Coleção

Contos na Imprensa - Fase 10

1893

Esta que se denominou aqui "décima fase" dos contos avulsos de Machado de Assis reúne quatorze peças, publicadas entre 1892 e 1907. Trata-se dos últimos contos estampados pelo autor na imprensa.

Já há algum tempo, por iniciativa de editoras como a Jackson e a Nova Aguilar, e de indivíduos como Raimundo Magalhães Jr. (que nos anos 1950 publicou cinco volumes reunindo contos machadianos ), o leitor dos séculos XX e XXI teve acesso a muitas dessas histórias. Nas edições anteriores à de 2008, a Nova Aguilar reuniu, sob o título de "Outros contos", 46 títulos. Os contos "completos" de Machado de Assis, no entanto, eram (e são) acessíveis eletronicamente, desde 2002, em www2.uol.com.br/machadodeassis?, graças a uma iniciativa pioneira de Cláudio Abramo.

Em 2008, como parte das comemorações do primeiro centenário da morte do escritor, a Nova Aguilar reuniu a obra completa de Machado de Assis em quatro volumes e ofereceu ao leitor, em suporte material, todos os contos machadianos. Aqueles que não foram selecionados pelo autor para figurarem nos sete volumes de contos que publicou durante sua vida compõem o segundo e o terceiro volume dessa edição, num total de mais de mil páginas, sob o título de Contos avulsos. São 114 contos ao todo, na grande maioria, bastante extensos.

A imensidão e as dificuldades do corpus exigiram da nossa equipe uma espécie de reinvenção metodológica: distribuímos os contos por períodos, mais ou menos curtos, de modo que, a cada etapa, lidássemos com, no máximo, 15 contos. O que se publica aqui é o que chamamos "Contos avulsos - fase 10", reunindo peças publicadas em A Estação (sete), no Almanaque da Gazeta de Notícias (três), no Almanaque Brasileiro Garnier (três) e na Revista Brasileira (um). Todos os quatorze contos são assinados por Machado de Assis, que por essa altura já era autor mais que consagrado. Vale notar que, como assinala J. Galante de Sousa, do conto "A inglesinha Barcelos" só se preservou um fragmento (publicações de A Estação de 31 de maio, 15 e 30 de junho de 1894): "Este conto prossegue sua publicação além do número de 30 de junho. Não sabemos, porém, até onde, porque faltam na coleção da B. N. os nos de 15 e 31 de julho e 15 de agosto desse ano."

A crítica machadiana chama a atenção para o caráter orgânico da obra do autor, em que motivos, temas, expressões, alusões são frequentemente retomados e se desdobram em crescente grau de complexidade. Neste conjunto de contos, destacamos a sombria constatação do narrador diante da gravidez interrompida de Genoveva: "Nenhum filho. Um que lhe devia nascer foi absorvido pelo nada: tinha cinco meses de gestação". A passagem parece ecoar o capítulo XCV de Memórias póstumas de Brás Cubas em que Brás reflete sobre a também interrompida gravidez de Virgília, "naquele ponto em que se não distingue Laplace de uma tartaruga".

A expressão "cosido à parede" que surge aqui no conto "Uma noite", de 1895 ("Eu, cosido à parede, fiquei a olhar para ela"), seria retomada duas vezes, poucos anos mais tarde, em Dom Casmurro (1899): uma, com ligeira modificação, no capítulo IV, "Um dever amaríssimo", no qual Bentinho, depois de ouvir atrás da porta a conversa de José Dias com D. Glória, esconde-se para que o agregado não o surpreenda: "Cosi-me muito à parede"; outra, exatamente igual, no capítulo XVI, referindo-se ao estado de ânimo abatido de Pádua depois de ter perdido a administração interina da repartição pública em que trabalhava: "Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no chão".

Quanto a alusões recorrentes, registre-se a presença, sem maiores implicações, da Pia de 'Tolomei no conto "Uma por outra" (1897). A mesma personagem seria explorada com rara sutileza no último romance do autor, Memorial de Aires (1908).

Outra característica do melhor Machado que existe desde as primeiras produções é a autoconsciência narrativa, traço peculiar a autores caros ao Bruxo do Cosme Velho, de Luciano de Samósata a Sterne, de Cervantes a Camilo Castelo Branco. O narrador ora dela se vale para reforçar a verossimilhança, afirmando que sua história é "verdadeira", embora admita que há, sempre, um trabalho artístico sobre a matéria que se narra: "Tudo isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente cousas que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quando menos, falta-me tempo"; ou para simular certo distanciamento, certa isenção, como em: "mas eu não faço aqui psicologia, narro apenas."

O conjunto de contos aqui reunidos revela ao leitor contemporâneo um autor já no pleno domínio de seu meio de expressão, algumas das peças alcançando o mesmo nível de qualidade das melhores produções do escritor.

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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas, sempre que possível, com as edições digitalizadas dos periódicos em que os contos foram publicados, disponíveis no acervo da hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional.

