundos. Sara levou a mão ao peito. Parecia que se lhe quebrava o coração. Maria Luísa, com o lenço nos olhos, foi cair sobre o sofá, dizendo:

- Oh! Que fatalidade!

Sara, depois de alguns segundos, foi procurar uma cadeira e sentou-se. Não pôde conter-se; as lágrimas rebentaram-se-lhe dos olhos.

Houve um grande silêncio entre ambas. Fora batia-se palmas ao pianista, que acabava de entusiasmar o auditório tocando um coro de Don Juan, de Mozart. Maria Luísa foi a primeira que se levantou e falou a Sara.

- Faz bem em chorar - disse ela -. Era inocente, acreditou no amor dele. Sei quanto sofre pelo que eu mesma sofro. Foi uma fatalidade. Ambas púnhamos nele a nossa esperança com a nossa alma; ele enganava a ambas; e para quê? Que pretendia? Ah! Coitadas de nós!

Sara não respondeu. Estava pálida como a morte. Maria Luísa pensou que fosse desmaiar. Foi buscar água-da-colônia e prestou-lhe os mais fraternais cuidados.

- Obrigada, não é nada, passou - disse Sara.

Depois, enxugou os olhos e levantou-se.

Na sala procurava-se a filha de Almeida para cantar. A dona da casa dirigiu-se ao gabinete.

- Aí vem gente - disse Maria Luísa -, vem procurá-la para cantar. Deve ir. Devemos sair juntas para que nada desconfiem.

Abriram-se as cortinas e viu-se sair as duas moças, pálidas como duas estátuas, com os olhos vermelhos. Sara mal podia ter-se em pé.

Obrigada a cumprir a promessa, Sara cantou. Mas que canto! Não eram notas, eram pedaços d`alma que saíam da menina desiludida e infeliz.

Quando acabou, corriam-lhe as lágrimas. Ao pé dela Maria Luísa a acompanhava no sentimento e nas lágrimas silenciosas. As duas infelizes saíram da sala no meio de aplausos comovidos.

VII

Passaram-se quinze dias depois das cenas que acabo de contar.

No dia seguinte ao do baile, Eduardo foi visitar Maria Luísa; encontrou-a na sala com sua mãe. Eduardo, como sempre, entrou com o sorriso nos lábios. Maria Luísa estava magra e tinha os olhos pisados. Ia perguntar o motivo daquele abatimento, quando a viúva, dizendo-se incomodada, pediu licença e retirou-se.

Eduardo esteve meia hora na sala conversando com a mãe de Maria Luísa, que lhe respondia por monossílabos. Finalmente, despediu-se e saiu.

Estava humilhado.

- Que aconteceria? - perguntava ele -. Ontem saíram do baile sem me falarem. Hoje tratam-me deste modo. Que haverá?

De reflexão em reflexão, de recordação em recordação, Eduardo pôde atinar com o motivo do desdém que recebera em casa de Maria Luísa.

Lembrou-se de ter visto a viúva e a donzela saírem do toilette, lívidas e abatidas. Lembrou-se das lágrimas derramadas durante o canto no piano. Descobriu tudo.

"Que diabo!", pensava ele. "Como hei de desenlaçar esta meada? Convencê-las é impossível; o melhor é eludir a questão. Mas como? Irei a Sara... Mas terei lá a mesma recepção? Oh! É demais! Não! Isso não! Maria Luísa não pode recusar uma carta minha. É isto. Escrevo-lhe. No papel posso dizer mais facilmente aquilo que convier; tenho a faculdade de rabiscar, alterar, adoçar, enfeitar, como me parecer, as palavras..."

Eduardo entrou em casa disposto a escrever três cartas. Uma à mãe da viúva, endereçando-lhe outra para a filha, de cujo amor ela estava ciente. A terceira carta era a Pedro Elói, contando-lhe a ocorrência e pedindo-lhe um conselho. Ao mesmo tempo respondia à carta anterior.

O conteúdo das duas primeiras era uma série de frases ocas, habilmente grupadas, em que Eduardo protestava o mais respeitoso amor por Maria Luísa; quanto ao episódio do baile e ao amor de Sara, foi o mais sucinto que pôde, dando uma desastrada explicação ao sentimento alegado pela filha de Almeida. Era, dizia ele, um serviço que prestava a uma menina cujo coração inexperiente se deixara apaixonar por ele. Não queria desenganá-la, entretinha por uma aquiescência um amor sem alcance.

