- Logo que cheguei - continuou Salvador - corri à casa; achei-a fechada. Um vizinho, testemunha da minha aflição, deu-me notícia de que Ângela se mudara para São Cristóvão. Não sabia nem o número nem a rua; mas deu-me algumas indicações que me guiaram. Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquele homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humilhava. Sem nunca haver recebido de mim a menor ofensa, vejo que ele tinha um prazer secreto com o meu infortúnio. Por quê? Deixo aos filósofos liquidarem esse enigma da natureza humana. Voei a São Cristóvão; gastei tempo em procurar a casa, mas dei com ela. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio de um pequeno jardim. Podia ser aquela a residência da companheira de minha miséria? Receoso de ir bater ali, vi assomar ao portão um homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a quem dei o seu próprio nome, dizendo que lhe desejava falar. "A senhora saiu", respondeu ele distraidamente. Dispus-me a esperar, mas o jardineiro observou-me que ia sair e fechar o portão, e que a senhora só voltaria à noite. "Esperarei até à noite", redargui. O jardineiro mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cauteloso pela rua e disse-me baixinho: "Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não há de gostar". Não escrevo um romance, dispenso-me de lhes pintar o efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a descrição. Há catástrofes mais solenes, há situações mais patéticas; mas naquela ocasião parecia-me que todas as dores do mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o efeito de suas palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. Convidou-me com brandura a sair; obedeci maquinalmente. Podendo informar-me acerca de Ângela, não o fiz. A febre reteve-me três dias de cama, numa pobre cama alugada em péssima estalagem da Cidade Nova. No terceiro dia recebi uma carta de Ângela. Pedia-me que lhe perdoasse o passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a carta, tive ímpeto de ir ter com ela e esganá-la; mas o ímpeto passou, e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois, quando Ângela me escreveu. "Ela enganou seu pai - diz Brabantio a Otelo -, há de enganar-te a ti também." Era justo; pelo menos, era explicável. Dous dias depois da carta de Ângela, escrevi-lhe pedindo meia hora de conversação; nada mais. Ângela concedeu-me a entrevista. Meu plano era arrebatar-lhe Helena; ela pareceu que o previu, recebendo-me sozinha, no jardim, às nove horas da noite.