Conto

Quem Conta Um Conto...

1873

VII

Ficaram sós o major e o Sr. Pires.

- Agora - disse o primeiro -, há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do Tesouro... Como se chama?

- O bacharel Plácido.

- Estou às suas ordens; tem passagem e carro pago.

O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:

- Mas eu não sei... se...

- Se?

- Não sei se me é possível nesta ocasião...

- Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.

- Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...

- O quê?

- Adiar?

- Impossível.

O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.

- Acredite, Sr. major - disse ele concluindo -, que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.

O major inclinou-se.

O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução. A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O major parecia uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu companheiro.

A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.

Enfim chegaram a Catumbi.

Desta vez foi o major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.

O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.

O Sr. Pires explicou o objeto da visita.

- É verdade que eu lhe falei de um rapto - disse o bacharel -, mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia de um projeto de rapto.

- E quem lhe disse isso, Sr. bacharel? - perguntou o major.

- Foi o capitão de artilharia Soares.

- Onde mora?

- Ali em Mata-porcos.

- Bem - disse o major.

E voltando-se para o Sr. Pires:

- Agradeço-lhe o incômodo - disse -; não lhe agradeço porém o acréscimo. Pode ir-se embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.

O Sr. Pires não esperou novo discurso; despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro deu dois ou três socos em si mesmo e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa.

- É bem feito - dizia o Sr. Pires -; quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!

VIII

O bacharel Plácido encarou o major, sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora-se embora. Não tardou que o major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:

- Queira agora acompanhar-me à casa do capitão Soares.

- Acompanhá-lo! - exclamou o bacharel mais surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.

- Sim, senhor.

- Que pretende fazer?

- Oh! Nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.

O bacharel recalcitrou; a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo. A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.

- Mas há de confessar que é longe - observou este.

- Não seja essa a dúvida - acudiu o outro -; mande chamar um carro, que eu pago.

O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.

- Então? - disse o major ao cabo de algum tempo de silêncio.

- Refleti - disse o bacharel -; é melhor irmos a pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a pé...

- Bem, estou às suas ordens.

O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.

Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia já tocar campainha para chamar alguém.

- Pronto?

- Pronto.

- Vamos.

- Deus vá conosco.

Saíram os dois na direção de Mata-porcos.

Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido; já porque a gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava; arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.

Com este era impossível o major empregar o sistema de reboque que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.

Tudo isto punha o major em apuros. Se visse passar um carro tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tilbury vago convidava, a passo lento, os fregueses.

O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o major batia palmas na escada.

- Quem é? - perguntou uma voz açucarada.

- O Sr. capitão? - disse o major Gouveia.

- Eu não sei se já saiu -respondeu a voz -; vou ver.

Foi ver, enquanto o major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:

- O senhor quem é?

- Diga que é o bacharel Plácido - acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.

A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos voltou a dizer que o bacharel Plácido podia subir.

Subiram os dois.

O capitão estava na sala e veio receber à porta o bacharel e o major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.

- Queiram sentar-se.

Sentaram-se.

IX

- Que mandam nesta sua casa? - perguntou o capitão Soares.

O bacharel usou da palavra:

- Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. major Gouveia.

- Não me lembra; que foi? - disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.

- Disse-me você - continuou o bacharel Plácido - que o namoro da sobrinha do Sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...

- Perdão! - interrompeu o capitão -. Agora me lembro que alguma cousa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.

- Não foi?

- Não.

- Então que foi?

- O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.

- Sim, há alguma diferença - concordou o bacharel.

- Há - disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.

Seguiu-se um silêncio.

Foi o major Gouveia o primeiro que falou.

- Enfim, senhores - disse ele -, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?

- Pois não - disse o capitão -; ouvi-o ao desembargador Lucas.

- É meu amigo!

- Tanto melhor.

- Acho impossível que ele dissesse isso - disse o major levantando-se.

- Senhor! - exclamou o capitão.

- Perdoe-me, capitão - disse o major caindo em si -. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo...

- Nem ele disse por mal - observou o capitão Soares -. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa...

- É verdade - concordou o major -. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.

- É provável.

- Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.

- Agora!

- É indispensável.

- Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?

- Sei; iremos de carro.

O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.

- Não podíamos adiar isso para depois? - perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.

- Não, senhor.

O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.

Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.

O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.

Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.

O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.

- Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.

- Vamos, tenha paciência - dizia-lhe o coadjutor -. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.

- Tem razão, é possível - concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.

X

Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.

O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O major levantou-se também, mas não sorria.

Feitos os cumprimentos, foi exposta a questão. O capitão Soares apelou para a memória do desembargador, a quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.

- Recordo-me ter-lhe dito - respondeu o desembargador - que a sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d`alma, visto estar para casar. Não lhe disse porém que havia namoro...

O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.

- Muito bem - disse ele -; a mim não me basta esse dito; desejo saber a quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.

- A quem o ouvi?

- Sim.

- Foi ao senhor.

- A mim!

- Sim, senhor; sábado passado.

- Não é possível.

- Não se lembra que me disse na rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...

- Ah! Mas não foi isso! - exclamou o major -. O que eu lhe disse foi outra cousa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.

- Nada mais? - perguntou o capitão.

- Mais nada.

- Realmente é curioso.

O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o mundo.

Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O que o consolou foi a ideia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:

- Quem conta um conto...

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