Mandou as cartas, mas nenhuma resposta obteve nesse dia nem nos dias seguintes. Desesperou. Passava muitas vezes em frente à casa de Maria Luísa; mas não via ninguém; as janelas estavam, as mais das vezes, cerradas.

Quanto a Sara, Eduardo, com o receio de sofrer a mesma recepção, não foi lá, esperando uma visita do pai ou do tio Silvério. Embalde esperou. Era demasiado o desdém para que um coração vaidoso como o de Eduardo se resignasse. Doía-lhe o desdém; ardiam-lhe desejos de vingança. A vaidade, que até ali se empavesava com o amor das duas mulheres, doía-se agora, ressentia-se, pedia desforra. Ora, a vaidade quando domina o coração do homem (e na maioria dos homens acontece assim) não deixa atender a nenhum sentimento mais, a nenhuma razão de justiça.

Era, assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que Eduardo passava os dias e as horas, sem ver nem procurar ninguém.

Quanto à carta escrita a Pedro Elói, resume-se em pouco. Ei-la:

Meu amigo,

Turba-se o horizonte. Aconteceu o que previas e eu não previa. As duas sabem hoje do meu amor por ambas. Zangaram-se! Era bom se fosse só isso. Creio que adoeceram. Tamanho desencanto não as podia conservar no estado normal.

E isto tudo por um diabo, como eu. Diabo, sim, não digo brincando; mas um diabo compassivo que ainda as estima e deplora. Que queres? Sou feito assim. Tenho um coração evangélico; e não posso ver sofrer, e sobretudo sofrer por minha causa.

Foi o caso. Não sei que fatalidade as levou ambas ao baile do conselheiro C***. Aí, deram-se, comunicaram uma à outra os seus pensamentos, e naturalmente foram além do que deviam ir, descobrindo a coroa. A coroa sou eu. E demitiram-se os meus ministros...

Falemos sério; penalizam-me estas ocorrências. São duas mulheres dignas do respeito e do amor que eu lhes votava. Tenho a culpa de que as adorasse do mesmo modo e no mesmo grau? Se há culpa nisto, é da natureza.

O que é certo é que me não querem receber e curvam-se a uma dor que me lisonjeia, mas que me entristece.

Que devo fazer? Como reconciliar estes dous sentimentos e o meu orgulho, porque enfim eu não quero esquecer, no meio de tais fatalidades, que recebi do berço um dever de zelar a minha própria dignidade.

Aconselha-me e acredita-me

Teu Eduardo

Esta carta, como as outras, não teve resposta.

Vejamos agora o que se passou nas duas mulheres a quem Eduardo bafejara com o hálito da desgraça.

Maria Luísa chorou muito durante o resto da noite do baile.

Quando a manhã rompeu, Maria Luísa estava à janela, chorando ainda em silêncio. Sentia-se duas vezes viúva; legal e moralmente. Os sonhos do futuro, as esperanças de sua felicidade sem igual fora tudo um castelo de cartas que desabou ao sopro de uma criança.

Era dia claro. Maria Luísa julgou dever comprimir a sua dor e mostrou-se alegre.

Não queria magoar sua mãe. Banhou os olhos o mais que pôde e deixou o quarto.

Sua mãe a esperava para almoçar. Vendo-a triste, perguntou-lhe se estava doente. Respondeu que sentia-se fatigada. A mãe não insistiu.

Durante o almoço a boa velha, para alegrar sua filha, e distraí-la dos incômodos que dizia ter, falou-lhe de Eduardo, das comoções que ambos deviam ter tido na noite anterior, dos projetos do futuro.

O assunto não era próprio para alegrar Maria Luísa. Respondendo por monossílabos, e interrompendo a conversa com assuntos diferentes, Maria Luísa procurava desviar o espírito de sua mãe. Enfim, algumas vezes não podia deixar de enxugar furtivamente uma lágrima. A velha reparou e perguntou-lhe por que chorava.

- Por nada - respondeu a viúva.

- Não é possível.

- Por nada, afirmo-lhe.

- Não é possível. Ah! Não estás cansada, estás triste; tens alguma cousa que te faz sofrer. Dize o que é... Não sou eu tua mãe?

- Minha mãe!

E Maria Luísa escondeu o rosto no seio da velha.