Tal cotejo se revelou fundamental, na medida em que as edições existentes apresentam problemas seriíssimos: substituição inexplicável de palavras, como em "Você está já com as manhas das moças da Corte", transformado em "Você está já com as manchas das moças da Corte"; ou "iria à China, com ele, a uma ilha deserta e inóspita...", transformado em "iria à China, com ele, a uma ilha deserta e inabitada..."; ou ainda como o que ocorre com o verbo "concertar" ("harmonizar", "ajeitar"), frequentemente modificado para "consertar" ("reparar algo quebrado, rasgado, danificado"). Disto procurou-se dar conta em links, que, nesta edição - o leitor notará - não se restringem às citações e alusões histórico-literárias e à toponímia, tratando de casos mais propriamente linguístico-filológicos.

Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: "espiga", no sentido hoje pouco usual de "logro, tapeação"; "cópia", referindo-se a "abundância", "grande quantidade"; "lavatório", designando "móvel com bacia e jarro de água para lavar o rosto e as mãos", ou ainda "recipiente de louça ou ferro esmaltado, usado com a mesma finalidade".

Expressões hoje em desuso foram igualmente anotadas: "das dúzias" ("de pouco valor", "medíocre"), "ficar a olhar ao sinal" ("ficar a ver navios", ou seja, "ficar em nada", "ficar passivo e impotente diante de uma situação"), "deitar o hábito às urtigas" ("deixar sua posição social"; "libertar-se de amarras").

Usos hoje considerados incorretos foram mantidos, como certas "violências" sintáticas: "fez-lhe perder todo o gosto da profissão", quando o correto seria "fê-lo perder todo o gosto da profissão"; "Custava-me a crer que fosse propósito", quando o correto seria "Custava-me crer que fosse propósito". Exemplo interessante de "erro" machadiano comumente corrigido em edições posteriores, a flexão nominal do advérbio foi aqui mantida: "olhos meios cerrados", "meia delirante". Manteve-se o verbo no modo indicativo em expressões que atualmente demandam subjuntivo: "quem quer que era", "onde quer que estava", "o que quer que era".

Outra peculiaridade da escrita machadiana que foi mantida é o emprego do artigo em "Toda a criança faz versos"; "Toda a gente a conhecia na rua"; "toda a espécie [de pretendentes]" - uso ainda frequente em Portugal, mas evitado no Brasil.

Buscou-se sempre a maior proximidade possível com a publicação original, o que nem sempre tem sido a política de edições posteriores, que tendem a "padronizar" o texto machadiano. Aqui, respeitaram-se todas as oscilações como entre "até o" e "até ao"; "cousa" e "coisa"; "dous" e "dois". Mantiveram-se com a grafia registrada no original palavras que, embora hoje se escrevam de modo diferente, ainda admitem a grafia habitual no século XIX, como "douda".

Foi feita uma atualização ortográfica. Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições: "Guarda Nacional", "Escola Politécnica", "Assembleia Legislativa". Quanto às palavras estrangeiras, manteve-se a forma usada nas publicações originais: "filet", "pouf", "club", "boulevard".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Manteve-se a vírgula antes de "e" que introduz sujeito idêntico ao da oração anterior: "Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se". Preservou-se a oscilação entre uso e não uso de vírgula antes de "e" que introduz sujeito diferente do da oração anterior: "Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência"; mas: "Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também". Manteve-se igualmente a alternância entre o emprego e o não emprego de vírgula antes de oração subordinada consecutiva: "mas tão sem persistência, que era fácil desacertar"; mas "A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar".

Nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu com vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e com falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, o que o autor raramente faz (mas às vezes faz, como em "A pergunta em si era uma confissão; o tom em que a fiz, outra"). Procedeu-se de igual modo nos casos de orações subordinadas reduzidas de gerúndio, e, ainda, nas orações em que há uma inversão na ordem sintática habitual da frase. Foram mantidas todas as vírgulas que, embora incorretas do ponto de vista das regras contemporâneas de pontuação, parecem ser deliberadas marcas de oralidade: "Quarenta e três, quarenta e dous, fazem tão pouca diferença..."; "Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?".

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado parágrafo e travessão, salvo quando o autor insere a fala de personagens no meio do discurso do narrador, como no conto "O caso Barreto":

Tinha vinte e oito anos, era tempo. O quadro era fascinador; aquele salão, com tantas ilustrações, aquela pompa, aquela vida, as alegrias da família, dos amigos, a satisfação dos simples convidados, e os elogios ouvidos a cada momento, às portas, nas salas: - "Magnífica festa!" - "A noiva é linda!" - "Casamento feliz!" - "Que me diz a este baile?" - "Oh! esplêndido!" - Todas essas vistas, pessoas e palavras eram de animar o nosso amanuense, cuja imaginação batia as asas pelo estreito âmbito da alcova, isto é, pelo universo.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, bem como na elaboração de algumas notas, a de Laíza Verçosa do Nascimento e Maira Moreira de Moura, atuais bolsistas de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora, Laíza Verçosa do Nascimento e Maira Moreira de Moura, bolsistas de Iniciação Científica Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

julho de 2014

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