- Vamos lá! - disse esta -. O que é?

- Ah! Tenho vergonha...

- Vergonha de quê?

- Eduardo não me ama!

- Ah!

- Não me ama, porque ama a outra.

- Quem?

- Sara, aquela que cantou ontem, ao pé de mim, e que a todos comoveu. Ambas nos confessamos.

Maria Luísa repetiu tudo quanto acontecera no baile. A pobre mãe estava comovida, triste, desesperada, ouvindo a narração que Maria Luísa lhe fazia entre lágrimas de desespero e de dor.

Mas, o que podia fazer a mãe da pobre moça? Uma só cousa: dar-lhe uma consolação maternal e auxiliá-la em esquecer o ingrato. Quando veio a carta de Eduardo achou ela que devia responder, sobretudo porque nos termos da carta parecia estar provada a inocência de Eduardo. Maria Luísa foi inflexível; disse que não se devia dar resposta alguma. Ah! É que naquele coração, ao lado de um grande amor e de um grande desespero, havia um grande orgulho!

Quanto a Sara, eis o que passara. Não temos necessidade de ir até à casa de Almeida; o tio Silvério nos instruirá de tudo.

Um dia de tarde, justamente quinze dias depois do baile, Eduardo estava à janela de sua casa quando viu passar o tio de Sara. Chamou-o e fê-lo subir, apesar dos protestos de ir apressado.

- Ora tinha que ver! - disse Eduardo indo receber Silvério -. Não vê que o deixava passar sem dar dous dedos de conversa!...

- Mas é que tenho pressa.

- Qual pressa. Sente-se um pouco. Em descansando ganha novas forças, e ei-lo que aí vai mais lesto ao seu destino.

- Vou para casa - disse Silvério aceitando a cadeira que Eduardo lhe oferecia, e fazendo uma careta à parte como homem contrariado.

- Toda a família está boa?

- Está.

- É o que se quer. Vai então tudo bem?...

- Tudo, não é exato...

- Pois há alguém doente?

- Há.

- Quem é?

- Minha sobrinha...

- Deveras?

- É verdade.

- Que doença?

- Eu sei. Adoeceu no dia seguinte ao do baile; veio um médico e a primeira cousa que fez foi obrigá-la a conservar-se de cama.

- Depois?

- Depois, examinou-a e deu não sei que nome à moléstia, mas afirmou que não era aquela a principal.

- Então há outra?

- Há.

- Qual é?

- Diz o médico que é uma doença moral. Lá levaram tempo imenso a consultá-la. Ela nada disse; isto é, não sei; não sei, só sei que aquilo é a nossa desgraça, porque se ela nos morre é como se nos fosse a vida, a alegria da casa... Adeus, Sr. Eduardo, não me posso demorar.

Eduardo ouvira estas palavras com certa surpresa e certa comoção. Quando Silvério se levantou e preparava-se para sair, Eduardo balbuciou algumas palavras. Era um anjo que o inspirava; ia talvez sanar tudo com uma promessa.

Em um instante viu ele que se constituía o remédio supremo para a enfermidade moral de Sara. Mas enfim, o ente gredin, que, como diz A. Karr, todo o homem tem em si, desfez a obra do ente honesto. Eduardo estendeu a mão a Silvério e pediu que o recomendasse à família.

Silvério desceu cabisbaixo e triste as escadas da casa de Eduardo.

Quando se viu só, Eduardo refletiu na situação em que se achava. Das duas mulheres que ele requestara tão seriamente e cujas esperanças honestas alimentara com tanta perseverança, uma tinha morta a alma, a outra tinha morta a alma e o corpo. Em seu coração, travou-se uma grande luta, entre o remorso e a vaidade. O dever dizia-lhe que reparasse o maior mal, se não podia reparar todos os males, mas um sentimento de amor-próprio, vão, cruel, imoral, retinha-lhe os sentimentos bons e os impulsos generosos.

Nesta luta, esteve toda a noite. Quis dormir, não pôde; mal fechava os olhos surgia-lhe o espectro de Sara pedindo contas do coração que iludira e da vida que estrangulara.

Enfim, sobre a madrugada pôde conciliar o sono. Eram nove horas quando se levantou. Quem olhasse para ele daí a meia hora reconheceria que o sentimento do dever triunfara, ao menos momentaneamente.

Eduardo vestiu-se e saiu. Tomou um tilbury e dirigiu-se para a ponte das barcas. Destinava-se a São Domingos. Ia decidido a falar à moça, mesmo à custa do seu amor-próprio. A demora do vapor o contrariou. Tardava-lhe ver-se junto do leito da moribunda para dizer-lhe: "Vive!"

Ora, a moribunda estava realmente moribunda. Mas quem a visse não suporia que a morte se avizinhava tanto dela. Tinha o rosto e os olhos serenos. Sorria mesmo ao pai, ao irmão e ao tio, mas com o sorriso de quem entrevê as glórias eternas e já as compara às glórias perecíveis desta vida.

O cortinado branco do leito parecia que amparava da luz um ente que chegava ao mundo e não um ente que se ia dele desgostoso e desiludido.

Em uma pequena mesa ao pé da cama havia um copo d`água, uma cruz de ouro, a do baile, e uma rosa branca seca. Esta rosa era a que Eduardo dera a Sara em troca de outra à porta do jardim. Sara de tempos em tempos voltava os olhos para a flor, ficava muda e entrava a contemplá-la. Nessas ocasiões o pai da doente procurava distraí-la com algum outro objeto, temendo que na contemplação da flor se lhe avivassem as lembranças do amor que a matava.

Foi em uma dessas ocasiões que Almeida lembrou-se de uma notícia e disse a Sara:

- Minha filha, vais ter uma visita.

- Quem é?

- Adivinha...

- Não sei - disse Sara sorrindo.

- D. Maria Luísa.

Este nome fez estremecer Sara. O pai dava-lhe maior sofrimento procurando tirar-lhe outro menor. Com efeito, a flor lembrava a Sara o tempo feliz dos seus amores; o nome de Maria Luísa lembrava-lhe a traição de Eduardo.

Reconhecendo o que fizera, Almeida procurou diminuir o efeito.

- Verás como ela soube resignar-se... Espero que o exemplo te sirva, e que das suas palavras colhas uma lição e um conforto, e finalmente que vivas... Ouviste? Que vivas!

Sara sorriu-se.

Houve um silêncio.

Depois, passando a mão pela cabeça, pediu água.

Deram-lha.

- Estás melhor, não, Sara? - perguntou Almeida -. Olha, é preciso, é preciso: fazes anos amanhã. Quero que presidas à mesa... sim?

- Estou melhor, estou, meu pai. Mas, diga-me, como sabe da visita de Maria Luísa?

- Passei ontem lá e subi. Não sabia ainda que estavas doente. Quando lho disse, ficou muito pesarosa. Depois, disse-me que viria cá fazer-te uma visita.

O resto do dia passou-se sem novidade. Sara não saía daquela serenidade, mas realmente não era para a vida, era para a morte que caminhava.

Enfim, no dia seguinte, isto é, no dia em que Eduardo resolvera ir salvar a moça, apareceu, à porta de Almeida, Maria Luísa, com sua mãe.

Sara recebeu a sua rival, ou antes a sua comártir, como se fora uma irmã querida, por quem se espera para morrer. Maria Luísa chorou muito; e, por uma inversão dolorosa dos papéis, era Sara quem consolava a viúva.

- Mas é por ti que eu choro, meu anjo - dizia Maria Luísa.

- Por mim?

- Sim, por ti, que não tens coragem, que te quebraste ao primeiro embate da vida...

- Não digas isso... Eu estou boa... Nada tenho... Sofri, é certo; mas passou... Olha, faço hoje anos... Hás de jantar comigo... Vou levantar-me logo... Verás... Senta-te...

Maria Luísa olhou com olhos rasos de lágrimas para a pobre moça.

- Ainda bem, minha filha - disse Almeida procurando sorrir -, ainda bem que te mostras assim. Isso é o que eu quero. Não te importem os males da vida; todos sofrem; mas faze como fazem muitos; fica sobranceira a tudo.

- Dezessete anos! - murmurava a viúva... - É a aurora da vida...

As duas conversaram largamente. A mãe de Maria Luísa e o pai de Sara deixaram o quarto; as duas podiam folgadamente falar do que as tornara infelizes. Era assim mais fácil a Maria Luísa inspirar a Sara os sentimentos de coragem e sobranceria a que ela própria devera não ter sucumbido. Chegou mesmo a aventurar uma ideia de vingança, com satisfação do coração ofendido.

Mas aqueles dous corações, que concordavam em um ponto, não se entendiam naquele. Sara não era feita para resistir a uma comoção como a que a prostrara. Ouvia sorrindo Maria Luísa, mas abanava a cabeça a tudo. E quando a viúva, para decidi-la mais, lembrava-lhe que poderia sucumbir deveras, Sara respondia que estava perfeitamente boa e não podia inspirar cuidados a ninguém. Esta resistência aos que a chamavam à vida comovia ainda mais.

Só havia um meio, talvez, de salvar Sara; era a presença e o amor de Eduardo.

Esta ideia passou rápida pelo espírito de Maria Luísa. A nobre mulher não discutiu consigo nem o ato, nem as consequências, nem o seu coração. Adotou o pensamento como se fora inspiração do céu.

Maria Luísa amava realmente Eduardo. Desiludida, sofreu muito, e só deveu ao orgulho e à energia do seu coração não ter, como Sara, sucumbido ao desespero. Mas os grandes sentimentos do seu coração não eram só o do amor e o do ciúme. O ato que ia praticar era de uma alma nobre, educada no culto do dever e do sacrifício. Naquele instante ela via diante de si uma pobre menina que sofria e morria por aquele mesmo que a fizera sofrer. Compreendia bem a medida desse sofrimento.

A viúva procurou sondar o espírito da enferma:

- Ora, dize-me, se visses Eduardo, o que farias?

- Se o visse? É impossível.

- Impossível, por quê?

- É impossível.

- Ora, não digas isso. Mas se o visses, se ele viesse agora, hoje, e te dissesse: "Vive"?

- Não vem e não diz...

- Por quê?

- Por que não me ama.

- Quem sabe?

- Oh! Nem me ama, nem te ama.

- Só por isso?

- E também porque nós o amamos.

- Eu não.

- Não?

- Não.

A moça abanou a cabeça murmurando:

- É inútil.

Maria Luísa procurou meio de escrever a Eduardo; e conseguiu traçar à pressa, em um quarto de papel, as seguintes palavras:

Quer o perdão que me pede? Sara está às portas da morte; venha, diga-lhe que a ama, peça-a e case-se daqui a um mês. Está perdoado.

Maria Luísa

O portador que levou este bilhete encontrou Eduardo na ponte das barcas da Corte.

Eduardo, ao ler o bilhete da viúva, sentiu-se humilhado. Enganara duas mulheres; uma morria de pesar, outra pedia-lhe que a salvasse, sacrificando-se; entre aquelas nobres almas, a alma de Eduardo sentia-se abatida. Não se deteve mais; tomou a barca, que partiu dali a cinco minutos.

Logo depois de partir o portador do bilhete, entrou o médico na casa da doente. Achou-a muito pior, e disse-o francamente à família. Que fazer? Tudo o que foi preciso fez-se. Maria Luísa ajoelhada diante de um oratório pedia a Deus duas cousas: que prolongasse a vida de Sara por algumas horas e apressasse a chegada de Eduardo.

Foi inútil. Sobreveio uma crise à enferma, e após a crise o médico desesperou.

Entretanto Sara, com o sorriso nos lábios e o olhar sereno, dizia algumas palavras em voz já muito fraca, mas com a segurança de quem está certa de ir para uma morada melhor.

Maria Luísa pedia-lhe que vivesse; dizia-lhe que Eduardo não tardaria; o pai a um canto não tinha forças para ver, para pedir, nem para chorar; estava atônito.

- Não - dizia ela -, ele não vem. E que venha, sei que não me ama, e sem amor não o quero.

O médico fez vir um sacerdote.

Quando este chegou, Sara, com os olhos fitos, como que vendo já abrir-se-lhe o céu, pedia a Maria Luísa que lhe desse a rosa seca que estava sobre a mesa.

Maria Luísa deu-lha.

- Desejo esta flor porque me lembra o amor que eu supunha ter achado; é o homem de ontem que eu choro; é por ele que morro; o de hoje não é senão a sepultura do de outrora, que morreu.

Houve um silêncio.

Almeida chegou-se à filha, a fim de prepará-la para a confissão.

Sara estremeceu.

Depois, voltando-se para Almeida, disse:

- Meu pai, abençoe-me. E tu também, minha irmã.

Depois... estava no céu.

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